Do acontecimento emblemático ao golpe de 1964, os militares estiveram sempre a postos para tomar o poder
MÁRCIO SAMPAIO DE CASTRO PUBLICADO EM 15/11/2019, ÀS 00H00
"Sigam-me os que forem brasileiros!” De espada em punho, o comandante das tropas do Brasil na Guerra do Paraguai, Luís Alves de Lima e Silva, abandona sua confortável posição na retaguarda e, do alto de seus 65 anos, lidera a conquista da ponte do rio Itororó, defendida com unhas e dentes pelos paraguaios.
A batalha daquele 6 de dezembro de 1868, que antes desse ato de heroísmo parecia perdida, foi decisiva para a vitória na guerra, que acabou em 1870. O conflito deu grande poder e prestígio para o Exército brasileiro – do qual Silva, depois nomeado duque de Caxias, viraria patrono.
Apenas 21 anos após a batalha de Itororó, aqueles que eram brasileiros tiveram que seguir os militares em outra manobra arrojada: a proclamação da República. Foi o início de um período de quase 100 anos em que os civis alternaram o poder com os militares. Muitos destes se candidatavam em eleições, é verdade. Mas, sempre que pintava um período de instabilidade política, havia a expectativa de que os militares sairiam dos quartéis e tomariam o governo na marra.
“Ao voltar da Guerra do Paraguai, os militares não queriam mais ficar submetidos à ordem civil. Nasceu aí um projeto de tomada do poder que se arrastaria por quase todo o século 20 e culminaria com o golpe de 1964”, diz Hernani Maia Costa, historiador da Universidade Estadual de Campinas.
Se o Exército foi protagonista da história brasileira em vários momentos da República, no Império a coisa não era bem assim. A corporação foi criada após a independência, junto com a Armada (antigo nome da Marinha). Mas, em vez de ser motivo de orgulho, atuar como soldado ou marinheiro em meados do século 19 era um castigo reservado a pobres acusados de delinquência ou vadiagem.
Foi a Guerra do Paraguai que obrigou o Império a valorizar o Exército. Quando voltaram do campo de batalha, os oficiais passaram a se envolver mais nos grandes debates da época – que incluíam o questionamento da própria monarquia.
No anoitecer de 14 de novembro de 1889, boatos diziam que o marechal Deodoro da Fonseca, herói no Paraguai, havia sido preso por desacatar o então primeiro-ministro, visconde de Ouro Preto. Reagindo a isso, soldados de vários regimentos saíram às ruas da capital, o Rio de Janeiro, na manhã do dia 15.
A notícia era falsa, mas o marechal aproveitou as tropas rebeladas para depor Ouro Preto, seu antigo adversário político. Enquanto isso, conspiradores militares e civis se apressaram em escrever, na Câmara Municipal, uma declaração dizendo que o Brasil deixava de ser um império para se tornar uma república. Deodoro, que estava doente e voltou logo para casa, só assinou o documento à noite.
Apesar de nunca ter sido republicano, o marechal havia saído de casa para derrubar um governo e acabou derrubando um regime. A proclamação da República se tornava, assim, o primeiro grande golpe militar de nossa história.
Conduzido à presidência, Deodoro não suportou as intrigas do poder e acabou cedendo o lugar ao seu vice. O também militar Floriano Peixoto assumiu e, quando teve que passar o cargo para o primeiro presidente civil, Prudente de Morais, em 15 de novembro de 1894, não apareceu. Decidiu ficar em sua casa de chinelos, regando o jardim.
A vez dos jovens
Nos anos seguintes, enquanto fazendeiros paulistas e mineiros se revezavam na presidência, os altos postos das Forças Armadas eram ocupados por oficiais eruditos, dedicados a esparsos trabalhos burocráticos. Na outra ponta da hierarquia estavam os jovens oficiais que tocavam as tarefas diárias nos quartéis.
A enorme distância que os separava dos velhos militares daria origem a um movimento com profundo impacto no país: o tenentismo. Ele surgiu em 1913, com a revista Defesa Nacional, lançada por tenentes que criticavam as condições precárias das Forças Armadas. Em menos de uma década, a insatisfação com os superiores e com a corrupta política brasileira levaria aqueles jovens a uma série de rebeliões.
Em 5 de julho de 1922, no Rio de Janeiro, um pequeno grupo tomou o Forte de Copacabana. Quase todos foram mortos. Entre os sobreviventes estava Eduardo Gomes, que participou do levante seguinte, ocorrido dois anos depois, em São Paulo. A cidade foi ocupada por quase um mês e os confrontos deixaram 500 mortos e 5 mil feridos.
Derrotados, os tenentistas fugiram para o sul. Revoltas parecidas ocorriam em todas as regiões do Brasil. No Rio Grande do Sul, o capitão Luís Carlos Prestes e seus homens escaparam das tropas federais e, com os rebeldes paulistas, iniciaram uma longa marcha por diversos estados, procurando seguidores e fugindo do governo. Em 1927, a Coluna Prestes, como ficou conhecida, entraria na Bolívia em busca de asilo político – havia percorrido cerca de 25 mil quilômetros.
A indignação nos quartéis continuava. Sob denúncias de fraude eleitoral, em março de 1930, Júlio Prestes foi eleito presidente, derrotando o gaúcho Getúlio Vargas. Com a ajuda dos tenentistas, surgiu uma conspiração para impedir que o paulista tomasse posse. Em 24 de outubro de 1930, o ainda presidente Washington Luís foi deposto, enquanto 3 mil soldados gaúchos, liderados pelo tenente-coronel Góis Monteiro, chegavam ao Rio de Janeiro. Vargas veio com eles e se firmou como líder da nação.
Prestes e Vargas / Crédito: Wikimedia Commons
Pouco a pouco, contudo, o novo governo foi excluindo os tenentistas do poder. Luís Carlos Prestes, que desde o início tinha se recusado a apoiar Vargas, tentou derrubá-lo com a Intentona Comunista, em novembro de 1935 – o levante, que ocorreu em Natal, Recife e Rio de Janeiro, foi sufocado rapidamente. Dois anos depois, usando como pretexto um suposto novo plano comunista de tomar o poder, Vargas conseguiu o apoio das Forças Armadas para dar um golpe e se consolidar como ditador.
Quando explodiu a Segunda Guerra, em 1939, Vargas hesitou um bocado, mas acabou optando por mandar tropas para apoiar os aliados – a Força Expedicionária Brasileira, a FEB, desembarcou na Itália em 1944. Após o fim do conflito, os militares brasileiros ficaram numa situação estranha: haviam lutado contra o autoritarismo, mas, ao retornar à pátria, depararam com uma ditadura.
Vargas não poderia mais continuar no poder e, nos bastidores, foi convencido por militares a se retirar. Nas eleições de 1945, dois deles disputaram a presidência: o agora brigadeiro Eduardo Gomes e o general Eurico Gaspar Dutra, ex-ministro da Guerra. Dutra venceu e se tornou o segundo e último militar a ser eleito presidente do Brasil nas urnas – o outro fora o marechal Hermes da Fonseca, que ficou no poder entre 1910 e 1914.
Civis na corda bamba
A Segunda Guerra deu lugar à Guerra Fria, com a União Soviética e os Estados Unidos disputando áreas de influência ao redor do mundo. No Brasil, as Forças Armadas se alinharam aos americanos. Isso bateu de frente com o segundo governo de Vargas (que derrotara Eduardo Gomes na eleição para suceder Dutra, em 1951).
De acordo com seus críticos, como o jornalista Carlos Lacerda, o nacionalismo getulista era um sinal de simpatia pelos soviéticos. Em agosto de 1954, quando um atentado a tiros contra Lacerda matou o major da aeronáutica Rubens Vaz no Rio de Janeiro, a Força Aérea passou a se opor abertamente a Vargas. Sem o apoio das outras armas e desmoralizado por ser ligado ao assassinato, o presidente recorreu ao suicídio.
Vargas se foi, mas a tal “ameaça soviética” continuava incomodando. Aos olhos de alguns militares, ela era encarnada por Juscelino Kubitschek, eleito presidente em outubro de 1955. No mês seguinte, parte das Forças Armadas, associada a Carlos Lacerda e ao presidente interino Carlos Luz, pôs em prática a Novembrada – uma tentativa de golpe para impedir Juscelino de tomar posse.
O general Henrique Teixeira Lott, defensor do resultado das urnas, soube do movimento e, em 11 de novembro, botou tropas nas ruas do Rio de Janeiro, conseguindo a renúncia de Luz. O general havia dado um golpe para evitar outro.
Nas eleições de 1960, Lott se candidatou à presidência. Perdeu para o imprevisível Jânio Quadros, que acabou renunciando em 24 de agosto de 1961. Seu vice, João Goulart, o Jango, estava em viagem na Ásia. Os ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica logo divulgaram um manifesto em que afirmavam categoricamente a “inconveniência” do retorno de Jango – considerado esquerdista demais – ao Brasil.
Surgiu um clima de tensão poucas vezes visto no Brasil. Assim como Lott garantira a posse de Juscelino, o general Machado Lopes, sob influência do governador gaúcho Leonel Brizola, ameaçou colocar o Terceiro Exército em combate para levar Jango ao poder. Deu certo. Os comandantes das Forças Armadas recuaram e permitiram o retorno do presidente, que assumiu em 7 de setembro de 1961.
Durante seu governo, Jango propôs reformas econômicas e comprou brigas com militares e com civis. Em 13 de março de 1964, durante um comício, assinou o decreto da reforma agrária – sinal de que ele estava mesmo disposto a mexer com os grandes proprietários.
Longos 21 anos
Rapidamente espalhou-se o boato de que Jango daria um golpe para se tornar ditador. Mas quem deu o golpe foram os militares – e, desta vez, nenhum deles se ergueu para defender a “legalidade”. A mobilização começou tímida, na tarde de 31 de março, com a quartelada de uma divisão de infantaria na cidade mineira de Juiz de Fora.
Enquanto o governo hesitava, militares que não acreditavam num golpe começaram a aderir ao movimento. Não houve resistência. Na noite de 1º de abril, Jango se conformou de que aquilo tudo não era mentira: deixou o cargo e partiu para Porto Alegre, seguindo para o exílio no Uruguai.
O general Humberto de Alencar Castello Branco, um veterano da FEB, assumiu a presidência em 15 de abril de 1964. Para acabar com a oposição, o novo governo destituiu de seus cargos centenas de juízes, políticos eleitos e militares. Ainda assim, havia a impressão de que a democracia poderia voltar logo.
“A presença militar, que na política sempre se apresentou para restabelecer a ordem, poderia ter terminado ainda nos anos 60”, diz o general Sérgio Augusto de Avelar Coutinho, diretor do Clube Militar.
Segundo ele, acontecimentos como o fracassado atentado a bomba de 1966 contra o então ministro da Guerra, Artur da Costa e Silva, em Recife, deram argumentos para quem se opunha ao fim rápido do regime. “Ações terroristas como essa acabaram reforçando uma corrente messiânica dentro das Forças Armadas, que só deixaria o poder muito tempo depois.”
Essa “corrente messiânica” era composta por oficiais que acreditavam que o comunismo era uma ameaça constante e devia ser aniquilado a qualquer preço – por meio de espionagem, tortura e perseguição política. Costa e Silva, que sucedeu Castello em 1967, era um legítimo membro dessa estirpe, conhecida como “linha dura”.
Em dezembro de 1968, ele assinou o Ato Institucional número 5, o AI-5, que suspendeu direitos jurídicos dos cidadãos e abriu caminho para que atrocidades fossem cometidas sem que o regime tivesse que responder por elas. Emílio Garrastazu Médici, que assumiu a presidência em 1969, endureceu ainda mais o regime.
Novos ares
A situação começaria a mudar em 1974, com a chegada do general Ernesto Geisel ao poder. Com o apoio do general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil, ele criou um plano para a volta à democracia, anunciado como uma “lenta, gradativa e segura distensão”. Estudiosos argumentam que a principal razão da abertura teria sido o medo de perder o controle do regime.
Essa ameaça ficou clara durante o governo Geisel. Mesmo que ele tentasse conter a violência dos militares, os assassinatos políticos não pararam (como o do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975).
A insubordinação dos militares contrários à abertura fez Geisel demitir seu ministro do Exército, Sylvio Frota, em outubro de 1977. A medida tirou do governo o mais graduado linha dura e indicou que o fim da ditadura estava próximo. Outro sinal foi a revogação do AI-5, em janeiro de 1979. Dois meses depois, o general João Baptista Figueiredo assumiu o poder e teve que se acostumar às manifestações populares que contestavam o regime, culminando com a campanha pelas eleições diretas, em 1984.
Após a morte de Tancredo Neves, Sarney chegou à presidência, no ano seguinte, a transição estava completa. Na última entrevista que deu antes de sair do poder, Figueiredo deu um recado ao povo brasileiro: “Me esqueçam”. E, repetindo o gesto de Floriano Peixoto no século 19, ele também não foi à posse de seu sucessor civil.
Com o desgaste dos militares em decorrência da ditadura e o amadurecimento da democracia, a situação deles mudou bastante na época.
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