SOBRE TUDO

FERNANDO CALDAS

sábado, 23 de junho de 2012

Carta do Zé agricultor para Luis da cidade.


  • "A carta a seguir - tão somente adaptada por Barbasa Melo - foi escrita por Luciano Pizzatto que é engenheiro florestal, especialista em direito sócio ambiental e empresário, diretor de Parque Nacionais e Reservas do IBDF-IBAMA 88-89, detentor do primeiro Prêmio Nacional de Ecologia."

    Prezado Luís, quanto tempo.

    Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão por isso o sapato sujava.

    Se não lembrou ainda eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe, era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra né Luis?

    Pois é. Estou pensando em mudar para viver ai na cidade que nem vocês. Não que seja ruim o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos ai da cidade. To vendo todo mundo falar que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente.

    Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes por dentro uma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança.

    Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou deve ser verdade, né Luis?

    Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né .) contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da Delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana ai não param de fazer leite. Ô, bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário?

    Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca, e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa! Eu não sei como encumpridar uma cama, só comprando outra né Luis? O candeeiro eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Juca.

    Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Luis, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelo fiscais e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo.

    Depois que o Juca saiu eu e Marina (lembra dela, né? casei) tiramos o leite às 5 e meia, ai eu levo o leite de carroça até a beira da estrada onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora.

    Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros . Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não vai mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luis, aí quando vocês sujam o rio também pagam multa grande né?

    Agora pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios aí da cidade. A pocilga já acabou, as vacas não podem chegar perto. Só que alguma coisa tá errada, quando vou na capital nem vejo mata ciliar, nem rio limpo. Só vejo água fedida e lixo boiando pra todo lado.

    Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luis? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora!. Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.

    Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vim fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo ai eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do
    Promotor porque virei criminoso reincidente. Primeiro foi os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.

    Tô preocupado Luis, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender, e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, ai tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.

    Eu vou morar ai com vocês, Luis. Mais fique tranqüilo, vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Ai é bom que vocês e só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem planta, nem cuida de galinha, nem porco, nem vaca é só abri a geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nós, os criminosos aqui da roça.

    Até mais Luis.

    Ah, desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio.

    (Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento ambiental é desigual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.)

    Pâmela Gallas Buche
    Tecnóloga Ambiental.

    Postado por Fernando Caldas



    --
     ·  · Compartilhar

às junho 23, 2012
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no XCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem mais recente Postagem mais antiga Página inicial
Assinar: Postar comentários (Atom)

  "Quero apenas cinco coisas A primeira é o amor sem fim A segunda é ver o outono A terceira é o grave inverno Em quarto lugar o verão ...

  • (nenhum título)
     
  • (nenhum título)
     
  • (nenhum título)
     

Quem sou eu

Minha foto
FERNANDO CALDAS
Natal, Deus, Brazil
Ver meu perfil completo

Arquivo do blog

  • julho 2025 (18)
  • junho 2025 (13)
  • maio 2025 (16)
  • abril 2025 (9)
  • março 2025 (9)
  • fevereiro 2025 (15)
  • janeiro 2025 (11)
  • dezembro 2024 (5)
  • novembro 2024 (9)
  • outubro 2024 (11)
  • setembro 2024 (25)
  • agosto 2024 (15)
  • julho 2024 (19)
  • junho 2024 (17)
  • maio 2024 (26)
  • abril 2024 (26)
  • março 2024 (32)
  • fevereiro 2024 (10)
  • janeiro 2024 (30)
  • dezembro 2023 (31)
  • novembro 2023 (31)
  • outubro 2023 (29)
  • setembro 2023 (16)
  • agosto 2023 (12)
  • julho 2023 (11)
  • junho 2023 (24)
  • maio 2023 (22)
  • abril 2023 (39)
  • março 2023 (70)
  • fevereiro 2023 (38)
  • janeiro 2023 (37)
  • dezembro 2022 (59)
  • novembro 2022 (31)
  • outubro 2022 (20)
  • setembro 2022 (33)
  • agosto 2022 (51)
  • julho 2022 (23)
  • junho 2022 (21)
  • maio 2022 (43)
  • abril 2022 (52)
  • março 2022 (56)
  • fevereiro 2022 (52)
  • janeiro 2022 (54)
  • dezembro 2021 (39)
  • novembro 2021 (58)
  • outubro 2021 (88)
  • setembro 2021 (63)
  • agosto 2021 (39)
  • julho 2021 (37)
  • junho 2021 (40)
  • maio 2021 (55)
  • abril 2021 (74)
  • março 2021 (63)
  • fevereiro 2021 (37)
  • janeiro 2021 (60)
  • dezembro 2020 (47)
  • novembro 2020 (39)
  • outubro 2020 (30)
  • setembro 2020 (23)
  • agosto 2020 (25)
  • julho 2020 (50)
  • junho 2020 (67)
  • maio 2020 (50)
  • abril 2020 (53)
  • março 2020 (42)
  • fevereiro 2020 (36)
  • janeiro 2020 (53)
  • dezembro 2019 (50)
  • novembro 2019 (92)
  • outubro 2019 (58)
  • setembro 2019 (36)
  • agosto 2019 (45)
  • julho 2019 (63)
  • junho 2019 (27)
  • maio 2019 (39)
  • abril 2019 (36)
  • março 2019 (65)
  • fevereiro 2019 (44)
  • janeiro 2019 (63)
  • dezembro 2018 (71)
  • novembro 2018 (87)
  • outubro 2018 (41)
  • setembro 2018 (42)
  • agosto 2018 (38)
  • julho 2018 (50)
  • junho 2018 (53)
  • maio 2018 (27)
  • abril 2018 (29)
  • março 2018 (28)
  • fevereiro 2018 (20)
  • janeiro 2018 (41)
  • dezembro 2017 (30)
  • novembro 2017 (23)
  • outubro 2017 (42)
  • setembro 2017 (34)
  • agosto 2017 (39)
  • julho 2017 (45)
  • junho 2017 (47)
  • maio 2017 (39)
  • abril 2017 (47)
  • março 2017 (29)
  • fevereiro 2017 (50)
  • janeiro 2017 (47)
  • dezembro 2016 (52)
  • novembro 2016 (60)
  • outubro 2016 (40)
  • setembro 2016 (30)
  • agosto 2016 (36)
  • julho 2016 (77)
  • junho 2016 (79)
  • maio 2016 (44)
  • abril 2016 (87)
  • março 2016 (53)
  • fevereiro 2016 (71)
  • janeiro 2016 (134)
  • dezembro 2015 (99)
  • novembro 2015 (111)
  • outubro 2015 (30)
  • setembro 2015 (59)
  • agosto 2015 (97)
  • julho 2015 (66)
  • junho 2015 (71)
  • maio 2015 (72)
  • abril 2015 (68)
  • março 2015 (82)
  • fevereiro 2015 (61)
  • janeiro 2015 (74)
  • dezembro 2014 (76)
  • novembro 2014 (70)
  • outubro 2014 (69)
  • setembro 2014 (59)
  • agosto 2014 (72)
  • julho 2014 (86)
  • junho 2014 (68)
  • maio 2014 (121)
  • abril 2014 (169)
  • março 2014 (120)
  • fevereiro 2014 (92)
  • janeiro 2014 (153)
  • dezembro 2013 (167)
  • novembro 2013 (124)
  • outubro 2013 (133)
  • setembro 2013 (159)
  • agosto 2013 (174)
  • julho 2013 (167)
  • junho 2013 (93)
  • maio 2013 (117)
  • abril 2013 (78)
  • março 2013 (142)
  • fevereiro 2013 (135)
  • janeiro 2013 (163)
  • dezembro 2012 (175)
  • novembro 2012 (273)
  • outubro 2012 (193)
  • setembro 2012 (140)
  • agosto 2012 (79)
  • julho 2012 (57)
  • junho 2012 (43)
  • maio 2012 (59)
  • abril 2012 (59)
  • março 2012 (30)
  • fevereiro 2012 (45)
  • janeiro 2012 (88)
  • dezembro 2011 (76)
  • novembro 2011 (74)
  • outubro 2011 (62)
  • setembro 2011 (71)
  • agosto 2011 (72)
  • julho 2011 (71)
  • junho 2011 (76)
  • maio 2011 (107)
  • abril 2011 (80)
  • março 2011 (73)
  • fevereiro 2011 (63)
  • janeiro 2011 (78)
  • dezembro 2010 (58)
  • novembro 2010 (82)
  • outubro 2010 (63)
  • setembro 2010 (37)
  • agosto 2010 (59)
  • julho 2010 (46)
  • junho 2010 (57)
  • maio 2010 (61)
  • abril 2010 (36)
  • março 2010 (61)
  • fevereiro 2010 (47)
  • janeiro 2010 (49)
  • dezembro 2009 (18)
  • novembro 2009 (47)
  • outubro 2009 (52)
  • setembro 2009 (18)
  • agosto 2009 (40)
  • julho 2009 (28)
  • junho 2009 (29)
  • maio 2009 (21)
  • abril 2009 (26)
  • março 2009 (22)
  • fevereiro 2009 (24)
  • janeiro 2009 (9)
  • dezembro 2008 (24)
  • novembro 2008 (21)
  • outubro 2008 (13)
  • agosto 2008 (2)
  • julho 2008 (3)
  • junho 2008 (7)
  • maio 2008 (3)
  • abril 2008 (7)
  • março 2008 (3)
  • fevereiro 2008 (4)
  • janeiro 2008 (5)
  • dezembro 2007 (5)
  • novembro 2007 (1)
  • outubro 2007 (1)

Marcadores

  • I
  • O

Denunciar abuso

Seguidores

  • Página inicial

Pesquisar este blog

Total de visualizações de página

2697701
Tema Simples. Tecnologia do Blogger.