Morrer ou suportar a maior humilhação de sua vida. Entenda como o presidente mais adorado de nossa história chegou a esse impasse dramático em reportagem do biógrafo Lira Neto
Fonte – http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/acervo/getulio-auge-ao-suicidio-435272.phtml#.WF_NW_krLIWGetúlio Vargas chegou ao poder em 1930, depois de liderar uma revolução. Foi eleito em 1934. Em 1937, fechou o Congresso e se transformou em ditador. Mesmo assim, era adorado pelas massas, que acompanhavam, empolgadas, a transformação do Brasil em um país com grandes indústrias e leis trabalhistas justas – foi ele quem criou o salário mínimo, por exemplo. Ao final da Segunda Guerra, em 1945, quando a ditadura dos alemães e dos italianos foi derrotada pelas democracias da Europa e dos Estados Unidos, não fazia mais sentido ter um ditador no poder.
Getúlio convocou eleições e voltou para São Borja, no Rio Grande do Sul. Mas em 1951 ele voltou à capital, o Rio de Janeiro, reeleito, em grande estilo. Em 1954, Getúlio foi pressionado a deixar o poder. Parecia que ele não tinha escolha, a não ser renunciar. Mas ele tinha, sim. Às 8h30 da manhã do dia 24 de agosto, pegou seu Colt calibre 32 com cabo de madrepérola e, sentado na cama, de pijamas, apontou contra o próprio peito e atirou. Como é possível que um ditador tão popular que consegue se eleger de novo termine desse jeito?
A frase mais famosa da carta-testamento explica: “Saio da vida para entrar para a história”. Era isso mesmo. Se vivesse, Getúlio e sua família teriam que enfrentar uma humilhação pública tão grande que acabaria com a imagem que ele demorou a vida toda para construir. Ao se matar, escapou de tudo isso e virou um grande mito. Para entender por que ele estava tão perto da humilhação, basta pensar na madrugada de 5 de agosto, 20 dias antes de ter se matado. Era pouco depois da meia-noite, e o maior inimigo de Getúlio, o empresário e político Carlos Lacerda, entrava em sua casa, na rua Toneleros, em Copacabana. Alguém atirou contra ele, e dois disparos mataram o homem que o acompanhava, o major da Aeronáutica Rubens Vaz. Um projétil acertou o pé de Lacerda.
Muita gente não estava satisfeita com Getúlio. Um grupo de militares e empresários dizia que, com suas medidas populistas, o presidente queria levar o país para o comunismo. Aliás, essas mesmas pessoas disseram a mesma coisa quando, em 1964, derrubaram o presidente João Goulart. Nenhum adversário pegava tão pesado quanto Carlos Lacerda. Todas as evidências apontavam para o envolvimento de Getúlio e sua turma no atentado.
Evidências concretas
Parecia difícil provar a participação do governo nos tiros que mataram o major Vaz. Mas não era. Assim que as investigações começaram, no dia 6, um motorista de táxi apareceu na polícia dizendo que tinha levado um membro da guarda presidencial, Climério de Almeida, para o local do crime. Em vez de se explicar, Climério desapareceu. No dia 13, o pistoleiro Alcino do Nascimento foi preso e confessou ter atirado em Lacerda por ordem de Climério.
O caldo engrossou de vez quando Alcino disse à polícia que Climério estava agindo sob o comando de Lutero Vargas, filho de Getúlio. No dia 18, Climério foi preso. Com ele estavam 35 mil cruzeiros, e as notas eram da mesma série que já tinham sido encontradas com Alcino e com Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do presidente. No dia 21, o vice-presidente, Café Filho, sugeriu que os dois renunciassem. No dia 22, um grupo de brigadeiros do Exército publicou um manifesto pedindo a mesma coisa. Getúlio disse que jamais faria isso.
À meia-noite do dia 24 de agosto, os comandantes militares mandaram avisar o presidente que não havia mais volta. Se ele não deixasse o cargo por bem, seria deposto pela força. Exausto, Getúlio disse que marcaria uma reunião ministerial no dia seguinte. O general Mascarenhas de Morais, que ainda se mantinha ao lado do presidente, insistiu em fazer o encontro imediatamente. Às 4 da manhã, enquanto os ministros discutiam sem chegar a nenhuma conclusão, Getúlio abriu a agenda pessoal e rabiscou assim: “Determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se a ordem for mantida, entrarei com um pedido de licença”.
O fim
Depois da reunião, sozinho em seu quarto no Palácio do Catete, Getúlio não conseguiu pregar o olho. Foi procurado pela mulher e os filhos pelo menos três vezes entre o final da madrugada e o começo da manhã. O ministro da Justiça, Tancredo Neves, mandou para ele uma nota oficial em que o presidente se licenciava até que as investigações terminassem. Era só assinar, mas Getúlio nem quis ler. Quando soube que seu filho mais novo, Benjamin, seria preso por participar do atentado, ele se trancou em seu quarto. Às 8h30, um tiro ecoou pelo palácio.
“Getúlio tinha consciência de seu significado histórico. Seu último gesto precisa ser entendido dentro dessa dimensão”, afirma o historiador Jaime Pinsky, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre renunciar e encarar um longo processo na Justiça, ele preferiu virar mártir. Sua última artimanha política deu certo. Menos de um mês depois de sua morte, o caso do atentado foi encerrado e seus dois filhos suspeitos, Benjamin e Lutero, acabaram inocentados..
E assim Getúlio salvou sua imagem para sempre. Assim que souberam da morte, multidões saíram às ruas em todo o país. Enfurecidos, manifestantes destruíram a Tribuna da Imprensa, o jornal de Carlos Lacerda. Uma massa humana de 100 mil pessoas, a maioria chorando compulsivamente, acompanhou o caixão do presidente. Cerca de 3 mil pessoas sofreram desmaios, mal-estares e crises nervosas. Velado no palácio onde vivia, o presidente cumpria, assim, a promessa feita dias antes: “Só morto sairei do Catete”.
Dia 24 – As últimas horas do presidente
0h – O
minidtro da Guerra, general Zenóbio da Costa, chega ao Palácio do
Catete. Traz um ultimato assinado por 27 generais, exigindo a renúncia
0h30 – Da
sala de despachos, Getúlio manda chamar os ministros. Pega em uma gaveta
uma folha datilografada, assina-a a aguarda no bolso. Os demais não
sabiam, mas era a carta-testamento. O presidente sobe ao quarto
1h – Ao
redor do Catete, barricadas e soldados armados a postos para evitar uma
invasão. Getúlio, fumando seu indefectível charuto, desce à sala de
despachos, pega a caneta-tinteiro que estava sobre sua mesa de trabalho e
a entrega ao ministro da Justiça, Tancredo Neves, pedindo que ele a
guarde como lembrança daqueles dias
3h – Getúlio
reúne o ministério. (Dos 12 ministros, um – Vicente Rao, das Relações
Exteriores – não compareceu.) Além deles, estavam presentes a filha do
presidente, Alzira, a esposa Darcy e os filhos Lureto e Manuel Antônio.
Lá fora, aviões da Aeronáutica davam rasantes sobre o Catete
4h – Os
ministros não chegam a um consenso. Getúlio anota em sua agenda: “Já que
o ministério não chegou em uma conclusão, eu vou decidir: (…) entrarei
com um pedido de licença
4h20 –
Zenóbio sai com pressa para anunciar a decisão de Getúlio aos militares.
O presidente sobe ao quarto para dormir, enquanto Tancredo escreve uma
nota para a população.
4h45 – O
ministro Oswaldo Aranha, Alzira e o próprio Tancredo sobem ao quarto
para mostrar a nota a Getúlio. O presidente os recebe de pijama de
mangas compridas, na ante-sala de seu quarto. O país é comunicado, pelo
rádio, da decisão presidencial.
6h – Dois
oficiais chegam ao Catete, com uma intimação para Benjamin Vargas, irmão
de Getúlio. Ele é acusado de planejar o atentado contra Lacerda. Ele se
recusa e deixar o palácio. Sobe ao quarto do irmão, o acorda e conta o
que aconteceu.
7h – O
telefone toca. É o general Armando de Morais Âncora, que diz a Benjamin
que o pedido de licença não era suficiente. Os militares querem o
afastamento imediato do presidente.
7h30 – Benjamin vai ao quarto e comunica a reação dos militares. Getúlio diz que a situação é grave.
8h05 –
Contra seu costume, o presidente sai do quarto de pijama e desce até o
gabinete de trabalho. Um assistente percebe que ele volta com algo
volumoso no bolso: é um revólver Colt calibre 32.
8h15 – Como
fazia todas as manhãs, o barbeiro Barbosa entra no quarto. O presidente o
dispensa. O filho Lutero descansa em um sofá da ante-sala do quarto.
8h30 – O
presidente senta na cama, põe o revólver na altura do peito e puxa o
gatilho. O tiro acorda Lutero, que é o primeiro a entrar no quarto.
Depois entram dona Darcy e o médico Flávio Miguez de Mello. Getúlio tem
meio corpo para fora da cama e está morrendo.
8h35 – A arma ficou sobre a cama. Na mesinha de cabeceira, a carta-testamento. Ele morreria deitado, minutos depois.
Um baixinho vaidoso
Quando o gaúcho Getúlio Vargas nasceu, em 1882, dom Pedro II ainda governava o país. Quando morreu, em 1954, o Brasil era uma república industrializada. Em seus 72 anos de vida, Getúlio ainda foi deputado e governador do Rio Grande do Sul. Ninguém ficou tanto tempo na presidência quanto ele, 28 anos. Carismático, ele cuidada muito bem de sua imagem. Os fotógrafos tinham ordem de retratá-lo sempre de baixo para cima, para disfarçar sua altura. Ele só tinha 1,60 m, tinha um rosto redondo e era barrigudo. Mas era vaidoso. Nunca viajava sem uma maleta com cremes, loção de barba e meias de seda. Seu charuto virou marca registrada. Além disso, Getúlio era um grande conquistador. Sua amante mais famosa foi a vedete Virginia Lane, que era conhecida por ter as pernas mais bonitas do Brasil.Saiba mais
- O Segundo Governo Vargas: 1951-1954, Maria Celina Soares de Araújo, Zahar, 1982. Ajuda a entender a crise de agosto de 1954.
- A Era Vargas, José Augusto Ribeiro, Casa Jorge Editorial, 2001. São três volumes que contam a vida do presidente, da chegada ao poder ao suicídio.——————————————————————- Lira Neto nasceu em Fortaleza (CE) em 1963. Jornalista e escritor ganhou o prêmio Jabuti em 2007, na categoria melhor biografia, por O Inimigo do Rei: Uma biografia de José de Alencar, publicado pela Editora Globo. É autor também de Maysa: Só numa multidão de amores (Globo, 2007) e Castello: A marcha para a ditadura (Contexto, 2004).
- Do blog: https://tokdehistoria.com.br