quarta-feira, 21 de novembro de 2007

A "FRUTILÂNDIA" DO VALE

(A crônica adiante é de autoria do poeta natalense Laélio Ferreira - publicada no jornal O Mossoroense, 2007).

Desajeitado e cabreiro, a roupa já sem o vermelho da poeira das viagem no jipe, bando-de-cuia tomado na pensão de Chicó, na flor dos meus dezesseis janeiros, à porta da residência modesta, bati palmas e gaguejei o indispensável "ô de casa". Tinha uma obrigação, um dever sentimental, sagrado, uma promessa a cumprir no Assu, naquele ano dos anos 50. Visitar, saudar o dono da casa, mestre de muitos sonhos e senhor incontestável da mais úbere, abundante, edênica, maravilhosa e fértil gleba de todo o Vale´- a "Frutilândia". A incumbência me fora dada por meu pai, Othoniel, anos antes convidado solenemente, insistentemente, para ser sócio, meio a meio, de um colossal empreendimento de fruticultura. Redenção econômica de toda a região, gerando riqueza, justiça social, inovando a produção de frutas. legumes, hortaliças, tudo em grande escala, gigantescas proporções. Os pobres sairiam da miséria, teriam moradia, grandes vilas operárias, escolas, assistência médica, futuro. Largariam os barões da cera, que nada plantavam, viviam em Natal jogando baralho no Natal Clube, tomando uísque, enriquecendo Maria Boa, passeando no Rio de Janeiro - impecável ternos de linho branco, lustrosos, gordos como bispos. Moderníssimas máquinas, escavadeiras imensas, dragas descomunais - rebocada desde Roterdã - abririam largo e profundo canal, em linha reta, de Assu a Macau. Ali, mar adentro, plantar-se-iam modernos, imponentes, equipados cais, frigoríficos, grandes armazéns. Luzentes guindastes, esteiras rolantes, saciariam a fome das bocarras dos porões das grandes embarcações da própria Companhia, espalhando por Oropa, França e Bahia cajus, mangas, pinhas, araticuns, mangabas, romãs, laranjas-cravo, abacaxis, maracujás - os dúlcidos e tropicais produtos do gigante complexo agroindustrial da biliardária sociedade CALDAS & MENEZES... De volta ao Assu e à dura realidade, de novo bati palmas na soleira da casinha modesta do senhor da "Frutilândia", naquela rua do Assu, naquela era dos anos cinquenta. Apareceu o amigo do meu pai, o sócio do sonho tão sonhado, tão detalhado, idealizado nas conversas dos dois. Disse-lhe quem era, fez-me uma festa daquelas, passando, suavemente, a mão na minha cachola sonhadora. Era magro, gestos nervosos, rápidos. Dando o nó na gravata, convidou-me a entrar, risonho, gentil, hospitaleiro. Calçava, notei, uma daquelas botas de feira. Calça, camisa, colete - tudo amarfanhado, encardido. Guiou-me em direção à cozinha, por uma picada, uma vereda aberta numa mata fechada de ferro-velho, pacotes de amarelados jornais e uma imensidão de garrafas até o teto - um "caminho de Santiago" que, como peregrino, perpassei, com medo de lacraia e caranguejeira. Enquanto conversávamos, ferveu água e serviu-me um café saboroso, pegando fogo, coado de um pano que devia ter uns bons anos de uso diário e constante. Na minha idade, não tinha engenho, nem arte e nenhuma tendência para falar sobre poesia ou literatura com o idealizador de "Frutilândia". Mesmo que a minha casa, em Natal, vivesse, pululasse em certos dias, cheia de literatos e candidatos a poeta, aperreando Othoniel sobre coisas de metrificação, leituras, autores e outras milongas mais - alguns deles pedindo remendos em versos de pé-quebrado. Ficava só cubando, sem pigorar, quem era besta? Sem anuência ou conhecimento do dono da casa, tinha cometido, já, no Atheneu, algumas glosas sacanas e "burilado" uns três ou quatro sonetos decassílabos à moda de Augusto dos Anjos - coisas horrorosas... Na cozinha acolhedora, o cavaco, o bate-papo, limitou-se, pois, às notícias da capital, aos meus estudos, `saudação do "sócio" de Natal, à mutua e sincera admiração entre os dois, às amenidades. Nada sobre a "Frutilândia". Nada, também, acerca da razão social Caldas & Menezes". Ele entretanto, já na despedida - lembro bem - deu umas boas cutucadas nos políticos do Estado e de outras plagas, pilheriando, rindo com gosto, divertido. Sol descambando, da porta da sala, do início do labirinto de ferro velho, jornal e garrafa de todo tamanho e cor, veio o chamamento: "Seu João, tá na hora!" Saímos. Era um meninote, chapéu-de-couro atolado na cabeça grande, cara de janduí. O homem bom me pediu licença e retornou aos cafundós do seu tugúrio. Voltou lépido, brilho nos olhos, vestindo um paletó tão encardido quanto o restante da indumentária. Numa das mãos, um surrado bisaco de lona; noutra, uma lazarina impecável, ajeitada mesmo - oi cano brilhando mais do que espinhaço de pão doce, a coronha envernizada, bonita como os seiscentos. O Poeta João Lins Caldas, sublime sonhador, senhor de vaticínios para o seu Vale - o sócio do meu pai! - trancou a porta capenga da casinha. Apertou-me a mão, com calor, despedindo-se. Pediu desculpas pela pressa - ia caçar! Argumentou, cavalheiro, que aquela era a hora dos preás e das rolinhas, das nambus escondidas no panasco dourado. E lá se foi, engravatado, predador solene, feliz da vida - o sonhador. O curumiaçu, secretário e cúmplice, seguiu-lhe os passos ligeiros, no rumo - presumi - da "Frutilândia", procurando a presa miúda e saborosa..."

domingo, 21 de outubro de 2007

SOBRE O POETA DE "FULÔ DO MATO"

Renato Caldas (1902-1911) ainda é, penso eu, o nome literário potiguar mais conhecido em todo o Brasil. Foi ele "que deu nome ao Rio Grande do Norte nas letras nacionais", publicando em 1939, o seu livro de estréia intitulado "Fulô do Mato", escrito em linguagem genuinamente matuta.

O poeta que aparentava simplicidade, viveu uma juventude andeja, sem endereço certo. Quando moço, bebia inveteradamente. Seresteiro da velha guarda, bonachão, brejeiro, "miolo de aroeira, vivo como um pé de vento", no dizer de Câmara Cascudo com quem ele, Renato, conviveu na intimidade.

O Brasil, Renato "dando expansão ao seu temperamento cosmopolita, conheceu de ponta a ponta, nas suas intermináveis andanças de romântico caminheiro". Nas suas viagens pelo Nordeste, ele se apresentava em palcos de cinemas, teatros e outros locais improvisados, declamando suas poesias irreverentes, amorosas, cantando emboladas e modinhas que também sabia produzir a seu modo.

Renato viveu parte da sua mocidade no Rio de Janeiro, onde trabalhou e conviveu com aqueles artifices dos melhores da Canção Popular Brasileira, como Sílvio Caldas (ambos consideravam-se parentes), Francisco Alves (O Rei da Voz), Noel Rosa, Almirante, entre outros. O músico Silvio - o responsável pela introdução da seresta na MPB -, no começo dos anos setenta, de passagem para Fortaleza, entrou na cidade de Assu/RN, para rever o velho amigo que não via há bastante tempo, acordando o poeta "cantando ao pé da janela numa típica serenata interiorana", como depõe João Batista Machado. O escritor Machado diz mais ainda que somente duas pessoas tiveram aquele privilégio: "Renato e JK".

Outro fato importante que engrandece mais ainda a sua biografia, aconteceu no início da década de 90. Virou poeta para inglês ver, pois, vários poemas de sua autoria estão traduzidos para aquela língua e publicados numa revista cultural americana intitulada "International Poetry Review (1991), volume XVII, número I, editada em Greensboro, Carolina do Norte, como por exemplo, o poema sob o título "Fulô do Mato", que diz assim:

Sá Dona, vossa mecê,
É a fulô mais cheirosa,
A fulô mais prefumosa
Qui o meu sertão já botô!
Podem fazê um cardume,
De tudo qui fô prefume,
De tudo qui fô fulô,
Quí nem um, nem uma só,
Tem o cheiro do suó
Qui o seu corpinho suô.
- Tem cheiro de madrugada,
Fartum de areia muiáda,
Qui o uruváio inxombriô.
É um cheiro bom, déferente,
Qui a gente sintindo, sente,
Das outa coisa o fedô.

O poeta conheceu com os seus olhos "o paladar e pé o seu sertão. O seus ouvidos já escutaram os gritos abafados pela fome de uma população flagelada e os arpejos sonoros de uma viola pontilhada; os seus olhos já viram os rios transbordando e já viram também, nos bebedouros esturricados, o gado morrendo de sede! Viu e sentiu o sertão: povo, solo, clima e paladar do seu trabalho", no seu próprio dizer. E um dia escreveu:

Venha ver seu moço, ói,
O que é fome no sertão.
Mecê, é lá da cidade,
Num tem a infelicidade,
De conhecê isso não.
Mas é bom sempre que vêja,
Pru móde me acreditá.
E, pru raiva, ou compaixão,
Dizê aos nossos irmão,
Qui viu o nosso pená.
... Mas sertão num é Brasí.
O Brasí, é lá pru sú.
Isso aqui é um purgatóro...
Quem mata a fome é o sodóro
E a sede é o mandacarú.

Os versos deste poeta eclético, versátil, retrata além da seca devastadora, a enxurrada que também castiga algumas regiões do sertão nordestino, bem como os amores fracassados. Tem irreverência, humor, malícia, como o célebre poema intitulado "Reboliço" (que na década de cinquenta o poeta potiguar Celso da Silveira declamou num certo programa cultural da Rádio Nacional, do Rio de Janeiro, além de ter sido recitado também pelo Poeta Vaqueiro Zé Praxedes nas apresentações que fazia pelo Brasil afora, e declamado pelo deputado federal Ney Lopes no plenário da Câmara dos Deputados, a propósito do falecimento do poeta em 1991). Eis o poema:


Menina me arresponda,
Sem se ri e sem chorá:
Pruque você se remexe
Quando vê home passá?
Fica toda balançando,
Remexendo, remexendo...
Pensa tarvez, qui nós véio,
Nem tem ôio e nem tá vendo?
Mas, se eu fosse turidade,
Se eu tivesse argum valô,
Eu botava na cadeia
Esse teu remexedô...
E adespois dele tá preso,
Num lugá, bem amarrado,
Eu pedia - Minha Nêga,
Remexe pro delegado.

As suas décimas (glosas) e trovas são terríveis, bem como as suas tiradas e boutades são picantes. Se tornaram famosas por todo o país, como essa que veremos adiante: Certo dia, ele submeteu-se a uma cirurgia na próstata, no navio hospital do Projeto Hop (da Marinha norte-americana que se encontrava no final dos anos sessenta, encalhado no Porto de Natal). Obtendo sucesso naquela operação, o médico logo lhe deu alta com a seguinte recomendação: "Seu Renato, o senhor está de alta, mas cuidado para não comer gordura. Ele olhou para Fausta, sua mulher que pesava aproximadamente seus bons cem quilos, dizendo: "Está ouvindo, Fausta, e agora?"

Certa feita, ao passar pela feira livre de uma certa cidade do interior nordestino, fora abordado por uma feirante vendedora de legumes. "Seu Renato. Faça um versinho para eu divulgar minhas batatas." E ele, Renato, de imediato escreveu num pedacinho de papel de cigarro, dizendo assim:

Batata, batata doce
Batata que o povo gosta,
Um quilo dessa batata
Dá vinte quilos de bosta.

Renato namorava um jovem chamada Maria da Conceição que, certo dia, regressou a São Paulo para passear e rever familiares, comprometendo-se com o poeta que retornaria em breve. Na hora da despedida, Renato entregou a sua namorada o seguinte bilhete em forma de versos:

Maria da Conceição
Faça uma boa viagem
E leve meu coração
Dentro da sua bagagem.

Passaram-se dias, meses, anos e nada de notícias de Conceição. Ao tomar conhecimento do seu paradeiro através de um amigo que ela, Conceição, teria se casado naquela capital paulistana, vingou-se logo que soube do seu endereço, remetendo para Conceição, o seguinte bilhete rimado:

Maria da Conceição
Você fez boa viagem?
Devolva meu coração
Que foi na sua bagagem.

E o mulherengo poeta no melhor de sua criatividade, escreveu no seu "Oiá Pidão", o poema adiante:

Os óio de Sinha Dona?
Ninguém pode arresistir.
Parece dois esmolé.
Qui só véve pra pedi.
Óios pidão desse geito,
Juro pro Deus, nunca vi.
Às vez, eu penso, Sá Dona,
Quando óio pra vancê:
Qui mecê tá é cum fome

E vergonha de dizê...
Eu tenho aquela vontade
De me virá em cumê.
Mas, tenho mêdo, Sá Dona,
Qui seja tapiação;
Pode mecê num tê fome
E fâzê judiação:
Pegá, amassá, mordê
E adespois largá de mão.









LUIZ CARLOS LINS WANDERLEY – 1831/1990, foi um dos primeiros poetas do Assu, primeiro médico e romancista do Rio Grande do Norte. Foi também...