Existe uma literatura que não pode aparecer em lugares que exijam certa contenção ou recato, pois o comportamento e a etiqueta de algumas pessoas não aceitam conhecê-la, fazer sua leitura e muito menos ouvi-la. Decerto por isso, o norte-rio-grandense Oswaldo Lamartine de Faria, quando da primeira edição de Uns Fesceninos (Rio de Janeiro, Artenova, 1970), na coleção “Erotika lexicon”, avisava que seu livro era “publicado especialmente para bibliófilos e colecionadores em edição fora de mercado”. As manifestações dessa literatura tanto se veiculam em poesia quanto em prosa, sabendo-se embora que a poesia fescenina tem maior ocorrência do que a segunda, porque a rima é de mais fácil memorização e divulgação.
Um mote bem-sucedido que leva a determinada estrofe fica martelando na cabeça de espectadores ouvintes e poetas que apreciam as diferentes modalidades da poesia popular, estando a poesia fescenina aí incluída. Para que alguém verseje sobre atos cotidianos que desafiem o pudor, que desvelem o escondido da genitália e que exponham situações do ridículo humano, basta que esteja em ambientes coletivos principalmente, na rua ou no bar, na cidade ou no mato, onde quer que ocorram flagrantes que desenredem o novelo popularmente satírico e criativo dessa poesia.
A segunda edição de Uns Fesceninos saiu em 2008 no Recife, pela Bagaço, organizada pelo poeta e professor pernambucano Carlos Newton Júnior. Reproduzida em fac-símile diretamente da primeira, a partir de um exemplar que continha anotações feitas minuciosamente à mão por Oswaldo Lamartine. Envolvendo parte da produção norte-rio-grandense do gênero, deste livro participam 17 poetas com breves contribuições, pequenos poemas quase todos acompanhados de um relato em forma de causo, para ilustrar o acontecimento que deu origem aos versos. O tom é invariavelmente jocoso, gozador, sem papas na língua ou sem peias no lápis de quem os criou.
Os poetas que praticam a poesia fescenina glosam sobre situações as mais inusitadas. Há o caso de um delegado que queria empastelar um jornal interiorano, quando alguém da redação escreveu circunstancialmente num papel qualquer em forma de paródia “Liberdade! Liberdade!/ Onde estás, fela da puta?” O autor do desabafo foi preso pelo delegado da cidade, um sujeito que atendia por Aguiar, e logo após o poeta Damasceno Bezerra cometeu estes versos em cima daquele mote: “Não sei, ao certo, a verdade,/ Do fato como se deu./ Sei que Mesquita escreveu:/ Liberdade! Liberdade!/ E, por infelicidade,/ Um guarda-civil recruta/ Vai entrando, à força bruta,/ Sem nada o interceptar,/ Chamando por Aguiar:/ Onde estás, fela da puta?” A encomenda de um bodegueiro para conter e prevenir os seus devedores resultou na quadrinha de Jayme Wanderley: “Para não haver transtorno/ Aqui neste barracão,/ Só vendo fiado a corno,/ Filho da puta e ladrão.” Os versos anônimos de um ex-detento permitem que ele se vingue impiedosamente do juiz que um dia o condenou. A autoridade funcionava como barbeiro nas horas vagas, mas um barbeiro especial: “Eu afirmo e dou-lhe fé/ com toda convicção:/ Já tem outra profissão/ o juiz de São José./ Tosou Maria José,/ raspou-lhe as beiras da greta,/ por causa dessa faceta,/ é que todo mundo diz,/ que ele, além de juiz,/ é barbeiro de boceta.”
A morte não é levada a sério por alguns poetas. No cotidiano, de resto, pode-se comumente observar pessoas rindo em velórios, bebendo cachaça, fumando e arriscando um namoro. O poeta José Areias, numa roda de cachaça, ouviu de um dos boêmios presentes uma quadra de outro poeta, Américo Falcão: “Não há tristeza no mundo,/ Que se compare à tristeza/ Dos olhos de um moribundo,/ Fitando uma vela acesa”. Areias arrematou com esta quadrinha infame: “Não há tristeza no mundo,/ Que se compare à tristeza/ Do sujeito olhar um fundo,/ Sem ficar de vela acesa”. A última estrofe do soneto “Enterro do pecado”, de Abner de Brito, sugere um rito profano ao comparar o corpo da mulher a um cemitério no qual, numa metafórica sexualizada, será enterrado o pecado: “Abre os teus braços, mata-me desperto,/ Se tens no corpo um cemitério aberto,/ Vamos fazer o enterro do pecado…”.
A condição do pobre, jamais esquecida em poesia, inspirou os versos de Renato Caldas a partir do mote Se merda fosse dinheiro/ Pobre nascia sem cu!: “Talvez não tivesse cheiro,/ Servia de brilhantina./ Ninguém cagava em latrina/ Se merda fosse dinheiro./ Todo mundo era banqueiro!/ Sanitário - era baú,/ Porém aqui no Assu,/ A terra do interesse,/ Se tal coisa acontecesse/ Pobre nascia sem cu…”. O mesmo Renato Caldas, desejando publicar um livro, soube da presença do jornalista Carlos Lacerda em visita ao Rio Grande do Norte, no início da década de 1950. Lacerda estava a promover a campanha contra a seca nordestina “Ajuda teu irmão”, e o poeta aproveitou para sapecar a estrofe: “Seu doutor Carlos Lacerda/ Já que inventou essa merda/ De Ajuda a teu irmão,/ Publique Fulô do Mato,/ Ajude ao velho Renato,/ Poeta lá do sertão…”.
Ainda que seja feita de palavrões, irreverência, sátira e ataque ao duvidoso bom gosto pequeno-burguês, essa poesia continua a transitar de boca em boca, atravessando gerações, cidades e países. Seria difícil alguém imaginar que, por trás da seriedade de um Manuel Bandeira ou de um Carlos Drummond de Andrade, havia os cultores de versos altamente eróticos, sem excluir cargas do obsceno e do pornográfico. Mais recentemente, na obra de um Glauco Mattoso, encontra-se toda uma literatura vinculada ao calão fescenino. Mesmo os que hipocritamente se voltam contra e olham de viés construções desbocadas e chulas, motes lascivos e às vezes impróprios, se tiverem oportunidade, certamente vão conferir e se deleitar sozinhos com o proibido estampado em versos que a musa popular facilitou e ditou aos seus poetas.
Fonte: Jornal da Besta Fubana
Fonte: Jornal da Besta Fubana