O potiguar João Café Filho, conhecido em Natal como João Café
Como um dos motes do Blog é não a deixar ser esquecida, vamos a um
dos episódios menos estudados e mais controversos da história nacional: a
Novembrada.
Como se sabe, a história do Brasil pós-imperial sempre foi marcada
por sedições militares. A própria proclamação da República foi um golpe.
Desde então, quase sempre que os gorilas saíram das gaiolas, era sinal
de que a ordem democrática estava vindo abaixo. Foi assim em 1930, 1937 e
1964. Mesmo no golpe de 1946, a derrubada de Getúlio Vargas não estava
ligada exatamente aos pendores democráticos dos militares, mas ao fato
de que a eleição seguinte colocaria na presidência ou um general (Eurico
Gaspar Dutra) ou um brigadeiro (Eduardo Gomes).
No entanto, numa história marcada por movimentos contra os poderes
constituídos, em pelo menos uma ocasião os militares saíram dos quartéis
para garantir a continuidade da ordem democrática. Foi a chamada
Novembrada.
Os tempos eram estranhos. Um ano antes, Getúlio matara-se com um tiro
no peito diante de um levante deflagrado pelo atentado da Rua Tonelero.
Associado aos militares que queriam derrubar Vargas, seu vice Café
Filho era visto com desconfiança pela população. O Ministro da Guerra,
Euclides Zenóbio da Costa, tinha articulado o Manifesto dos Generais, no
qual os oficiais pediam a cabeça de Getúlio. Tudo isso e mais uma
eleição na qual os dois principais candidatos representavam dois lados
opostos do espectro político: de um lado, Juscelino Kubitschek; do
outro, Juarez Távora. Enquanto JK representava de certa maneira a
continuidade do populismo de Getúlio Vargas, Juarez Távora – um
ex-tenentista – era a expressão máxima do conservadorismo e do
anti-comunismo das forças armadas.
Henrique Teixeira Lott
Para manter a normalidade institucional e, claro, salvar seu cargo,
Café Filho destituiu Zenóbio da Costa e colocou em seu lugar Henrique
Teixeira Lott, um oficial legalista muito respeitado no Exército. Para
manter as aparências, manteve as eleições marcadas para outubro de 1955.
Achava-se, então, que seria possível manipular o povo e convencê-lo a
votar em qualquer coisa que se opusesse à continuidade da Era Vargas.
Faltou combinar com os russos. Abertas as urnas, JK obteve 35% dos
votos. Como na época não havia segundo turno, JK levou o pleito, ainda
que a diferença para o segundo colocar (Juarez Távora) tenha ficado em
apenas 5% do total.
Obviamente, os golpistas de 54 não ficaram resignados com a derrota.
Valendo-se da circunstância constitucional que permitia eleições para
cargos majoritários sem a necessidade de maioria absoluta dos votos,
começaram uma campanha contra a posse de Juscelino. Ora dizia-se que JK
não obtivera o apoio da maior parte da população – o que era verdade,
mas, segundo a Constituição de 1946, paciência – ora dizia-se que o
“apoio comunista” à candidatura de Juscelino punha em risco a
continuidade da ordem democrática. No fundo, a questão era bem mais
simples: o candidato dos militares havia perdido.
Nos quartéis, o burburinho de agosto de 1954 havia voltado. Falava-se
abertamente em golpe e ninguém estava disposto a engolir JK na
presidência. Até que chegou novembro.
No dia 1º daquele mês, um coronel bem articulado chamado Bizarria
Mamede destampou a panela de pressão. Durante o enterro do presidente do
Clube Militar, discursou abertamente contra a posse dos representantes
eleitos. Segundo ele, a eleição de outubro consagrara uma “indiscutível
mentira democrática”, pois alçaria à condição de “mais alto mandatário
da nação” um postulante eleito pela “minoria”.
Lott fica possesso com a insubordinação. Quer punição imediata para
Mamede. Dentro das regras de hierarquia, Mamede deveria no mínimo perder
o posto de comando; no máximo, arrostar alguns dias de cadeia. Mas os
golpistas jogavam outro jogo.
O presidente Café convalescente, sendo visitado por Nereu Ramos e um militar
Dois dias depois, sob o pretexto de estar doente, Café Filho sai de
cena para dar lugar a Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados.
Afinal, não haveria quem acreditasse que não houvera rompimento da ordem
democrática se na presidência estivesse o vice que conspirara contra o
titular do cargo.
No segundo lance, o consultor-geral da República, Themístocles
Brandão Cavalcanti informa em parecer que Lott não tinha competência
para punir Mamede. Punição, se cabível, somente se viesse do presidente
da República.
No terceiro e derradeiro lance, Lott vai a Carlos Luz exigir a
punição pela quebra de hierarquia. Como Luz negasse o castigo, Lott
entrega o cargo. Não iria compactuar com indisciplina na tropa.
Sem perceber, Lott cumprira exatamente o roteiro previsto pelos
golpistas. Sabendo que sem o apoio do Ministério da Guerra qualquer
tentativa de golpe seria uma tolice, a remoção do marechal era condição
sine qua non para impedir a posse de Juscelino.
À noite daquele dia, oficiais um pouco mais astutos foram à casa de
Lott. Expuseram-lhe de forma didática a armadilha na qual caíra. E
rogaram: bote a tropa na rua e impeça o golpe que está em curso.
Lott ficou numa encruzilhada. Estava então na paradoxal situação de
ter de quebrar a legalidade para defendê-la. Após uma noite de insônia,
Lott ordenou à tropa que fosse ao Catete depor Carlos Luz. O golpe
contra a posse dos eleitos estava tecnicamente quebrado.
Em pânico, os golpistas ainda quiseram trazer Café Filho de volta.
Subitamente restabelecido da doença que o afastara da presidência, Café
Filho na presidência poderia significar novo risco às instituições
democráticas. Como onde passa um boi, passa uma boiada, Lott não
pestanejou: arrancou do Congresso o impedimento de Café Filho. No seu
lugar, colocou o vice-presidente do Senado, Nereu Ramos, leal a JK.
Lott passa em revista suas tropas
Com a ordem constitucional salvaguardada pelas baionetas de Lott,
Juscelino pôde assumir a presidência e o golpe foi adiado por nove anos.
Claro, os golpistas, os revisionistas históricos e até mesmo Elio
Gaspari enxergaram na Novembrada de Lott um golpe, mesmo.
A despeito da grita geral, Lott continua ostentando o título de único
militar brasileiro que foi às armas para defender a ordem democrática
contra militares golpistas.
Coisas do nosso Brasil…
Fonte –
http://blogdomaximus.com/2013/08/30/a-novembrada/