Artigo
Um promotor envergonhado
Alexandre Gonçalves Frazão, 3º Promotor de Justiça da comarca de Assu/RN
Hoje (15/07/2010) estou profundamente envergonhado. Costumo assim encerrar minhas quintas-feiras, dia das audiências dos processos da Meta 2 perante a Vara Criminal de Assu/Rn.
A Meta 2, para quem não sabe, foi instituída pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ para que os órgãos jurisdicionais de todo o país julgassem em 2009 todas as ações ajuizadas até 2005 e que aguardavam prestação jurisdicional.
Pois bem. Sou titular da 3ª Promotoria de Justiça de Assu, e, enquanto promotor com atribuições criminais naquela comarca, realizo audiências todas as quintas-feiras com o objetivo de tentar, juntamente com a Juíza daquela comarca, encerrrar os processos criminais ajuizados até 2005.
A rotina desses dias da Meta 2 revela cruelmente a ineficiência da Vara Criminal de Assu no processamento dos crimes ocorridos naquela cidade de 2005 para trás. Revela também muito da precariedade das investigações (quando há alguma coisa similar a investigação) da Polícia Civil em relação aos crimes que são objetos desses processos, não se podendo esquecer a pouca vigilância que o Ministério Público devotou a muitos desses casos, por não haver, na maioria dos autos, qualquer reclamação de sua parte em relação à demora para a instrução e julgamento dos mesmos.
Tudo isso me deixa, ao final do dia, muito cansado, perplexo e desanimado, pela avalanche de impunidade que presencio, juntamente com a competente Juíza com quem trabalho (Drª Suzana Paula), sem nada podermos fazer para mudar o destino (inutilidade) da mioria dos feitos, restando os culpados impunes pela prescrição das penas ou pela absolvição pela falta de provas colhidas.
Mas hoje foi dose, como si diz. É que, pela primeira vez após doze anos do oferecimento da denúncia, foi ouvida a vítima de um caso que seria simples, facílimo de resolver. Ela foi esfaqueada por um filho de um então companheiro seu, atingida no olho, no tórax e no braço com uma faca de cozinha, além de levar inúmeras pauladas na cabeça. Não morreu, mas chegou perto. O agressor restou induvidosamente conhecido, pois era filho do companheiro da vítima e foi por ela logo identificado como o responsável pelo ato.
E então estava lá aquela velhinha, sem um olho, visivelmente ressentida por ter carregado no peito aquela situação até hoje impune. Seu choro contido, choro de quem olha para cima antes de desabar, choro represado por uma força interior enormente realizada por ela para manter a dignidade, comoveu-me. O agressor estava ali na sua frente e, segundo ela, nunca pedira desculpa pelo que fizera, inobstante o conhecimento entre ambos.
E pior, o provável futuro do processo é a prescrição de eventual condenação. Passaram já 12 anos do processo, sem que a vítima sequer fosse ouvida. A Polícia, além disso, não juntou um único boletim médico ou exame de corpo delito que materializasse as lesões, o que protelou ainda mais o feito. Tudo errado, tudo falho.
Para mim, apenas escrever tira um pouco do peso desse dia, em que fiquei mais triste do que de costume após as audiências da Meta 2, tudo porr causa da Maria das Dores (vejam que nome!). Ressentido. Fiz essa singela poesia:
Maria das Dores,
Nunca me esquecerei de você.
Com um olho só, você chorou,
Ressentida quando se lembrou
De que não trazia em si o perdão...
Perguntei-lhe, estupidamente, se havia esquecido tamanha dor.
Notei, então, o quanto de negação
Tudo ali para você representava.
Sua afetada visão,
Vítima de facadas,
Presenciava a desilusão da situação inacabada.
Após 12 anos de solidão,
Você era ouvida pela primeira vez,
Magoada, desprezada, maltratada,
Sem direito à menor e última das esperanças
De quem anseia por Justiça:
Sem direito a uma decisão,
Sem direito a uma condenação,
Totalmente esquecida.
* * *
Do Blog de Alderi Dantas: Há circuntâncias em que a indignação não é apenas um direito. É um dever do cidadão ante fatos deploráveis, que denigrem e estiolam a alma de uma nação. Ao promotor de Justiça Alexandre Gonçalves Frazão, suscitamos nossos aplausos por não “lavar as mãos” no exercício de sua missão .
A rigor, é importante explicar que o artigo foi publicado originalmente no Jornal de Hoje (Natal/RN), edição de 17/07/2010.
Agradecemos ainda a amiga, de quem o blog recebeu a cópia do artigo.
Escrito por Alderi Dantas às 16h04