segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

"UM LIVRO INESQUECÍVEL"

"A doce voz de uma mineira de Lavras ressuscitou nestas páginas o mundo ambiente que constituía a sua paisagem familiar. Um encanto da evocação é ainda de não ter alterado, na marcha da própria cultura adquerida, as linhas melódicas da cantiga infantil.

É a saudade vencendo o tempo. Essa menina de Minas Gerais. Maria Eugênia Maceira, hoje senhora Nelson Borges Montenegro, reconstrói a meninice feliz e despreocupada, na movimentação incessante e normal do cenário de Lavras, Sant'Ana de Lavras do Funil, Princesa do Sul, Atenas Mineira.

O pai é português, emigrado do norte de Portugal, engenheiro, agrimensor, desenhista, fotógrafo, hortelão, jardineiro, matemático, trabalhando na estrada de ferro e nas rodovias, doutor formado na Universidae da Vida, com intuições geniais de adaptação técnica. A mãe, brasileira, com sete filhos, educa, vitaliza e enriquece o espírito de sua floração inquieta, sadia, natural.

Maria Eugênia Maceira Montenegro reconduz os passos para a rua d. Inácia, com sua noite colonial de escuro, estrelas no céu e sacis-pererês cabriolando nos caminhos silenciosos. Uma a uma as figuras reaparecem, completas, íntegras e vivas, recomeçando o romance da cotidiana missão de esforço e de esperança. A moldura de lavras volta a uma presença legítima sob as luzes sentimentais das lembrança, serras, águas, flores, pássaros.

A vida para a menina é sua família, pais, irmãos, primos e tias, um pequenino universo com seus ciclos gravitacionais e luminosos de episódios íntimos, passeios, brigas, desejos, viagens curtas e sonhos longos, todos os elementos que compôem a ecologia imultável das recordações.

Mas essas memórias de uma menina feia vividas entre fúcsias e jasmim, revendo o baúzinho verde onde o passado esconde as riquesas da memória fiel, olhando colibrís, borboletas e marimbondos, casas, fisionmias queridas, é também um documento precioso pela sua veracidade, no plano testemunhal, de uma família modesta e pobre, mantida pela obstinação de todas as horas, com a mão tradicional, inesgotável de força criadora, impressionante na grandeza comunicativa de energia. Depoimento da normalidade familiar brasileira em Minas Gerais, reserva de perenidade moral na resistência coletiva.

Vereis como essas crianças foram educadas, alimentadas, postas no ritmo inflexível do trabalho, da colaboração pessoal, numa ante-preparação ao solidarismo social. Naquela casinha da rua d. Inácia, não há seres inúteis, preguiçosos, indolentes e fixados ao marginalismo aproveitador da produção alheia. Até Maisé trabalha no mundo povoado de bonecas sublimadoras da frustração maternal.

Compreende-se por esse Saudade, teu nome é menina como a família a perpetuidade do grupo nacional, não porque as crianças nascem, mas, porque as mães anônimas sabem transformá-las em homens dignos e em mulheres admiráveis. Vai d. Gena contando sua história nas estórias de sua meninice. Ecerra o velário quando ama, noiva, casa, com um nordestino estudante em Lavras, acompanhando o marido para paisagens distantes, estranha e diversa das verdes matas, águas catadupejantes, frios de inverno, da mesma alimentação que a terra justifica em sua generosa multiplicação, frutos, verduras, hortaliças. Nas várzeas do Assu, riscadas pelo rio que ressuscita quando chove, olhando carnaubais, a mineirinha da casinha de madeira do jardim, do pomar da rua d. Inácia, laboratório de exemplos tranquilos de confiança e de fé e transmite ao filho, o mais fidalgo dos quatro mosqueteiros, a reminescência de como sua vida começara, limpa e nobre, ensopada no leite mais puro da ternura humana. Um dos encantos deste livro é a sua comunicabilidade. Vivemos também no seu tempo, morando na mesma casa, recebendo as bençãos ds mesmas tias, os presentes quando papai voltava, comendo doces inesquecíveis e dos pratos telúricos da cozinha mineira. Tantos fios emocionais nos prendem na indêntica insistência da mesma teia eterna e permanente dos lares onde o sono infantil é guardado pela asa do anjo da guarda maternal, A autora, sem pensar e talvez sem querem, conseguiu esse milagre de afetuoso contágio. Todos os seus leitores participam dos encantos sem pecados e na convivência sem vícios dessas roseiras mineiras, cujas flores se trasplantam para o nordeste, recriando e mantendo a beleza cristã dos lares felizes."

Luis Da Câmara Cascudo

(Sobre o livro de estréia intitulado "Saudade, Teu Nome é Menina", da escritora assuense de Lavras, Maria Eugênia)


domingo, 3 de fevereiro de 2008

UM POUCO DE MOYSÉS SESYOM

Moysés Lopes Sesyom nasceu no dia 28 de julho de 1883 no sítio Baixa Verde, Caicó-RN e viveu grande parte da sua vida na cidade de Assu há partir de 1905. Naquela terra assuense começou a produzir versos satíricos, chistosos, fesceninos, que lhe fez poeta consagrado. Ficou conhecido como "O Bocage Riograndense". Câmara Cascudo no seu livro intitulado "O Livro das Velhas Figuras, volume 4, depõe que Sesyom (conta-se que ele começou a versejar já adulto, aos 30 anos de idade)"sem saber, era poeta verdadeiro, espontâneo, inesgotável, imaginoso, original."

Certa dia, bebendo num certo botequim da cidade de Assu alguém lhe dera o seguinte mote: "Bebo, fumo, jogo e danço / Sou perdido por mulher". Aquele bardo boêmio de vida atribulada, escreveu na hora a seguinte décima que se tornou célebre:

Vida longa não alcanço
Na orgia ou no prazer,
Mas, enquanto eu não morrer
- Bebo, fumo, jogo e danço!
Brinco, farreio, não canso,
Me censure quem quiser...
Enquanto eu vida tiver
Cumprindo essa sina venho,
Além dos vícios que tenho,
Sou perdido por mulher!...

A glosa seguinte é uma das mais notórias que Sesyom produziu. Vamos conferir:

Isto ontem aconteceu
Debaixo da gameleira.
Foi um tiro de ronqueira,
O peido que a doida deu.
A terra toda tremeu,
Abalou todo o Assu,
Ela mexendo o angu,
Puxou a perna de lado.
Deu um peido tão danado
Quase não cabe no cu.

Francisco Amorim depõe em Eu Conheci Sesyom, 1. Edição, que o mote "Sua mãe foi fêmea minha" foi dado a Sesyom por um amigo que se encontrava bebendo com ele no Hotel Pátria, da cidade de Assu, que ali mesmo Sesyom glosou:

A sua raça é safada
Desde a quinta geração
Seu avô foi um cabrão
Sua avó, puta de estrada
Sua filha, amasiada
Prostituta uma netinha
Uma irmã que você tinha
Esta pariu de um criado
Seu pai foi corno chapado
Sua mãe foi fêmea minha.

Sesyom numa feliz inspiração, com amor a sua terra natal, escreveu o soneto publicado no jornal "A Cidade", de Assu, edição de 13 de março de 1927, intitulado "Soneto", que diz assim:

Caicó, berço de luz. Terra adorada.
De belas tradições. Bem conhecida.
Onde, em tempo, passei vida folgada,
Terra que nunca esquecerei na vida.

Caicó, ninho querido. Idolatrada,
Terra sem outra igual, calma, florida,
Onde meus pais nasceram, abençoada,
Onde reside minha mãe querida.

Vivem ali na formosa paz da serra,
Meus irmãos de quem vivo separado,
Filhos que também são daquela terra.

Terra de Senador e Deputado,
Onde nasceu o Padre Brito Guerra
E o nobre Presidente do Estado.

Sesyom é Moiysés ao contrário. Morreu no dia 9 de março de 1932 e está enterrado na Cemitério São João Batista, da cidade de Assu/RN.

Fernando Caldas






















sábado, 2 de fevereiro de 2008

UM POETA MATUTO

O poeta popular Paulo Varela é natural do Assu (RN), meu amigo e conterrâneo, considerado um dos melhores poetas matutos desse Nordeste. Ele, Paulo, é gago e declama sem dificuldade. Já se parentou no Programa do Jô, na TV Globo, bem como é convidado para apresentar palestras e conferências sobre a sua poesia genuinamente matuta. Poucos dias depois, emissora de televisão a sua apresentação naquela em Globo reapresentou a sua entrevista em razão de já ter sido um sucesso total em todo o Brasil. Ele participa de feiras de artesanatos e da Festa do Boi, em Parnamirim (RN), onde arma um stander (uma casa de taipa, típica do sertão do Nordeste, que ele mesmo constrói), onde vende seus discos (CD), folhetos de cordel e apresenta a sua arte de versejar, nas casas de shoows de Natal. Um dos seus discos intitula-se "Remédio Pra Subir Pau", 2004. Segundo o poeta que começou a escrever poesias a trinta anos atrás, já tem quase duas mil composições. Ele também é artista plástico e "se diz um cabôco escrevedô e contadô de causos matutos".

O professor e historiador Edson Aquino Cavalcante escreveu sobre Paulo dizendo que ele "tinha jeito para o desenho artístico, mais tardes resulta neste mestre que deixa todos boquiabertos com a sua capacidade de criação. Sendo hoje um contador de causo de primeira linha".

A propósito da sua entrevista no Programa do Jô apresentado, salvo engano, no dia 02 de fevereiro e reapresentado no dia 21 de março de 2005, o jornal "O Mossoroense", publicou a seguinte nota: "A madrugada do último sábado foi marcada pela presença do poeta popular assuense Paulo Varela no Programa do Jô. O homem deu um verdadeiro show mostrando que a cultura popular é rica (...).

Afinal de contas Paulo Varela é de onde? Não é do Assu! Terra de tantos poetas e trovadores consagrados nacionalmente! Vamos conferir a sua verve, a sua criatividade poética que agrada a leigos e letrados:

Pro mode dessas doidice
Que temo que escutar
Tanta coisa ripitida
Desses tanto bla-blá-blá
Por isso qui tenho dito
Os versos são mais bunito
Do que esses pocotó
Gente sen arte tá rico
E ouvido não é pinico
E nem também urinó
Faço coisa diferente
Dessas raízes da gente
Pois eu acho mais mió

Falo de nossas sabenças
Das nossas maledecências
Das coisas do mei rurá
Eu falo do sofrimento
Do chicotar do jumento
Do vôo do carcará
Falo do gado magrenho
Da cachaça, do engenho
Do nordestino sofrido
Desse mato ressequido
Do espinho unha-de-gato
Tocaia no mei do mato
Das poça, do lamaçá
Da mãe que dá de mamar
Do aboiar do vaqueiro
Do repicar do ferreiro
Das prece, dos retirante
Dos bando de avuante
Do sol amarelo e quente
Da fome de nossa gente
Cangaia, borná, chucaio
Tropeiro no seu trabaio
Bisaca, xote, capim
Das negas, dos cabra ruim
Viola, moitão, furquia
Do calor do meio-dia
Casa de taipa, forró
Cachorro, gato, socó
Dos cabôco bom de briga
Das gostosas rapariga
Trinchete, alguidá, panela
Do pilão, cabaço e vela
Do luar, da lamparina
Dos perfume das menina
Quengo, feira e caçote
Biqueira, coice, magote
Farinha, feijão, arroz
Do nosso baião-de-dois
Cangapé, foice, matuto
Nossa fé, do nosso luto
Dos andar das romaria
Do repente, cantoria
Das beatas rezadeira
Dos tiros de baladeira
Dos bolão de vaquejada
Dos coriscos, trovoada
Enxada, perneira e pá
Brida, roçado, vasante
Mas vamos mais adiante
Que não parei de falá.

No folder da festa de São João, de 2004, a festa maior do Assu, está transcrito um poema convite de sua autoria, desta forma:

Pros cabôcos que é de fora
Nóis queremo convidá,
Pra beber de nossa água,
Pro móde nóis forrozá.
Ver quadria e buscapé,
Quem sabe arranjá muié,
Cum as cabôcas se insfergá.
Quem sabe arranjá cabôco
Pra sair do caritó,
Pra resolvê seu sufôco.
In nossa festa arretada,
Só vai tê gente educada,
I vai ser coisa de lôco.
Tem mio, canjica e baião,
Pamonha, alfinim, bandeira,
Xote, buchada e fugueira.
Vai tê balão em fileira,
E a novena é de primêra.
Tem corrida de jumento,
Umas bandas de talento,
E um show de alegria.
Eu lhe convido de novo,
Pra tú cunhecê o povo
Da terra da poesia.


 Fica um pouco do "Mestre Paulo Varela" como é conhecido em Natal.

Fernando Caldas

"VARZEA DO ASSU"

"Manuel Rodrigues de Melo não sub-titulou seu livro romance, conto ou crônicas. Deu- lhe, como indicação justa: Paisagens, tipos e costumes do Vale do Assu. Não é um volume de imaginação. É um depoimento. Sua densidade é soberba de verdade e de força fiel. Nenhum livro apareceu, até abril de 1940, com tal riqueza de informes varzeanos, com tal ciência de minúcia, com detalhes registrados de maneira clara, simples, honesta. Sente-se que, aberta a comporta da reminescência, cantaram impetuosos as águas represadas, livres em seu ímpeto veloz. É a confusão aparente, indico, para olhos limpos, de uma grande massa de notícias que se comprimia, impaciente, nos recantos da memória. Trabalho de varzeano, traduz idioma, modismo deliciosos, usados na paisagem espiritual onde o autor viveu. Todas as figuras qe povoam Várzea do Assu vivem ou viveram. As ruas sem nomes dos povoados, os becos, as praças humildes, os pátios das fazendas que a seca de 1915 despovoou, todas as cenas de enchente e estiagem, de gado e de rio, plantio, pescaria, são modelos tomados ao original. A vida da Várzea, cortada pelo rio imenso, posou para M. Rodrigues de Melo. Não será um foto à Lariev mas é um instantâneo verídico, exato, cuja Kodak não teve a objetiva escura pelo desejo de renome, além do sonho de prolongar sua terra pelas paisagens do seu livro. que sabemos nós, do litoral e sertão, sobre a vida dos varzeanos do Assu, a zona que, de futuro, valerá duas Californias e três Virginias? Apenas, há mais de meio século, Luiz Carlos Lins Wanderley publicou um romance, Mistério de um homem rico, cuja ação se desenrola no Assu. Quais são os leitores desse romance desaparecido? Conheço apenas o segundo volume. Nesse silêncio de cinquenta anos há uma solução de continuidade, inesperada, singela, mas decisiva e nobre: é esse livro evocador, dolorido, emocional e sugestivo. Para criticar seu heroísmo, em escrevê-lo e publicá-lo, é obrigatório fixar pontos de referências? Onde estão os livros descrevendo, com naturalidade e calor, a via da várzea assuense?

É de notar a ausência das tarefas de carnaúba, corte de folhas, batida, fazimento de cera, seus processos. E quem nos diz que essa omissão não seria intencional? Que haja o autor reservado essa parte para o outro ensaio, em que estude a organização tradicional do trabalho na população do Assu? Quantas curiosidades foram relevadas... E o vocabulário capitoso, entubibaram, fiota, pé de castelo, mulada, rupe, feder a fogo, marombos, trambecar, rebolada, de macambira vasqueira, dando para casa, deu de marcha, o cavalo acendeu as orelhas, desadorador, taipero de pilão, tenha tramém, que ouvimos, empregamos mas não escrevemos, assombrados com a fauna extinta dos gliptodontes gramaticais? E o verbo espírita, obsoleto e desusado em portugal, comum aos clássicos, citado em Ferreira (Comédia de Bristo, c. v. do voato) com a contratação ora em Deus em ti, e, na várzea do Assu, o bicho? É com parcimônia que cito.

Não é menor a divulgação de hábitos que se tornaram como cerimônias, espécie litúrgica de gestos, indispensáveis a esse ou aquele ato. Nos bailes dos Mucaias há o cerimonial popular de oferecer bebida em que o pagador deverá liberar primeiramente. Tome! Não, dizia o companheoro, venha de lá. Não, pode tomá. Só entã o parceiro bebe. Todos nós sabemos desse detalhe. Mas ninguém o escrevera ainda. E como esse, inúmeros. Pertencem, essas informações, ao domínio etnográfico, indispensável para o estudo da psicologia coletiva.

A retirada do gado, a derrubada do barbatão pelo vaqueiro Preto Ruivo, da azenda Alemão, está como um retrato ao vivo: - Ao sair numa capoeira pequena e estreita, Preto Ruivo enrolou novamente. Enrolou e segurou. Abrindo o cavalo para fora num ímpeto de raiva, sentão a mão na saia do barbatão, pegou o cavalo nas esporas e gritou ao bicho, jogando-o por cima de uns troncos de catingueira. É rápido, preciso, numa linguagem que será desconhecida aos que se iniciaram nas lides do sertão pastoril. Sentar, abrindo o cavalo, pegou nas esporas, saia do barbatão, gritou ao bicho, são mistérios para um praiano mas lembranças vivíssimas para quem residiu e ama a terra bravia do sertão de pedra.

É esse Várzea do Assu o primeiro livro do autor. Vale por um balanço de capacidade. Raros começaram por essa forma, amando a vida e narrando-a sem disfarces e mentiras de estilo bolo-de-noiva ou pornografias convencionais de realismo.

M. Rodrigues de Melo não andou escrevendo a várzea do Assu. Andou filmando. E com a mais sensível, delicada e fiel das máquinas: - o coração..."

Luis da Câmara Cascudo
(In O livro das Velhas Figuras)

De Nino, o filósofo me-lancólico do Beco da Lama, molhando a arte de viver com goles de uísque: “A vaidade humana, às vezes, é perversa. Não...