segunda-feira, 10 de março de 2014

PEQUENA HISTÓRIA DOS BONDES DE NATAL




Bonde da linha do Alecrim, fotografado em fins de 1942, pelo oficial da USAAF Robert C. Henning. Fonte - Livro Eu não sou herói-A história de Emil Petr, de Rostand Medeiros, 2012, pág. 92
Bonde da linha do Alecrim, fotografado em fins de 1942, pelo oficial da USAAF Robert C. Henning.
Fonte – Livro Eu não sou herói-A história de Emil Petr, de Rostand Medeiros, 2012, pág. 92
Este texto foi originalmente produzido por Augusto Severo Neto e publicado no Jornal Dois Pontos, edição semanal de 15 a 21 de junho de 1984, na sua coluna “Ontem vestido de menino – XXX”. Eu  li e guardei esta página ao longo destes quase 30 anos, com um desejo de não esquecer os registro de uma Natal que não existia mais, que não conheci, mas que achava importante conhecer através dos escritos de quem viveu naquela época. Infelizmente não consegui conservar perfeitamente este documento, as traças levaram um pedaço, mas o que trago dá uma ideia do meio de transporte mais marcante da antiga Natal  

Quando eu “cheguei”, os bondes puxados a burro já haviam dobrado a esquina do tempo. Também já haviam desaparecido as empresas que haviam explorado esse lírico meio de transporte. Primeiro foi a Ferro Carril de Natal, nos fins de março de 1908, no governo Alberto Maranhão, que, naturalmente, como magistrado supremo desta simpática sesmaria que é o Rio Grande do Norte, Capital Natal, presidiu a instalação solene deste meio de transporte.

E houve aquela pressa em assentar os trilhos, em comprar os bondes, que vem lá de longe, de Belém do Pará, e em adquirir os burros de tração, para tirar as viaturas. Eram burros de raça, fortes e custaram uma nota. R$ 250.000 (Duzentos e cinquenta mil reis) cada.

O primeiro trecho da linha ia da rua Dr. Barata à Praça Padre João Maria. Na “viagem” inaugural, ocupavam os assentos do novo transporte, o Governador Alberto Maranhão, o Senador Ferreira Chaves, o Deputado Juvenal Lamartine, o Presidente da Intendência Joaquim Manoel Teixeira (cargo equivalente atualmente ao de prefeito), algumas pessoas gradas e, naturalmente, os dirigentes da empresa.

As linhas foram se estendendo e chegaram até o Esquadrão de Cavalaria (onde funciona hoje a Escola Doméstica). O preço da passagem era de R$ 000.100 (cem réis, ou um tostão como chamavam). O primeiro acidente ocorreu em fevereiro de 1909, quando as rodas de ferro do veículo cortaram uma das pernas do garoto Antônio Pereira Dias.

Em 1911, o Governo tomou à França um empréstimo de R$ 4.214,274$830 (quatro milhões e duzentos e quatorze mil contos, duzentos e setenta e quatro mil e oitocentos e trinta réis). Com esse dinheiro Natal teve luz e bondes elétricos, além de telefones. Crescia o conforto moderno da cidade. Isso tudo foi inaugurado em outubro daquele mesmo 1911. A Empresa de Melhoramentos de Natal, Vale de Miranda & Domingos Barros passou a gerir e explorar os novos melhoramentos da cidade. As linhas de bondes se estenderam ao Alecrim, até o Hospital dos Alienados. Em 1912 chegaram a Petrópolis. Em 1913 iam até o Tirol, onde se encontra a sede do Aero Clube. Em 1915 atingiam a praia de Areia Preta.
Foto da revista Life, realizada em fins de 1941, ou no início de 1942, mostrando um típico bonde de Natal, nos cruzamentos das Avenidas Duque de caxias e Tavares de Lyra, no bairro da Ribeira.
Foto da revista Life, realizada em fins de 1941, ou no início de 1942, mostrando um típico bonde de
Natal nos cruzamento das Avenidas Duque de caxias e Tavares de Lyra, no bairro da Ribeira.

Vale de Miranda e Barros se separaram e os serviços de bondes, luz e telefones estiveram a ponto de 
ir para o brejo, nas mãos da nova arrendatária, Cia. De Tração, Força e Luz. Aí o Governador deu uma 
de durão e acabou com a moleza. Mandou executar a Força e Luz. Em 1930, uma outra Cia. Força e 
Luz do Nordeste do Brasil assumiu a coisa, tendo a frente o inglês Mr. Brown, genro de Juvenal 
Lamartine. Foi aí que eu comecei a tomar conhecimento, de mesmo, com os bondes de Natal.

Com o passar dos anos, eu e os bondes, adquirimos uma grande intimidade. Chegava a sofrer com ele
 (se não participava do troço), quando, na subida da Avenida Junqueira Aires, defronte do velho
 Atheneu, os estudantes passavam sabão nos trilhos e o coitado ficava patinando no mesmo lugar, 
sem conseguir chegar ao fim da ladeira. Tinha aquelas vezes que, até a “viagem” até o Aero Clube do 
Tirol, a gente tomava o lugar do motorneiro e, a nove pontos e muitos gritos, víamos passar as 
mangabeiras da antiga Rua Jundiaí, ainda sem calçamento e as poucas construções da Avenida Hermes 
da Fonseca, entre as quais o Esquadrão de Cavalaria e a casa do Dr. Varela Santiago. O bonde 
corcoveava que só montanha russa e, aqui e ali, a lança saltava e a gente tinha de recolocar no lugar.

Já tatuado e metido a sebo, junto com alguns colegas, eu descia de bonde até à Ribeira , para ir a
“zona”, pagar o meu tributo as mulheres-damas. Quando o bonde passava defronte de minha casa, 
na Junqueira Aires, eu baixava a sanefa e os outros passageiros punham a mao para fora, para ver se 
estava chovendo.

Um dia os bondes começaram a falecer, até que morreu o último, de abandono e ferrugem, em um 
galpão sem nenhum conforto. Ainda hoje sinto saudades daquela alegria amarela (a cor tradicional 
dos bondes), lírica e barulhenta que cortava as ruas de Natal.
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SOBRE O AUTOR – Augusto Severo Neto é oriundo de uma família de tradição que remonta ao 
século XVII e que deu ao Rio Grande do Norte nomes ilustres como os governadores Pedro Velho 
e Alberto Maranhão, o prefeito Djalma Maranhão, o revolucionário André de Albuquerque e o pioneiro
 da aviação, Augusto Severo, entre outros. Sua vida profissional teve origem no comércio.

O carisma do seu ilustre avô incentivou-o a tentar, por um certo período de tempo, o campo da 
aviação civil. Espírito inquieto, não tardou a largar as linhas aéreas para abraçar o jornalismo, atividade 
em que se revelou um cronista sensível às fraquezas e grandezas humanas, em que realizou um 
trabalho marcante, que tocou as fronteiras do jornalismo e da literatura.

Foi membro correspondente da Academia Paulista de Letras (na vaga de Câmara Cascudo), 
professor universitário (cargo em que se aposentou na Universidade Federal do Rio Grande do Norte) 
e viajante.

Esta última atividade, “por fome de vida”, segundo a sua mulher, Maria Lúcia Beltrão. Mas, na opinião 
dela, a principal atividade de Augusto Severo Neto foi “viver e ser feliz”. Formado em Jornalismo 
pela UFRN, colaborou em diversos periódicos do Rio Grande do Norte de outros estados desde 
1942. Sua galeria Vila Flor, foi, nos anos 70, importante ponto de encontro de intelectuais e 
artistas natalenses.

Apaixonado pela cultura européia, sobretudo a de extração latina, empreendeu dezenas de viagens ao 
Velho Continente, o que lhe rendeu alguns livros de memória e uma impressão pessoal sobre Paris, 
cidade a que devotava uma admiração especial. A vida cultural natalense, com seus tipos boêmios 
e poéticos, também lhe chamou atenção. Em De Líricos e de Loucos, Augusto Severo Neto presta 
tributo a essas personagens, sob a forma de crônicas.

Ao morrer, seus amigos escolheram como epitáfio para o seu túmulo, os versos:

Há caminhos de luz escondidos nas trevas
Para achá-los, porém, é preciso ir sozinho.

Os versos são do próprio poeta. Seu corpo foi sepultado no cemitério da vila de Pirangi, litoral sul 
potiguar, que ele mesmo escolheu como sua última morada.

(texto de Nélson Patriota)

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Que eu seja eternamente eterno louco e nunca deixe de sonhar na vida. (João Lins Caldas, pensador potiguar).