terça-feira, 25 de abril de 2017

Era uma vez em Assu

(Washington Araújo)

Havia um céu que nos protegia. Havia uma louca da cidade que longe de nos causar medo, todas as pessoas a adoravam e se chamava Doninha. Havia festas todas as semanas no clube Municipal e se chamavam tertúlias. Tinha em Zé do Bar os melhores cachorros quentes da cidade. E tinha o Bar Boleta e o Bach Chopin. Tinha gente nas calçadas e nem eram necessárias câmaras de vigilância. Todos fins de tarde dava gosto ver o casal Gena e Nelson Montenegro caminhando até nossa casa, trinta ou cinquenta metros apenas, ele assoviando alguma valsa como 'Branca' ou 'Lábios que beijei' e ela conversando com seu cãozinho de nome Dayán porque tinha um sinal negro em um olho e lhe lembrava o general israelense Moshe Dayán que usava uma venda no olho direito. Tinha alfinins em junho. A tevê era novidade e quando saía só som sem imagem era para Edzés que a cidade inteira acorria. Tinha os famosos táxis da cidade, o mais tradicional era o de Arnaud Abreu, pessoa boníssima e muito querida por todos e tinha os táxis que faziam a linha diária Assu/Natal/Assu - os de François e de Camburão. Tinha festa de debutantes e churrascos fartos para quem passava no vestibular em Natal. Tinha Zelinha Tavares puxando as mais belas cirandas que um humano poderia apreciar naqueles tempos. Tinha os grudes, raivas e suspiros quentinhos vendidos durante a tarde por dona Martinha. Tinha Chisquito com seu paletó de linho branco que até o século passado lá no campo 'inda era flor. Tinha Barão esporeando seu cavalo. Tinha os animados banhos nos tanques do Baldum e no pequeno açude da fazenda Novo Mundo. Tinha reuniões do Lions Clube e da Maçonaria. Tinha em junho o jornalzinho de fofocas - 'A Mutuca' circulando. Tinha Solonzinho vendendo suas Flor-do-Vale ainda quentinhas é muito disputadas. As brigas de marido e mulher corriam a cidade inteira. Uma destas dava conta de um jovem casal em que a mulher por não achar lugar melhor para esconder o revolver do marido colocou-o na geladeira, no congelador, entre caçambas de gelo. E lá ficou duas semanas! Outra de mulher que foi 'pastorar' o marido entrar no motel com a amante. Tinha recepção festiva no CNSV para Gena Montenegro quando, em 1972, foi eleita para a Academia de Letras do RN. Tinha visita de Frei Damião na cidade e a cidade vivia suas romarias de fiéis. Tinha uma chuvinha qualquer e já se dizia que era inverno na cidade. E dos bons. Tinha a Adega do seu Lacerda com aqueles inesquecíveis banhos embaixo dos imensos pilares da ponte. Tinha o 'Majó' Montenegro, imperador absoluto do Reino da Picada. Tinha famosos banhos de tanque no Farol. Tinha boias feitas de câmeras de pneus de caminhão com gente em cima se divertindo nas geladas águas do açude do Memdubim. Tinha um belo casal de namorados: Zezinho Abreu e Aninha de Dr. Nelson Inácio dos Santos. Tinha a voz acolhedora e tão afinada de Laura Alves. Tinha gente que por ostentar ter dinheiro era logo chamado doutor. Tinha o humor sagaz, permanente, inteligente e oportuno do grande prefeito Golinha. Tinha professores excelentes como dona Auri, Lurdinha de Mané Calixto, Josélia, Rubian, Deú e Nanã Pimentel, doutor Noé, Severino Bôinho, Baco, dona Helena Antonow Centeno - gaúcha e também a mais linda professora que um dia pôs os pés na calorenta mas hospitaleira cidade. Tinha concurso para se escolher a mais bela voz do Vale no Instituto Padre Ibiapina. Tinha o Colégio Estadual e o Ginásio Pedro Amorim. Tinha vaquejada e suculentas comidas de milho verde nas barraquinhas. Passava 'Eu transo, Ela transa' com Sandra Brea no Cine Theatro Pedro Amorim. Tinha nos velhos recreios do CNSV os Novos Baianos cantando 'Preta, pretinha'. Tinha passeatas dos verdes bacuraus e dos vermelhos fechadores, com Olavo e Edgard Montenegro disputando décadas a fio e benquerença do povo de Assu. Tinha as moças que fugiam de casa, sinal que os pais não aprovavam seu namoro, passavam a noite fora com o namorado, e geralmente se dizia que se mandavam pras bandas do rio Assu e fato é que, no dia seguinte, logo corria a notícia, sempre com as tintas de escândalo, dando conta 'que a fugitiva iria se casar de imediato'. Tinha Padre Canindé, possesso, vociferando sermões com promessas do fogo do inferno pra toda gente mais chegada a uma fofoca, ou a unas cem mil maledicências. Tinha Cecéu Amorim fazendo quase tudo com um braço só que mais parecia que tinha era uns quatro braços, tipo aquelas divindades hindus que vim a conhecer em Nova Delhi, na Índia, muitos anos depois. Tinha jogo de voleibol no CNSV nas velhas tardes de sábado e domingo de uma cidade em que a juventude nada tinha pra fazer à tarde. Tinha a rádio de Cabassis (Herval Tavares) que possuía apenas um alto falante estridente operado pelo 'mago véio' Hermes e que quebrava o belo silêncio da velha cidade e azucrinava a conversa de todo mundo. Tinha as velhas famílias que quando morria o pai ou a mãe vestiam-se preto em luto fechado por todo um ano mesmo naquele clima infernal. Tinha um rábula chamado Lou que se fosse francês seria chamado filósofo e se vivesse no século XIX seria amigo de Nietzsche. Tinha enterros dramáticos como o de Baco com a cidade aturdida cantando 'A Viagem', cumprindo assim um dos últimos pedidos do jovem que atentou contra a própria vida e que era querido por todos. Tinha um grupo de escoteiros comandado por Padre Canindé e por Bibito. Tinha quatro farmácias principais na cidade - a de Horacinho Cunha, a de João Branco, a de Pedro e a Continental, de Zé Diógenes. Tinha o posto de gasolina de um velhinho magricela chamado Ricarte Legítimo. Tinha um cantor de vozeirão que nada sabia de inglês, mas só gostava mesmo era de cantar em inglês - "Baby desce daí se não tu morre". Seu nome? Mané Raposa. Tinha o Café Semar vendido ali na avenida João Pessoa. Tinha blocos de carnaval levados a sério: Selenistas, Foliões, Futuristas, Abutres, Ki-chêcho. Tinha o lendário Chico Branco (mas qual cidade não tinha o seu Chico Branco?). Tinha desfiles de 7 de setembro muito concorridos com cada colégio e escola rivalizando na qualidade do uniforme, no ritmo da marcha, na música executada pela banda. Tinha as lojas Varieté, Pérola, Corália calçados, Betty's boutique, Loja de Oscarzinho. Tinha um colégio que formava todas as novas gerações de assuenses afluentes: o sempre bom CNSV, a quem devo tudo o que aprendi na vida. Tinha o afetado e ótimo fotógrafo Teté, espécie de Denner Pamplona, divertido jurado do Programa Flavio Cavalcanti com o seu "é um luxo!". Tinha venda de senhas para bailes com Alerta 5, depois Sui Generis, Impacto 6, Os Vips. Tinha a cidade toda fissurada nas gravações do filme 'Jesuíno Brilhante, o cangaceiro romântico', dirigido pelo assuense William Cowbett, filme onde Solonzinho era juíz, Pedro Cícero de Oliveira, dono de mercearia e os casal principal era os famosos Vanja Orico e Leonardo Villar, além de Rodolfo Arena, de 'O Ébrio'. Tinha Joricene da Receita, Adonias da Coletoria, Edmilson da Cooperativa, Geraldo Dantas do BB, Amarílio do INSS. Tinha os mistos que faziam a linha Assu/Carnaubais/ Assu de Zé de Anna e do Zezinho do Misto. Tinha a matriarca que determinava quem fazia parte da sociedade assuense e quem não. Tinha a miss mais bonita do nordeste brasileiro: Zuíla Ramalho. Tinha os médicos da cidade: Fernando Rosendo, Nelson Inácio dos Santos, Benvenuto Gonçalves, Noé Rogério da Costa, Gileno Cachina Bezerra, Roberto Rufino de Magalhães, Alexis Pessoa, Doutor Sales, Pedro Dantas. Tinha milhões de lacerdinhas entrando nos olhos de todo mundo que passeava na praça Getúlio Vargas. Tinha o salão de beleza de Lilita e Verinha. Tinha em cada casa mais remediada um tapete de couro de vaca estendido no chão da sala de visita. Tinha o homem mais rico da cidade, o boa pinta e eterno solteirão Tião Diógenes. Tinha Purueca pedindo a bênção a dona Gena Montenegro e ela respondendo toda feliz "Deus te abençoe meu lindo!". Tinha a velha tipografia de Cabralzinho. Tinha a praça da Carnaubinha. Tinha o riso farto e camarada do bom Zézinho André. Tinha o americano bonachão David Knoll incendiado pela ideia de produzir frutas para exportação em todo o vale do Assu. Tinha Roque perambulando pela cidade e com dus bolsas de palha, uma para receber donativos e outra, furada para colocar os 'perdoe" que recebia. Tinha a fábrica de mármores da Simwal. Tinha o cartório de Agenor. Tinha quadra de futebol de salão defronte à matriz de São João Batista antes que o prefeito construísse ali o tal famoso 'buraco do Prefeito'. Tinha grandes canecas de chope de bailes do Lions Clube em cima da geladeira. Tinha gente engraçada como Papachina. Tinha a Leão dos Tecidos de Neide Almeida. Tinha as beatas e carolas dona Ofélia e Donatila para defender a cidade inteira dos pecados de todos os tipos. Tinha Renato Caldas inspirando a juventude em sua boêmia madrugada afora. Tinha Xanduzinho todo paramentado de bispo em sua mini-catedral toda estilosa encravada ali no início da rua Manoel Montenegro. Tinha carnavais inesquecíveis com lança-perfumes, rainhas do carnaval e Edmilson como eterno rei Momo. Tinha toda a comoção de uma cidade em prantos, inconsolada, com a partida precoce do muito benquisto Oswaldinho Amorim, o pioneiro e grande pensador do potencial agrícola do Vale do Assu. Mas o melhor de tudo era que todos os que amávamos estavam ainda vivos, muito vivos. Eles já se pareciam eternos porque pressentiam que eram, na verdade, simplesmente eternos, sabiam que o tempo passaria por eles sem lhes diminuir o brilho e beleza de suas vidas. Sou de minha infância como se é de uma cidade. E nessa cidade-infância quando se saía desta vida se entrava no tempo que não tinha início nem fim - no vasto tempo do encantamento.
Sim, era uma vez em Assu.

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