Norma Telles
1/11/2013
Do que poderia tratar a literatura
feminina no arcaico e patriarcal Brasil Império? A primeira surpresa está na
seguinte informação: o cenário literário brasileiro no século XIX é composto
por um grande número de escritoras, poetas e jornalistas. E elas não se
restringem a escrever livros de etiqueta ou polidez. Operam deslocamentos,
desconstroem estereótipos e incluem na linguagem novos sentidos e ambiguidades
em busca de soluções alternativas para a vida e para a arte.
Com a urbanização incipiente,
disseminava-se um discurso sobre a “natureza feminina” formulado nos países
europeus a partir do século XVIII e difundido aqui pela intelectualidade, mas
também por médicos, higienistas e sacerdotes: a mulher seria maternal e delicada,
força do bem dedicada aos familiares, pronta a qualquer sacrifício, um ser sem
história ou desejos próprios. O outro lado deste “anjo do lar”, sempre à
espreita, era sombrio e poderia torná-la o oposto, verdadeira potência do mal,
caso descumprisse seus deveres. Neste caso, ela saía da esfera privada ou
usurpava atividades que não lhe eram permitidas culturalmente. A ciência, a
literatura e a moralidade da época negavam à mulher a autonomia e a
subjetividade exigidas pela criação artística ou profissional. Tidas como musas
ou criaturas, nunca poderiam ser criadoras.
Foi durante o século XIX, no entanto,
que por todo o Ocidente inúmeras mulheres não só escreveram, como publicaram.
Educadas como meninas para papéis domésticos específicos, sem acesso à educação
para a vida, e por tudo isso donas de vocabulário limitado e que não deveria
abordar emoções como a raiva ou a paixão, era preciso, antes de qualquer coisa,
que elas fizessem uma revisão dessa socialização que lhes repetia serem
incapazes de pensar, discutir, criar. Era preciso que conseguissem superar o
que se convencionou chamar, no século XX, de “ansiedade de autoria”, ou seja, a
dúvida em relação à própria capacidade criativa, em meio a uma tradição
estética que definia a criação como dom essencialmente masculino, na qual o
artista era um progenitor e patriarca estético.
Na
época da Independência, algumas brasileiras se pronunciaram através de dois
manifestos com mais de 120 assinaturas, número então significativo. Publicados
em 1823 pelo jornal Sentinela da Liberdade,
de Cipriano Barata, davam voz a mulheres da província da Paraíba que se
afirmavam como “metade da sociedade” na luta contra o despotismo, e propunham
reassumir direitos que há muito lhes haviam sido roubados. Como cidadãs,
queriam “lutar pela independência”. No manifesto ouvem-se ecos dos escritos da
francesa Olympe de Gourges (1748-1793) e da britânica Mary Wollstonecraft
(1759-1797), ambas famosas por suas reivindicações pelos direitos das mulheres.
Um
dos livros de Wollstonecraft recebeu tradução em 1832, feita por Dionísia
Gonçalves Pinto, natural do Rio Grande do Norte, e conhecida como Nísia
Brasileia Augusta Floresta (1810-1885) – como assinou todos os seus 15 livros
de vários gêneros. Publicado no Recife, onde Nísia morava, a obra recebeu em
português o título Direitos das mulheres e
injustiças dos homens. Editado logo depois em Porto Alegre e no Rio
de Janeiro, o livro deixava perceber várias influências da autora brasileira,
mostrando a mulher como a “classe oprimida” pelo costume, como acontecia na
Europa, e promovendo a educação como fundamental para modificar tal situação.
Nísia Floresta foi republicana, abolicionista, escritora e jornalista, e logo
receberia oposição cerrada, como a campanha difamatória anônima através de
jornais do Rio de Janeiro cerca de 1850. Mudou-se em 1849 para a França, onde
moraria até o fim da vida, tendo seu trabalho apreciado em meio a intelectuais
e a escritores de renome.
A
partir de meados do século surgem em maior número romances e jornais de
propriedade de mulheres, apesar de todos os obstáculos sociais. Um dos
primeiros romances desse período, Ursula, apareceu em
1859. Como a maioria das escritoras de então, a autora, Maranhense de Guimarães
– pseudônimo de Maria Firmina dos Reis (1825-1917) – se desculpava para poder
ser aceita: “Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor (...).
Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher
brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens
ilustrados” – assim começa o livro. A obra se distingue pelo tratamento dado
aos escravos, individualizando-os e dotando-os de histórias próprias, que
remetem à vida em liberdade na África mais de duas décadas antes desses temas
se tornarem presentes na literatura nacional. A autora fala também de liberdade
para a mulher, mas esta era ainda mais difícil de imaginar. Em outro texto,
chamado “A escrava”, publicado na Revista Maranhense, em 3 de novembro de 1887, a escritora
amplia a paisagem, incluindo os caminhos perigosos através dos quais grupos
favoráveis à abolição, que contavam com mulheres, conduziam escravos até a
liberdade.
No
Rio de Janeiro, no mesmo ano de 1859, outra escritora, Indígena do Ipiranga –
na verdade, Ana Luísa de Azevedo Castro (1823-1869) – publicava o romance Dona Narcisa Vilar. Aqui, a narradora culta
intercala o que ouvira de contadoras de histórias indígenas sobre as tradições
da Ilha de Mel, na barra de São Francisco, com seus próprios comentários,
defendendo as mulheres e os naturais da terra contra os governadores “cruéis e
devassos” enviados pela Coroa.
Estes dois romances, juntamente com A lágrima de um Caeté (1849), de Nísia Floresta, além de terem indígenas e africanos como figuras concretas não idealizadas, tratam as mulheres como criaturas espoliadas pela chamada “civilização”.
A
conquista do território da escrita pelas mulheres no Brasil foi longa e
difícil, assim como foi difícil derrubar as paredes da casa-prisão e da
prisão-textual que as confinavam por terem “cientificamente” um corpo frágil e
enfermiço, um cérebro menor que o dos homens e meio mole, o que as
incapacitaria para as lides da vida, dos ofícios e das artes. Narcisa Amália de
Campos (1852-1924), escritora festejada no início dos anos 1870, indaga no
jornal O Garatuja: “Como há a mulher de revelar-se
artista se os preconceitos sociais exigem que o seu coração cedo perca a
probidade, habituando-se ao balbucio de insignificantes frases convencionais?”.
Jornais
de propriedade das mulheres crescem em número e repercussão nos anos 1870. Em
1873, surge em Campanha da Princesa, Minas Gerais, O Sexo Feminino, de Francisca Senhorinha da Motta
Diniz. Jornal de sucesso, tinha muitas assinaturas e vendia bem. Dois anos
depois foi transferido para o Rio e durou até 1896. Em editoriais publicados de
1873 a 1890, Senhorinha pleiteava educação para as mulheres e chamava a atenção
para a violência de serem elas mantidas na ignorância pela ciência dos homens.
Em Porto Alegre, foram as irmãs Julieta de Melo Monteiro e Revocata Heloisa de
Melo que mantiveram o periódico literário de mais longa duração, o Corymbo,que circulou entre 1884 e 1944 e contou com
dezenas de colaboradoras.Josefina Alvares de Azevedo fundou A Família em 1888, em São Paulo, mais tarde
transferido para a capital. Lutava por condições iguais para as mulheres e
escreveu a peça O voto feminino,encenada no Rio em
1890. Também em São Paulo circulou A Mensageira, de
Priciliana Duarte de Almeida.
O
que essas e muitas outras publicações fizeram foi criar uma rede de informação
e comunicação entre mulheres, artistas e novas profissionais em vários pontos
do país. Algumas escritoras se tornavam também cronistas e autoras de folhetins
em jornais de ampla circulação, em especial na então capital federal. Maria
Benedita Bormann – ou Délia, como se assinava – publicou em 1883 o folhetim Aurélia, na Gazeta de Notícias,
escreveu romances e colaborou com jornais de prestígio. Julia Lopes de Almeida
começou nos jornais pela mesma época e continuou durante toda a sua prestigiosa
carreira, com 27 livros publicados. Outras viriam, como Carmem Dolores e depois
sua filha Gilka Machado, Corina Coaricy, a anarquista Maria Lacerda de Moura e
tantas mais que pavimentaram o caminho para as escritoras que seriam admiradas
em todo o Brasil no século XX.
As pioneiras do XIX merecem ser mais
conhecidas e lembradas.
Norma Abreu Telles é professora aposentada da PUC-SP
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