A expressão “ao Deus dará” era usada em tempos remotos como negativa diante do pedido de esmolas de algum mendigo. Com o tempo, o “Deus dará” foi ganhando o sentido que tem hoje: de algo ou alguém jogado à sua própria sorte, sem rumo e auxílio. Contudo, desde o fim de abril a escassez de chuva no semi-árido potiguar emprestou de vez à famosa expressão as cores do desamparo. Não existe Deus dará. Deus não deu, a chuva não veio e o que sobra é isso: “Se Deus não mandar a chuva, eu não sei o que vou fazer. Não tenho por onde ir”, expressa o agricultor José Gilberto da Fonseca, de 59 anos, que planta e colhe milho, feijão, mandioca, desde os 10 anos no município de Santa Cruz.
Júnior SantosApesar da existência de programas e projetos que amenizem a convivência com a seca, produtores rurais não se sentem amparados pelo governo
Se os desígnios de Deus são insondáveis, os caminhos traçados pelos homens, ao contrário, são passíveis de análise, classificação e definição. A chuva não veio. Ninguém há de levantar as mãos ao céu e blasfemar contra a vontade divina. O agricultor potiguar, ainda cheio de fé, bem sabe. Em contraponto, o mesmo produtor rural tem ciência de que pode e deve cobrar de alguém, não a falta de chuva, mas uma solução até mesmo paliativa para conviver com um problema secular e previsível. Apesar da existência de inúmeros projetos governamentais, o produtor rural potiguar ainda se sente desamparado.
Ao saber da história de José Gilberto é possível entender o porquê do sentimento de “ao Deus dará”. Ele vive na comunidade de Santa Luzia, a cerca de 10 quilômetros do município de Santa Cruz. O agricultor não sabe precisar quantas famílias exatamente vivem em Santa Luzia, embora tenha um motivo razoável para ter na memória a informação precisa: as famílias dos arredores sobrevivem todas da água armazenada em sua cisterna.
Como os tempos são de “seca verde”, onde a cor da paisagem dá uma falsa sensação de fartura, a água está escassa. Aliás, escassa para o consumo humano, rara para o crescimento do pasto para o gado e quase inexistente para o cultivo.
Dessa forma, o agricultor se vê numa “escolha de Sofia”: preparar a terra para plantar ou manter o pasto para o gado. Não existe uma única resposta e cada um segue a sua intuição. José Geraldo preferiu manter o pasto, mas não foi totalmente feliz em sua escolha. O alimento não foi conservado em quantidade suficiente e o criador já perdeu uma vaca, vitimada pela fome. Um outro animal foi salvo graças a cinco sacos de ração, contudo, como o dinheiro está acabando, as outras vacas – 18 no total – não terão a mesma sorte. Sem plantação e com os bichos secando mais que a paisagem, José Gilberto já planeja se desfazer de parte do patrimônio para conseguir sustentar a mulher, o filho, a nora e a neta de apenas três meses. “Se for o jeito, vou precisar vender algum animal. Fico com pena porque na época de fartura uma vaca dessas vale R$ 1 mil. Se for agora, mal pagam R$ 600”, lamenta.
Em situação semelhante e ao mesmo tempo inversa está o agricultor Manoel Batista da Silva, de 53 anos. Semelhante porque também não há perspectivas. Diversa porque Manoel fez uma escolha contrária a de Gilberto: preferiu plantar feijão e milho a manter o pasto para os animais. Como as precipitações têm sido irregulares, não há muita esperança que a colheita sirva para comer o resto do ano. Ao mesmo tempo, os animais emagrecem ao passar do tempo e devem estar nas mãos de um negociante esperto em breve. “Vou dar duas semanas, se não chover, vou vender pelo menos umas três cabeças de gado”, diz Manoel.
Os dois produtores rurais – Gilberto e Manoel – são ainda companheiros em outra sina. Falta água potável para a comunidade de Santa Luzia. Como a estiagem tem secado a cisterna de Gilberto, o que resta às famílias dos arredores são os barreiros, reservatórios de água reservados aos animais. “Ali bebe de tudo, urubu, boi, cachorro, o que o senhor imaginar. E também nós, quando não tem água na cisterna pra todo mundo”, diz Gilberto. E complementa: “É pouco pra todo mundo aqui da comunidade, mas eu não consigo negar água. Não sei o porquê. Só de pensar em negar água a um cristão já me dá uma coisa ruim”.
Dentre os produtores rurais, Manoel e Gilberto fazem parte de uma categoria ainda mais desamparada. A reportagem conversou com vários agricultores e a maioria listava um trunfo: a aposentadoria. “Quem tem aposentadoria ainda consegue dar um jeito”, explica o representante da Associação dos Produtores Rurais do Trairi. Gilberto, Manoel e muitos outros não podem contar com essa sorte. Estão, de fato, “ao Deus dará”. Mas e se Deus negar?
Projetos existem, falta agilidade na sua execução
É quando o rumo “natural” dos acontecimentos não engrena e uma parcela da população sente na pele os efeitos da desventura que o poder público tem a obrigação de cumprir o seu papel, qual seja proporcionar uma vida digna a todos, segundo a Constituição Brasileira. Os produtores rurais sabem disso. O que muitos deles não sabem é que os Governos federal e estadual aplicam uma série de projetos e programas para ajudar os agricultores a conviver com os inevitáveis e periódicos tempos de estiagem.
O grande projeto do Governo Federal para tentar amenizar a situação dos que sofrem com a seca é o Garantia-Safra, que paga R$ 550 para agricultores familiares que perderam pelo menos 50% da produção. Apesar de ser o carro-chefe do Governo, o projeto sofre com atrasos e dificuldades provenientes da burocracia. Na última semana, a parcela referente ao ano 08/09 começou a ser paga, um ano depois das perdas da safra. As perdas deste ano ainda estão sendo catalogadas e o dinheiro deve sair no próximo ano. “Infelizmente, o Ministério ainda não conseguiu dar agilidade suficiente para o processo. Mas uma coisa é certa: o dinheiro é pago e os produtores contam com essa renda”, diz Elton Dantas, extensionista rural da Emater.
Com relação à convivência imediata com a falta de água, atuam principalmente dois projetos no Estado. Um deles é do Governo Federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento Social, e o outro é da Secretaria Estadual de Recursos Hídricos. São o Segunda Água e o Programa Simplificado de Abastecimento, respectivamente. O Segunda Água atua na construção de tecnologias sociais de armazenamento de água, como cisternas, barragens subterrâneas, entre outros. É a Emater quem executa o programa, inclusive avaliando a viabilidade técnica de cada propriedade. As prefeituras são responsáveis pelo cadastro e indicação de quem deve receber o benefício. Da mesma forma, o Programa Simplificado de Abastecimento de Água, da Semarh, que consiste na perfuração de poços para comunidades pelo Estado. Cada poço serve a dezenas de famílias. “Temos ainda projetos de dessalinização, no chamado saneamento rural. Nosso projeto de perfuração de poços é um dos maiores do Brasil”, explica Féliz Fialho, coordenador de Gestão de Recursos Hídricos da Semarh. O primeiro programa – federal – tem o perfil de ajudar no armazenamento de água para a criação e o plantio, enquanto que o segundo procura dar água de qualidade para o consumo humano.
Para completar existe o sistema de financiamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário (Mais Alimentos). Nele é possível financiar, com baixas taxas de juros, tratores, silos, construção de barragens e uma série de outras benfeitorias. Nesse caso, a intenção é beneficiar uma série de cadeias produtivas (criação de animais e plantio).
Um fato que chama a atenção é que, apesar da existência de programas e projetos que amenizem a convivência com a seca, muitos dos produtores rurais não se sentem amparados pelo poder público. A reportagem conversou com vários na Associação de Produtores Rurais do Trairi e todos tinham reclamações. No caso do crédito, eles argumentam que os agricultores já não podem acumular mais dívidas. A título de informação, o Governo Federal estuda inclusive um novo perdão às dívidas de produtores rurais, em medida provisória a ser apreciada pelo Legislativo.
Nos demais projetos, ou não se conhece a sua existência ou eles ainda não conseguiram contemplar os produtores de locais mais afastados. Elton Dantas, da Emater, reconhece as dificuldades: “Não temos como chegar a todos os agricultores e por isso precisamos de parcerias com sindicatos e Prefeituras”. Félix Fialho confia no Programa Simplificado de Abastecimento para dar um destino mais digno a essa população. “Estamos com 60% da meta realizada. Iremos chegar a dois mil poços até o fim do ano”, encerra.
(Transcrito do jornal Tribuna do Norte, de Natal, 16.5.2010).