segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

SINHAZINHA WANDERLEY, POETA E EDUCADORA

TĆ­tulo fotografia do blog.


 

Por Ezequiel Fonseca Filho*

Conheci Sinhazinha Wanderley sempre a mesma. A idade e a doenƧa que a levou ao tĆŗmulo, nĆ£o mudaram a sua fisionomia.

Alegre e jovial jamais a vi triste, apesar dela dizer o contrƔrio em seus versos.
Baixinha, tipo brevelĆ­neo, constituiĆ§Ć£o robusta, andar sacudido e expressĆ£o mediata, sempre tinha uma histĆ³ria a me contar quando nos avistĆ”vamos. Cabelos brancos, heranƧa de famĆ­lia, cortava-os Ć  la garƧone e repartia-os ao meio como os rapazes da Ć©poca. Tez morena clara, sem pregas e manchas, tinha os olhos pequeninos.

Melhor do que nĆ³s, porĆ©m, Sinhazinha Wanderley fez o seu retrato em versos e diz:

Eu sou um ser pequeno, amorenado
De Ć³culos ao nariz e pisar manso
O cabelo cortado e todo branco
Sou mesma um tipo amarrotado.

Trajo um vestido azul jĆ” desbotado
Nunca rio, meu riso nĆ£o Ć© franco
Evito tropeƧar nalgum barranco
Por ter um pƩ jƔ quase deslocado.

Uso tĆŖnes, um par em cada mĆŖs
Eu sĆ³ os compro a XandĆŗ, por cada vez
Que os outros estĆ£o esburacados

Passeio nas calƧadas, pau na mĆ£o,
Procurando fazer a digestĆ£o
Quando engulo Ć  tardinha algum bocado.

Essa mania de retratar em versos parece um mal de famĆ­lia: Seu pai, Dr. Luioz Carlos, abre seu livro "Lira do Amor" com um perfil em versos e sua sobrinha, Carolina Wanderley, faz o mesmo em seu livro "Alma de Versos".

Sinhazibnha Wanderley quando saĆ­a Ć  rua, a sua maior preocupaĆ§Ć£o era com os cachorros aos quais tinha horror e medo. Se por acaso encontrava um desses animais pela via pĆŗblica, nĆ£o vacilava, entrava pela casa que se lhe deparava.

JĆ” no Ćŗltimo quartel de suas existĆŖncia, usava uma bengala talvez uma reminiscĆŖncia dos antigos tempos de seu pai. Dizia entĆ£o que aquele bastĆ£o servia-lhe de amparo e defesa quanto aos cachorros. Nunca se viu, no entanto, uma reaĆ§Ć£o de sua parte diante dos mais feroz representante da famĆ­lia canina.

Filha de Dr. Luiz Carlos Wanderley e sua esposa Francisca Carolina Lins Wanderley, foi, entretanto, adotada pelos seus tios Francisco Justiniano Lins Caldas e sua mulher Umbelina Wanderley Caldas, na companhia de quem fez moƧa.

Nessa idade, escreve:

Palpita o coraĆ§Ć£o, de manso, medo,
Dentro de um sonho virginal, formoso...
HƔ sorrisos em festa e um dulƧuroso
Poema santo de um gentil segredo.

A brisa beija as franƧas do arvoredo
Trinam aves um hino langoroso...
E de ilusƵes o sonho vaporoso
Esplende meigo, doce, grato, ledo.

E quando, enfim, do coraĆ§Ć£o se evola
A pureza da crenƧa que consola
O desalento, a mƔgoa, o pranto, a dor

VĆŖ-se que d´alma se arredia agora
A luz tĆ£o bela quanto a luz da aurora,
O sol, sem nuvens, do primeiro amor.

Seu nome em cartĆ³rio Ć© Maria Carolina Wanderley Caldas, porĆ©m em seus versos sempre subscrevia o da intimidade, Sinhazinha Wanderley, e dizia com um sorriso malicioso, "Ć© para nĆ£o confundir os meus versos com os de Mariquinhja", sua sobrinha - Carolina Wanderley.

Nasceu para as artes. Adorava a mĆŗsica. Era fĆ£ do verso. Enamorada de tudo que era belo na natureza.
Da revista aƧuense "ATUALIDADE!, ediĆ§Ć£o N. 31, de 3 de setembro de 1950, extraĆ­mos da secĆ§Ć£o - Arte, MĆŗsica e Poesia - o soneto abaixo de sua autoria:

Deus fez a luz, e a virgem Natureza
Trajou sorrindo as vestes cor de prata
Mensageira do Bem, ela desata
O argĆŖnteo vĆ©u por toda redondeza

Deus fez do cƩu, um manto de turqueza
O sol, astro que os astros arrebata,
O sol, o salso mar, a verde mata
Fez a lua ideal, nĆ­vea princesa

Deus fez o homem, deu-lhe inteligĆŖncia,
O homem pediu mais forƧa, ciĆŖncia
Riqueza, amor, enfim, graƧas a flux!...

Sendo, porƩm, mortal insaciƔvel
Fitando um dia, o espaƧo imensurƔvel
Teve inveja do sol, pediu mais luz.

A ConceiĆ§Ć£o Amorim, Sinhazinha dedicou este soneto intitulado "Ao Luar".

Do firmamento azul na tela transparente
Desponta docemente a lua desmaiada
E garbosa desprende a coma desgrenhada
Orvalhando de luz as fĆ­mbrias do oriente

Lhe envia um terno afago a brisa perfumosa
Que beija brandamente a noiva peregrina
A namorar do lago a face cristalina,
Que a medo lhe retrata a face esplendorosa

Sinhazinha Wanderley
ConstelaƧƵes gentis de estrelas de esmeraldas
Lhe tecem com prazer belĆ­ssimas grinaldas
Num sublime transporte de mƔgico fulgor

E a lua vaga errante na esfera do infinito
Levando o lenitivo ao peito do proscrito
Vertendo a inspiraĆ§Ć£o na mente do cantor.

Sinhazinha Wanderley nĆ£o tem livros publicados como seus irmĆ£os Segundo, Celestino e Ezequiel e as suas sobrinhas Palmira e Carolina. Deixou inĆ©ditos - Musa Sertaneja -, Torvas Infantis e Lira das Selvas.

Seus versos estĆ£o dispersos pelos jornais e revistas da terra que lhe viu nascer. Outro soneto dela:

PeƧo um retalho verde Ơ natureza
Para enfeitar meus versos, quando escrevo
Tudo que penso e sinto, nĆ£o descrevo
Nem posso expressar com bem clareza

OuƧo as aves trinarem na deveza
PorĆ©m, a decantĆ”-las nĆ£o me atrevo
Das flores d´alma nem sequer um Trevo
Brota gentil! Porque tanta tristeza?!

Mas, eu nĆ£o sei, porque, mesmo sorrindo
Os espinhos da dor vĆ£o me ferindo
O coraĆ§Ć£o deserto e a alma triste.

A morte de OtĆ”vio Amorim, no dia 22 de julho de 1943, na capital do Estado, em consequĆŖncia de um atropelamento de automĆ³vel, em frente ao atual ColĆ©gio Salesiano, causou grande consternaĆ§Ć£o na terra de seu berƧo. O saudoso desaparecido deixou na orfandade, dois filhos em tenra idade - Perceval e Margarida -. Sinhazinha Wanderley fez entĆ£o estes versos, a Margarida:

Ontem foi branco, hoje Ć© preto,
Que fatal contradiĆ§Ć£o!...
Ontem, foi riso, alegria,
Hoje tudo e nostalgia,
Trevas junto ao clarĆ£o.

Ontem, natal radioso,
Aurora e resplandecer,
Hoje, o luto, a orfandade,
O triste pranto, a saudade,
O desalento, o sofrer!...

Ontem, cantos, esperanƧas,
Poemas de santo amor,
Beijos, carĆ­cias paternais,
Hoje, sĆ³ benĆ§Ć£os maternas
Aliviam tua dor.

Mas, Deus criou a esperanƧa
Criou o cƩu de porvir
Confia, crĆŖ, Margarida,
Na trajetĆ³ria da vida
HƔs-de ser feliz, fruir.

A virgem MĆ£e da bonanƧa
Te envolve em cerĆŗleo vĆ©u...
Manda-te o riso ao gemido
E o teu papai tĆ£o querido
Manda-te bĆŖnĆ§Ć£os do cĆ©u.

Foi professora do Grupo Escolar Te. Cel. JosĆ© Correia, desde p ano de sua fundaĆ§Ć£o. Mais de uma geraĆ§Ć£o recebeu seus ensinamentos. Amava profundamente seus alunos. Depois de aposentada, frequentava diariamente as aulas, conversando e brincando com a garotada de quem dizia nĆ£o poder se ausentar.

Antes de professora do Grupo exerceu o cargo de professora particular, administrando conhecimentos a uma plĆŖiade de jovens, hoje com profissĆ£o definida no meio social e cultural de sua terra.

A poesia, entretanto, era os eu fraco. Seus versos, ora tristes, ora jocosos. Escrevia versos para si e para os outros. NĆ£o havia um batizado, festas de aniversĆ”rio, bodas de casamento ou outro acontecimento social em que nĆ£o estivessem presentes as quadrinhas de Sinhazinha Wanderley.

JĆ” velha, alquebrada pelos anos e pela insuficiĆŖncia cardĆ­aca que a vitimou, pobre, morando em companhia de duas outras velhas escrevia aos seus ex-alunos e amigos em versos.

Depois de seu pai, talvez tenha sido Sinhazinha Wanderley quem mais compĆ“s benditos e ladainhas para serem cantados na igreja de SĆ£o JoĆ£o Batista do AƧu... Vejamos uma Salve Rainha.

Salve rainha
Vida e doƧura
Risonha e pura
Virgem de amor
Virgem que trazes
O alĆ­vio santo
Ao nosso pranto
A nossa dor.

NinguƩm existe
Que nĆ£o te adore
E orando, implore
A graƧa e a luz.
Luz da esperanƧa
Serena e doce
Que vida trouxe
O teu Jesus.

Tu Ć©s a autora
Que acende os trilhos
Nalma dos filhos
No amor dos pais
E que transformas
Em riso e flores
As nossas dores
Os nossos ais.

Salve Rainha
Doce esperanƧa
Luz de AlianƧa
Da terra e cƩus
MĆ£e dos que sofrem
Desamparados,
Dos desgraƧados
E MĆ£e de Deus.

Durante muitos anos, Sinhazinha Wanderley regeu o cĆ“ro da igreja de SĆ£o JoĆ£o Batista. Vejamos outra composiĆ§Ć£o mĆ­stica. Agora Ć© uma Ave Maria para ser cantada na Missa:

Vindo povo, colher flores
Cantar hinos de harmonia,
Entoando mil louvores
A sempre Virgem Maria,
Ave Maria

Quando nos campos amenos
Vai fugindo a luz do dia,
Nesta hora de saudade
Quando Ć© doce essa harmonia
Ave Maria

Quando o nauta nas vagas
JĆ” nĆ£o tem rumo nem guia
Invoca a Estrela dos Mares
SaĆŗda a Virgem Maria
Ave Maria

Quando o pecador, do crime
Sofre dura tirania
Sente ainda uma esperanƧa
Invocando a Virgem Maria
Ave Maria

Quando o pobre aflito geme
Pelo pĆ£o de cada dia
Com o filhinhos de joelho
Recorre a Virgem Maria
Ave Maria

Em qualquer perigo ou dor
Na tristeza ou na alegria
Sempre na vida ou na morte
Invocamos a Virgem Maria
Ave Maria

Sinhazinha Wanderley era uma grande devota de Nossa Senhora. O mĆŖs de maio para ela, era o mĆŖs das inspiraƧƵes. Em tudo que lhe oferecia a natureza, de grandioso, de belo, era motivo para exaltar a Virgem Maria. A 19 de maio de 1927, ela escrevia e musicava mais um hino:

Os louvores que entoamos
Aceitai Virgem Sagrada
MĆ£e celeste, abenƧoada
Do contrito pecador

Aqui vimos MĆ£e querida
Consagrar-te o nosso amor.

Vossas filhas devotadas
VĆŖm suplicar-vos Senhora
Sejais nossa protetora
Quer no prazer quer na dor.

Aqui vimos MĆ£e querida
Consagrar-te o nosso amor.

(...)

*Ezequiel Fonseca Filho foi quem escreveu aos 84 anos de idade, a primeira antologia dos poetas assuenses. Foi ele tambĆ©m prefeito do Assu, na dĆ©cada de trinta, tendo recebido em sua casa, onde hoje estĆ” assentado a Casa de Cultura, o presidente da repĆŗblica GetĆŗlio Vargas. Ezequiel foi tambĆ©m deputado estadual, presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, cargo que equivalia ao de vice-governador do estado.

(Texto do livro intitulado de "Poetas e BoĆŖmios do AƧu", 1984, de Ezequiel Fonseca Filho).

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