Entrevista: Leide Câmara
Maria Leide Câmara de Oliveira nasceu em Patu, mas o trabalho que ela desenvolve pela preservação da história da música potiguar transcende as fronteiras municipais. Durante mais de meia década, Leide reuniu material para lançar, em 2001, o “Dicionário da Música do Rio Grande do Norte”, com cerca de 600 verbetes. A obra oferece ao leitor um raio-X do que os artistas potiguares produziram até então. Antes disso ela já havia organizado projetos importantes para a cidade de Natal como o Festival de Artes de 1988 e o Zé Menininho. Esse último resgatou expoentes da cultura de vários bairros da cidade. Depois do Dicionário, ela prosseguiu na sua luta em favor da música papa-jerimum organizando eventos e exposições e escrevendo obras importantes como a que mapeou todas as produções do bossa-novista potiguar Hianto de Almeida. Com currículo suficiente para descansar e recolher os frutos de tudo o que já semeou, Leide quer mais. Ao mesmo tempo em que organiza o lançamento de um livro sobre as ligações de Luiz Gonzaga com o Rio Grande do Norte e projeta a comemoração dos 90 anos de “Praieira”, ela prepara a segunda versão do seu Dicionário e corre atrás de concretizar o sonho de inaugurar o “Instituto Leide Câmara - Acervo da Música Potiguar”. Nós, do Zona Sul, estamos fechados com ela! Essa entrevista, lá no Bar de Zé Reeira, foi concedida a mim, ao jornalista Roberto Fontes e ao “deputado” Marcos Lacerda.
(robertohomem@gmail.com)
ZONA SUL – Você hoje tem título de cidadã natalense, mas nasceu em Patu. Fale um pouco sobre essa sua ascendência oestana.
LEIDE – Meu pai, Luiz Antônio de Oliveira, nasceu em Patu. Ele era mais conhecido como Luiz Inácio, já que seus antepassados tinham esse sobrenome. Minha mãe, Luiza Câmara de Oliveira, nasceu em Santana do Matos, mas foi registrada na cidade de Açu, onde morou. Ela ficou órfã muito cedo.
ZONA SUL – Como seus pais se conheceram?
LEIDE - Madrinha Nené (Maria Adélia Ximenes) era casada com padrinho Ximenes (João Ximenes), que foi ser tabelião em Patu e levou a minha mãe. Minha mãe tinha um noivo em Açu, Sindolfo. Acabou quando ele descobriu que minha mãe tinha conversado com alguém na viagem de ida para Patu. Só por conta disso ele rompeu o noivado! Quando minha mãe chegou a Patu, era época da quermesse. Ela, que era uma mulher bonita, foi colocar uma daquelas fitinhas de quermesse no meu pai, mas ele não aceitou. “Você não pode colocar porque eu estou viúvo”. Fazia três meses que sua mulher tinha morrido. Minha mãe pensou na hora: “se tirar o luto, eu caso com ele”. Casaram. Meu pai tinha dez irmãos. Ele era comerciante, tinha uma mercearia em Patu. Depois que casaram, construíram patrimônio. Meu pai teve gado e terras, viveu uma vida de rico. Conseguiu ter várias propriedades e criações. Era um homem muito trabalhador. Chegou a construir casas e a ter muitas fazendas. Minha mãe sempre foi do lar, apesar de ser uma mulher prendada, como toda mulher da época. Ela bordava e era uma senhora dona de casa, mas nunca chegou a fazer nenhum trabalho fora.
ZONA SUL – Você ficou em Patu até qual idade?
LEIDE – Quando meu pai casou, era viúvo e tinha três filhas. Somos sete filhos. Viemos embora de Patu para morar em Natal no dia 13 de maio de 1953. Já era época de os filhos estudarem. Coincidiu com o momento do que chamam de “roda da vida”, quando meu pai começou a perder tudo o que tinha. Até hoje não entendemos, mas começaram a acontecer coisas estranhas. Por exemplo: durante um período, meu pai foi político. Chegou a ser vereador, em Patu. Apoiou a candidatura do prefeito Lauro Maia, grande amigo dele, que era pai de Lavoisier Maia. O pessoal da família Maia que ia para Patu, ficava lá em casa. Mas começaram as dificuldades. Um dia colocaram veneno na comida da nossa família. Papai teve que mandar buscar médico em Catolé do Rocha. Em outra ocasião, o trem passou e queimou toda a plantação. O gado morreu. Devido a essas dificuldades e para que os sete filhos pudessem estudar, meu pai vendeu o que sobrou e veio embora para se estabelecer em Natal. Imagine a dificuldade que ele enfrentou para conseguir com que todos estudassem e se estabilizassem nessa cidade grande. Aqui ele passou a trabalhar com comércio. Depois colocou uma fábrica de doces. Ela foi quem permitiu que estudássemos e nos tornássemos independentes.
ZONA SUL – Que outras recordações você tem de Patu?
LEIDE – Lembro, por exemplo, das caminhadas que a gente fazia pra Serra do Lima. Diziam que lá tinha as pegadas de Nossa Senhora. Talvez por isso a questão religiosa, para mim, seja muito forte. Muitas vezes caminhei naquele canto que diziam serem as pegadas de Nossa Senhora. Eu subia a serra e colocava os pés como se estivesse pisando onde pisou Nossa Senhora. Lembro também da capela antiga de Zé da Alma, onde depositavam ex-votos. Saí de lá muito nova, por isso muitas dessas vivências na cidade vieram depois, em férias. Lembro-me da Serra do Patu. Nossa casa ficava de frente pra lá. Toda chuva ou trovoada de hoje me lembra de Patu. Uma cena linda é a água descendo da serra. Da Serra do Lima recordo que a gente comprava aquele colar de coco catolé e colocava no pescoço pra ficar comendo. Na igreja de Nossa Senhora das Dores existia, atrás do altar, uma santa. Dizia a lenda que era Nossa Senhora dos Impossíveis, que foi trazida para a igreja, mas sempre voltava para o lugar onde tinha sido achada, no Lima. Daí a origem de seu nome. Essas lendas, histórias e magias são muito fortes. Também recordo da convivência e da fraternidade com o patuense. Lá todos se conheciam, éramos da mesma família. Tudo isso marcou minha infância.
ZONA SUL – Onde foi estudar quando chegou a Natal?
LEIDE – Sempre estudei em colégio público, nos bairros onde morei. Em Natal, moramos primeiro em uma casa grande na Princesa Isabel, nº 597. O sobrado era vizinho a um posto. Depois a gente saiu pra Petrópolis. A partir daí tenho lembranças um pouco mais sólidas. Vem dessa época as recordações da música. Foi quando ouvi “Marcha do tambor” (Zé Pequeno era um soldado de morte / Batia na mulher e no tambor / Era pequeno, mas sempre deu sorte/ Com mulher de qualquer cor), de Hianto de Almeida. Eu nem sabia que futuramente ia pesquisá-lo e estudá-lo.
ZONA SUL – Como foi seu primeiro contato com a música?
LEIDE – Meu pai cantava; não em bar, mas cantarolava e assoviava. Ele era fã incondicional de Luiz Gonzaga. Assoviava todas as suas músicas. Quando veio para Natal, sentiu muita falta de Patu. Ele era louco por sua terra. (Pausa na entrevista. Leide está emocionada).
ZONA SUL – Você estava recordando como a música entrou na sua vida...
LEIDE – Além do fato de meu pai cantar e assoviar as canções de Luiz Gonzaga, a relação com a música pra mim sempre foi muito forte porque minha mãe cantava. Ela só fazia os afazeres de casa cantando. Guardo na minha memória afetiva todas as modinhas daquela época. Quando fomos morar em Lagoa Seca, ouvi “Royal Cinema”. Foi a primeira referência com a música do estado. Não se falava nem no nome do autor, Tonheca Dantas. O comentário é que a música era de um compositor daqui. Por falar nisso, “Royal Cinema” completa agora cem anos. Está se tornando uma valsa centenária.
ZONA SUL – Até entrar na universidade, o que aconteceu de relevante que mereça ser citado?
LEIDE – Fiz o curso pedagógico e passei a trabalhar como professora do Estado. Depois fiz concurso também para o Município e acumulei os dois empregos. No Estado, me especializei para trabalhar com educação especial. Foi uma experiência nova: educação especial dentro da própria escola, do ensino normal. Fui a primeira professora do RN a desenvolver esse trabalho. No Município entrei como arte-educadora, professora de educação artística. Fiz Educação Artística na UFRN.
ZONA SUL – O Projeto Zé Menininho vem dessa época? Como era?
LEIDE - Professora do município, fui convidada para fazer um trabalho envolvendo música e poesia nos bairros de Natal. Esse era o Projeto Zé Menininho. Foi importante para que depois eu passasse a fazer o trabalho que faço até hoje. Imagine, como arte-educadora, o que era ensinar educação artística em um colégio do município na Cidade da Esperança, que era o Celestino Pimentel, com cinco turmas. Imagine o que é fazer um trabalho desse porte em turmas com uma quantidade enorme de alunos. Ao receber o convite para fazer esse projeto, comecei a identificar pessoas da escola que cantavam e escreviam poemas. O objetivo era envolvê-los em uma grande festa, promover uma apresentação no próprio bairro. Em um show botei cinco mil pessoas do bairro. Nessa época começou meu espírito de pesquisar: eu ia à casa dos alunos para saber quem era que tocava algum instrumento, quem cantava. Pegava os meninos, botava no carro e levava para ensaiar. Depois dos bairros, a gente começou a estender o projeto. Juntamos coordenadores do Zé Menininho em vários bairros para uma festa maior. Coordenei o projeto Zé Menininho na Cidade da Esperança e também no bairro das Rocas. Tive o privilégio de ensaiar com Lucarino, Melé, Glorinha Oliveira, Odhaires... Depois fui convidada para a Fundação Zé Augusto, já na década de 1980. Conseguimos reabrir a Escolinha Cândido Portinari, que estava fechada. Fiz um trabalho de arte-educação, consegui promover alguns cursos. Também tive a oportunidade de coordenar o Festival de Artes de Natal, em 1988, na Cidade da Criança. Desse evento, tenho tudo gravado, documentado. Porém, infelizmente as gravações do Projeto Zé Menininho foram perdidas.
ZONA SUL – Nessa época você já colecionava discos?
LEIDE – Não, mas comecei nesse período. Na Fundação, muitos músicos chegavam com seus discos e deixavam pelo menos uma cópia por lá. Apesar de a música não ser a minha área, depois me interessei em saber o que era feito daquele material. Não havia um controle ou catalogação das obras recebidas. Elas apenas ficavam acomodadas de qualquer jeito. Eu já tinha o sentimento de guardar, herdado dos meus pais. Eles davam valor às antiguidades, ao passado. Quando Dorian Gray publicou, em 1989, o livro “Artes Plásticas do Rio Grande do Norte 1920—1989”, gostei da ideia daquele dicionário de artistas plásticos potiguares e, anos depois, comecei a trabalhar para lançar um catálogo de discos e músicos do RN. Na ocasião, existiam poucas informações de potiguares que tinham seu trabalho registrado. O grupo incluía Pedrinho Mendes, Babal... Dava para contar nos dedos. Chegaram a dizer que eu não conseguiria nem fazer um catálogo: “não tem nem vinte músicos aqui”. Como gosto de desafio, mergulhei na pesquisa e comecei.
ZONA SUL – Quer dizer que você se inspirou no livro de Dorian Gray...
LEIDE – Me inspirei. E também no “Dicionário do Folclore Brasileiro”, de Câmara Cascudo, e nos livros de Gumercindo Saraiva sobre o mundo da música. Da mesma forma que hoje vou, aos sábados, bater papo no Sebo Vermelho, eu tinha o hábito de conversar com Gumercindo Saraiva. Foi uma pessoa fantástica e fez muito pela memória do Rio Grande do Norte. Inspirada nesses exemplos, comecei a juntar material para fazer o catálogo. O critério para entrar nessa publicação foi eu possuir uma gravação da obra. Esse único recorte que dei foi até para contestar a afirmação de que Natal é a cidade do “já teve”.
ZONA SUL – Quando esse trabalho foi iniciado?
LEIDE - Comecei a pesquisa em 1996. O “Dicionário da Música do Rio Grande do Norte” foi publicado em 2001, com 600 verbetes. Incluiu 600 músicos que tinham produção. O livro não reuniu só os cantores, mas também compositores, arranjadores, instrumentistas... A música é um trabalho coletivo, por isso não seria justo excluir esses outros personagens além dos cantores.
ZONA SUL – Quantas músicas constam no Dicionário?
LEIDE – São citadas 12 mil músicas, mas nem todas de autoria de compositores do Rio Grande do Norte. Dessas 12 mil músicas, muitas são de compositores potiguares. As demais foram feitas por gente de outros estados, mas que ganharam interpretação de artistas do Rio Grande do Norte.
ZONA SUL – Cite algumas descobertas que você divulga por meio desse seu livro.
LEIDE – Por mais que eu pense que já achei tudo, sempre estou encontrando uma nova informação. Uma descoberta do livro já publicado foi que Roberto Carlos gravou música de um compositor do Rio Grande do Norte, Gilson Vieira, autor de “Casinha Branca”. A música se chama “Um mais um”. Também achei composições que saíram daqui e foram para outros países. Achei muitas raridades, mas o que mais me surpreendeu foi a quantidade de compositores e instrumentistas que o Rio Grande do Norte tem. Talvez isso explique o comentário recorrente de que Natal não acontece na mídia.
ZONA SUL – Como assim?
LEIDE – Talvez Natal não seja muito divulgada na música nacional por ser uma terra de compositores e de instrumentistas - mas não de cantores. Foi uma grande surpresa descobrir isso.
ZONA SUL – O mapeamento que você fez para o Dicionário envolveu todo o estado. Como você armazena essas informações? Está sendo mais fácil fazer a segunda versão dessa obra?
LEIDE – Montei um sistema para poder catalogar todo esse material. Por meio desse sistema, faço um DNA da música e do músico. Tudo o que você quiser saber sobre determinado músico, eu tenho. Esse cadastro inclui obra fonográfica e não fonográfica, quando a música foi lançada, quem participou, fotografias de lançamento... O Rio Grande do Norte está mapeado. Se por um lado ficou mais fácil conseguir a informação, o trabalho ficou mais difícil porque a produção cresceu. Hoje tenho mais de 50 mil músicas cadastradas. Antigamente eu tinha que ir lá para pegar a obra, pesquisar. Viajei, por exemplo, até à Europa quando recebi a informação de que Brigitte Bardot tinha gravado um músico potiguar. Não achei essa gravação, mas é uma coisa que ainda está na minha memória e estou pesquisando. A Internet facilitou essa parte da pesquisa.
ZONA SUL – Você fez sozinha o trabalho de organizar o Dicionário?
LEIDE – Sim. A parte da pesquisa eu ainda faço sozinha, mas hoje a minha sobrinha Luiza Câmara está trabalhando comigo. Estou treinando para que ela seja a continuadora desse projeto. Luiza é publicitária. É uma menina jovem, tem vinte e poucos anos, e gosta muito desse trabalho.
ZONA SUL – Como foi a repercussão do Dicionário?
LEIDE – O lançamento foi no Palácio da Cultura, antigo Palácio Potengi. Na época, Woden Madruga era presidente da Fundação José Augusto. Para publicar o Dicionário eu vendi um apartamento. Woden foi fundamental na produção do lançamento. Montou uma exposição sobre um século de música. Pegamos representantes por década e fizemos painéis. A repercussão foi grande. Nesse dia, comecei a autografar às seis horas da tarde. Deu quase meia-noite e eu ainda estava autografando. Naquela ocasião, vendi quase 300 livros. Pra um livro de música, isso foi um marco. Lancei também no Senado, com a mesma exposição. O apoio do senador José Agripino foi fundamental. Todos os senadores ajudaram, mas José Agripino cedeu toda a estrutura. Ele abriu seu gabinete para nós. O livro também foi lançado com uma exposição em Fortaleza. No Rio de Janeiro, quando participei de um encontro de pesquisadores da música brasileira, no Museu da Imagem e do Som, levei o Dicionário e fui muito bem aceita. Conheci alguns dos grandes pesquisadores de música: Ary Vasconcelos (que morreu em 2003), Jairo Severiano, Ruy Castro, Sérgio Cabral... Todos estavam nesse encontro. O produtor musical J.C. Botezelli, conhecido como Pelão, na hora em que ia fazer sua exposição no encontro, levou o Dicionário para a mesa, fez uma apresentação da obra e disse: “só pelo Dicionário da Música do Rio Grande do Norte, de Leide Câmara, esse encontro já valeu”. Ariano Suassuna também estava nesse evento. Quando entreguei um livro a Ariano, ele perguntou se seu nome constava no Dicionário. “Claro, você não é parceiro do potiguar Joca Madureira (Antonio José Madureira) no projeto Armorial?”. Ele ficou estarrecido. Por sinal, a música que Ariano apresentou durante a sua palestra era do próprio Madureira. Esse evento no Rio foi uma grande realização.
ZONA SUL – Como foi feita a distribuição do Dicionário?
LEIDE – No Rio, o livro foi vendido na Livraria Travessa e em várias outras. Atendi pedidos para várias universidades norte-americanas. Ele também foi para a China. A tiragem foi de mil exemplares. Fiz outros cem em uma edição numerada. Quando o Príncipe Charles esteve em Brasília, Mércia - neta de Tonheca Dantas - furou o bloqueio e entregou o Dicionário e um CD da Orquestra Sinfônica do Rio Grande do Norte ao Príncipe Charles. Para minha surpresa, pouco tempo depois recebi uma carta do Príncipe, agradecendo o Dicionário e dizendo que o livro estava agora na biblioteca da família real. Por essa e por tantas outras considero o Dicionário um marco na história da música do RN. Quando lancei o livro, em 2001, a música potiguar vivia uma inércia grande. O Dicionário ajudou a alavancar essa produção e as pessoas passaram a olhar para a música potiguar e a valorizá-la mais.
ZONA SUL – Como está o trabalho para a segunda versão do Dicionário?
LEIDE – Já tenho 5 mil cadastros. Quero agora tirar da oralidade músicos que fizeram história, mas não tiveram oportunidade de gravar. Quando sei que teve um fulano que cantou, compôs ou tocava, corro atrás de informações sobre ele. Estou recolhendo essa documentação porque a cada cem anos as referências de uma geração se perdem.
ZONA SUL – Você falou que para lançar o livro precisou se desfazer de um apartamento. Recuperou o investimento?
LEIDE – Financeiramente, não. Recuperei pela importância do ato, que, para mim, é impagável. Tenho orgulho de, ao invés de pedir, sempre ter procurado o músico para comprar a sua obra. No começo, quase ninguém vendia os discos dos artistas potiguares. Hoje, qualquer sebo tem um espaço dedicado à música do Rio Grande do Norte.
ZONA SUL – Esse segundo Dicionário deve estar concluído quando?
LEIDE – Está um pouco mais trabalhoso porque estou fechando a produção de cada músico: o que ele gravou, por quem foi gravado, quais composições, onde ele anda. Mas está bem avançado. Não tenho previsão, porque paralelo a esse livro fiz e continuo fazendo outros trabalhos.
ZONA SUL – Está nos planos criar uma versão eletrônica do Dicionário?
LEIDE – Vou criar, mas só depois que publicar essa segunda edição. Quando fiz o Dicionário, Cravo Albin me pediu que eu cedesse uns músicos para incluir no dicionário dele. Falei que quando eu publicasse o livro, ele teria acesso. Quando o Dicionário foi lançado, ele pegou vários artistas, mas não deu crédito. Eu exigi que ele corrigisse. Hoje, vários verbetes incluídos lá já dão o crédito para o Dicionário da Música do Rio Grande do Norte. Pena que alguns artistas preferem dizer que estão no Dicionário Cravo Albin ao invés de falarem que são verbete no Dicionário da Música do Rio Grande do Norte. No Brasil, desconheço quem tenha feito um trabalho sobre a memória musical do estado. Pode existir, mas não conheço quem tenha feito o que fiz pelo Rio Grande do Norte.
ZONA SUL – Que outros trabalhos paralelos você realizou enquanto continuava a segunda versão do Dicionário?
LEIDE – Depois do Dicionário lancei o CD “Praieira”, em 2003, quando a música completou 80 anos. Promovi um encontro de gerações ao convidar para a gravação artistas como Paulo Tito e Marina Elali, Fernando Luiz e Odhaíres, Fernando Towar e Glorinha Oliveira, Pedro Mendes e Terezinha de Jesus, Liz Nôga e Lucinha Lyra, Babal e Valéria Oliveira, entre outros músicos. Os artistas foram divididos em duplas. Cada dupla gravou uma estrofe. Fiz uma serenata para apresentar o CD. O grande sonho de Othoniel Menezes era que a música fosse gravada toda. E “Praieira” é nossa referência. Sempre que se fala em uma música de Natal, “Praieira” é lembrada. Fiz também o projeto “Serenata para Natal”. Ao trazer músicos do cancioneiro brasileiro que tinham gravado músicas de compositores do Rio Grande do Norte, de certa maneira eu dei vida do Dicionário. Um dos artistas que veio cantar em Natal foi Roberto Silva, que gravou Raymundo Olavo, o maior sambista sem ser carioca. Trouxe também artistas da casa com carreira fora, como Ademilde Fonseca, Núbia Lafayette e o Trio Irakitan. Luiz Vieira e Jair Rodrigues também vieram. Sem apoio financeiro, esse projeto belíssimo ficou difícil de prosseguir. Depois fiz o CD do Trio Irakitan, em 2007, com a gravação de “Praieira”. Foi o último disco gravado em estúdio da última formação do Trio. Fiz também o livro “A Bossa Nova de Hianto de Almeida”.
ZONA SUL – Como você descobriu essa participação importante de um potiguar na bossa nova?
LEIDE – Sempre comprei livros sobre a música brasileira para identificar a participação de nomes do Rio Grande do Norte. Dessa forma, sempre achei nas publicações sobre bossa nova o nome de Hianto de Almeida. Esse trabalho, que lancei em 2010, foi publicado pelo SESC e enviado para pesquisadores e para todas as bibliotecas do país. Depois, organizei a exposição “Mulheres & Leide”, parceria da Fundação José Augusto com a Secretaria Extraordinária de Cultura. Foi uma homenagem à presença das 200 mulheres que integraram a cena da música do Rio Grande do Norte.
ZONA SUL – O livro sobre Hianto surpreendeu muitas pessoas?
LEIDE – Acredito que, com esse livro, devo ter chocado os pesquisadores quando eles viram tanta coisa que Hianto compôs e a importância dele para a música brasileira. Quem você lembrar, de mais importante, gravou Hianto de Almeida. Pena que tenha morrido cedo, em 1964. Hianto foi o maior parceiro de Chico Anysio. Enviei o livro para Chico Anysio. Ele me agradeceu, por e-mail, dizendo que esse livro tinha sido o maior presente que ele tinha recebido nos últimos dez anos de sua vida. Hianto de Almeida e Chico Anysio fizeram 34 músicas. Só se falava em uma média de vinte e poucas.
ZONA SUL – O seu trabalho é devidamente reconhecido?
LEIDE – Considero. Veja o exemplo do Dicionário, que apesar de ser de 2001, continua novo e presente na mídia e na vida das pessoas, como se tivesse sido lançado ontem. Natal já até me deu o título de cidadã. Também me sinto valorizada pelos músicos. Só o que ainda falta é alguém transformar esse reconhecimento em apoio financeiro para eu estruturar o Instituto Leide Câmara - Centro de Pesquisa Potiguar.
ZONA SUL – Como surgiu a ideia do Instituto?
LEIDE – Sempre procurei adquirir todas as obras que são do RN porque sei que o tempo é traiçoeiro. Existem três fatores que acabam memória: viúva, traça e mudança. Tive que correr porque a viuvez mata a história (risos). Sempre visito os músicos e seus familiares. Eu valorizo os mínimos detalhes da história. Se sei que a família de fulano está ali, vou visitar. Pergunto o que a pessoa tem, peço para ver aquela pastinha, aquela malinha onde ele guardava as coisas. É ali que deslancho na informação. Pra mim é uma mina. O fato de eu ter juntado todo esse material me fez sentir a necessidade de disponibilizar para que as pessoas possam ver, pegar e amar da mesma forma que amo cada material desses. Tenho um acervo bom e grande. Tenho partituras, livros, fotografias e obras raríssimas.
ZONA SUL – São quantos objetos?
LEIDE – Só de CD, tenho quase dez mil. Os elepês somam mais de vinte mil. Não consigo nem estimar, de tanta coisa que tenho. Está tudo guardado em caixas, lá em casa. O Instituto hoje está na garagem lá de casa.
ZONA SUL – Você já conseguiu toda a documentação do Instituto?
LEIDE – Já saíram até as Leis estadual e municipal que reconhecem o Instituto como uma entidade de utilidade pública. O vereador Nei Júnior e o deputado Leonardo Nogueira tiveram participação decisiva nesse processo. Estou aguardando o mesmo reconhecimento na alçada federal. Também estou lutando para conseguir um espaço físico para que as pessoas possam pesquisar todo esse material que juntei ao longo dos anos. Começando hoje, seria impossível adquirir tudo o que juntei.
ZONA SUL – Um dos seus trabalhos atuais é a ligação entre o RN e Luiz Gonzaga.
LEIDE – Estou concluindo o livro “Luiz Gonzaga e a Música Potiguar”. Por conta do centenário do Rei do Baião, fui pesquisar as ligações dele com a música do RN. Para minha surpresa, encontrei 54 artistas do RN que gravaram Luiz Gonzaga. Fiz uma cronologia. Ademilde Fonseca, em 1951, foi quem primeiro gravou. Depois vieram o Trio Irakitan, o Trio Marayá e assim por diante. O trabalho inclui também os dois parceiros de Luiz Gonzaga no RN: Janduhy Finizola (médico que hoje mora em Campina Grande) e o caicoense Severino Ramos. Estive com a família de Severino Ramos, no Rio. Eles confirmaram que, apesar de ter sido registrado em Campina Grande, Severino é de Caicó. Luiz Gonzaga gravou 12 músicas de Severino Ramos e oito de Janduhy Finizola. A “Missa do Vaqueiro” é de Janduhy. “Ovo de Codorna” é de Severino Ramos.
ZONA SUL – Sua pesquisa sobre Gonzaga vai render um livro?
LEIDE – Já está pronto. Em breve será publicado. Também estou querendo comemorar os 90 anos de “Praieira”. Nesse trabalho fui buscar de novo os filhos de Othoniel Menezes, fui rever o que tinha sobre eles. Fui localizar Eduardo Medeiros, seus filhos e netos. “Luiz Gonzaga e a Música Potiguar” e “Os Noventa Anos de Praieira” são dois trabalhos que estou montando. Fora isso, há vários outros livros que vou publicar sobre músicos como Ademilde Fonseca, Elino Julião, Carlos Alexandre, K-Ximbinho, Trio Irakitan... Tenho vários já começados. Vou fazendo simultaneamente.
ZONA SUL – Você poderia antecipar alguma descoberta que sairá na próxima versão do Dicionário?
LEIDE – Vai constar no Dicionário a história de José Fernandes, um músico de Currais Novos que saiu menino de lá, com a família, para tentar a sorte em Minas Gerais. Ele me disse que deixou o sertão com o maior grau de subnutrição possível. Depois de Minas, foi morar em Goiânia. Trabalhando como lavador de carros perto de um barzinho, ele dormia nas ruas, coberto por caixas de papelão. Sua sorte mudou quando passou a lavar o carro de Amado Batista. Daí surgiu uma parceria de sucessos. Amado Batista gravou 50 músicas de José Fernandes, fora as que o compositor potiguar vendeu a autoria. Fui a Goiânia conhecer José Fernandes. Ele já estava doente, disse que tinha contraído algo no sangue, consequência da subnutrição. Morreu muito novo, com 53 ou 55 anos. Quando estive em sua casa, tomamos café com queijos e pães. A conversa foi na cozinha. Perguntei onde ele guardava os rascunhos de suas composições. Ele disse que rasgava todos, com medo de ser roubado. José Fernandes foi gravado também por Zezé de Camargo e Luciano. É autor de “Princesa” e “Seresteiro das Noites”, grandes sucessos de Amado Batista. No outro dia, no aeroporto, encontrei Amado Batista. Ele estava viajando com os filhos. Fomos no mesmo avião, para Brasília. Tirei fotos com ele, disse que tinha ido visitar José Fernandes e que o meu sonho era assistir um show de Amado cantando músicas de Zé Fernandes. Queria ver esse show sentada ao lado de José Fernandes. Não deu tempo para acontecer. Descobrir a história de Zé Fernandes me alegrou muito, já que ele é um ilustre desconhecido no estado.
ZONA SUL – Qual músico ou compositor potiguar mais se destacou no cenário nacional?
LEIDE – Como compositor, Hianto de Almeida. Entre os cantores teve aquela geração que foi para o Rio e fez muito sucesso: Ademilde Fonseca, Trio Irakitan, Trio Marayá, Aldair Soares (Pau de Arara)... Depois vieram Terezinha de Jesus, Leno, Gilson Vieira, Carlos Alexandre e Gilliard. A partir daí, houve uma quebra. Estamos voltando agora com Marina Elali, Dorgival Dantas e Roberta Sá. Na área de composição, qualquer cantor que você citar dos que estão fazendo sucesso gravaram música de potiguares. “Esperando na Janela” e “Beijar na Boca”, que Claudinha Leite canta, por exemplo, são de um músico daqui: Blanch Van Gogh. Além de compositor, ele é vocalista do Cogumelo Plutão. As pessoas estão ouvindo nas novelas músicas que são nossas. O Rio Grande do Norte está na mídia, mas não só com seus cantores. Também tem os atuais compositores: Zé Hilton, Cabeção do Forró e Raniere Mazilli, que estão com várias músicas de sucesso.
ZONA SUL – Deixe um recado para quem ler essa entrevista.
LEIDE – Eu acredito na música potiguar e sei que ela é extremamente importante. Falar sobre ela, me empolga. Fazer descobertas, mais ainda. Francisco Alves gravou músicas do RN. Pixinguinha também tinha ligação com a música potiguar. João Pernambuco disse que aprendeu a tocar com Fabião das Queimadas. São muitas as histórias que tornam o nosso passado muito bonito e rico. Eu gostaria de ter um espaço físico para mostrar tudo isso. Queria ter oportunidade de disponibilizar essas referências que a gente tem, tão importantes para a nossa história. Queria poder mostrar gravações, músicas, discutir, falar sobre elas. Queria ter oportunidade de fazer enquanto estou com toda a lucidez, toda a efervescência, toda a informação na cabeça. Tenho essas informações porque as estou vivenciando. Se eu perder esse interesse, deixo de buscar o “feeling” dessas informações e histórias que venho recolhendo até hoje. Tenho muita vontade que isso seja extremamente divulgado em tudo que é canto. Preciso fazer um portal da música do RN, mas completo. Apesar de já ter tido convite pra integrar uma rede internacional, não quis. Tenho que começar pelo RN. Quero fazer esse portal, disponibilizar essa informação para que cada vez mais a gente tenha orgulho dessa música do RN, dessa produção, desse intelectual que é o músico potiguar. Tudo isso eu queria deixar muito vivo. Não quero um museu morto, mas vivo pra que a gente possa discutir, chegar e tocar naquelas obras e sentir a energia que eu sinto quando eu faço esse contato, essa descoberta desse trabalho. Meu grande sonho é ter esse espaço físico para difundir cada vez mais a música do Rio Grande do Norte.
ZONA SUL – Parabéns pelo seu trabalho.