sábado, 23 de novembro de 2013

SOBRE A GUERRA DO PARAGUAI

(Titulo do blog)

Francisco Doratioto

Pense no Paraguai

Por Bruno Garcia
  • Tudo começou com uma visita despretensiosa ao Paraguai, em 1983. Fascinado com o país, o historiador Francisco Doratioto terminou dedicando-lhe mestrado e doutorado, tornando-se o maior especialista nas relações entre o Brasil e seu vizinho. Tudo parece ter acontecido por acaso. Do interesse pela década de 1870, logo o historiador se viu obrigado a confrontar o tema da Guerra do Paraguai, mas não esperava encontrar grande novidade. O trabalho terminou, entretanto, com uma dissertação de quase 600 páginas que revolucionou a historiografia sobre o conflito.
    Doratioto aposentou teses até então consagradas. O imperialismo inglês, tratado como responsável pela guerra, teve pouca ou nenhuma responsabilidade. O historiador demonstra ainda que, diferente do que se dizia, o Paraguai não era moderno e industrializado. E descobre um Duque de Caxias que, além da grandeza militar, tinha uma notável dimensão humana. “O que eu gosto no trabalho do historiador é essa surpresa de chegar a um documento e descobrir algo novo”.
    Conversando com a equipe da Revista de História, o professor da UnB contou detalhes sobre o plano militar de Solano López e falou sobre a demora de teses e interpretações originais chegarem às escolas e aos livros didáticos e sobre sua trajetória acadêmica, que continua rendendo trabalhos inéditos sobre a relação entre os dois países. Acaso ou destino, a visita de 1983 parece ter se estendido além do previsto, como confessa o historiador, “desde então, eu e o Paraguai estamos num casamento sólido”.
    Revista de História – Por que estudar o Paraguai?
    Francisco Doratioto – Eu fui ao Paraguai em 1983, na época da ditadura de Alfredo Stroessner, e a gente tinha a sensação de voltar no tempo. Fiquei impactado com uma história que pouco conhecia, com as pessoas sempre simpáticas, com o discurso anticomunista de defesa da ditadura e o culto à personalidade de Stroessner. Resolvi saber mais. E pensei em fazer uma pós-graduação, e o que eu conhecia da Guerra do Paraguai, naquela época, era basicamente o livro do [Julio José] Chiavenatto e me parecia que ela já estava bem explicada. Pensei em estudar as relações entre Brasil e Paraguai depois da guerra. Fui fazer uma pesquisa e me deparei, em 1984, com uma tese de doutorado recém-defendida pelo professor Moniz Bandeira. Ele tinha uma longa trajetória intelectual, tinha sido exilado político e, ao voltar, fez um doutorado na USP, cuja tese veio a ser o livro O expansionismo brasileiro. É o estudo da geopolítica portuguesa/brasileira do rio da Prata da época colonial até a Guerra do Paraguai, mas apenas sua origem, sem analisar as operações militares. Foi fascinante porque questionava a visão clássica sobre o imperialismo inglês. Era uma tese diferente da forma como eu via e ensinava a questão na época, pois eu era professor secundário em São Paulo.
    RH – Como o senhor chegou ao tema da Guerra do Paraguai?
    FD - Quando eu comecei o mestrado, pensava em analisar as relações Brasil-Paraguai no pós-guerra e a rivalidade brasileiro-argentina nas negociações de paz após 1870. Mas para explicar a rivalidade entre Brasil e Argentina eu me dei conta de que precisava entender as relações político-militares entre os dois países durante a Guerra do Paraguai. E ao pesquisar sobre as operações militares, me deparei com informações que eram inéditas e outras que, com o passar do tempo, simplesmente haviam sido esquecidas; daí a guerra se tornou meu interesse.  
    RH – Como era a produção paraguaia a respeito?
    FD – Havia poucos livros sobre história da política externa paraguaia e as relações com o Brasil, e nenhum analisando o período posterior a 1844, quando o Brasil foi o primeiro país a reconhecer formalmente a independência paraguaia. Sobre a guerra, todos faziam apologia da figura de Francisco Solano López, que era herói oficial da ditadura de Stroessner, o qual se apresentava como herdeiro daquele. A versão do Chiavenato fez muito sucesso no Paraguai, o que é aparentemente contraditório, pois no Brasil seu sucesso foi junto à esquerda. No Paraguai, foi um sucesso junto à direita, à ditadura do Stroessner que, para legitimar-se, se apresentava como um herdeiro da luta de Solano López e da grandeza do Paraguai, de uma suposta “idade do ouro” que, na realidade, nunca existiu e foi inventada pelo revisionismo nacionalista paraguaio.
    RH – O que o Paraguai queria nessa guerra?
    FD – Fala-se Paraguai por uma questão didática, mas a decisão foi de Solano López. Tratava-se de uma ditadura, mas não na forma contemporânea que conhecemos. Não havia meios de comunicação ou inserção internacional, como hoje. Uma ditadura hoje, por mais ferrenha que seja, tem que reagir ao contexto internacional e há algum processo decisório, mas na de Solano López tudo se concentrava nele. A elite paraguaia era ínfima e dependente dele, enquanto o cotidiano dessa ditadura é algo digno de Gabriel Garcia Márquez, do realismo fantástico. Tanto [o presidente argentino] Bartolomé Mitre quanto o governo imperial tinham oposições e havia no Brasil e na Argentina certo debate sobre política externa, além de jornais que refletiam diferentes posições. No Paraguai não existia jornal, além de um diário oficial, e nem oposição. A oposição estava em cemitérios ou no exílio na Argentina. A população era pequena, o país era fechado ao exterior e ela não tinha acesso a outras informações, que não as oficiais.  
    RH – Então, por que houve a guerra?
    FD – A documentação mostra, inequivocamente, que em 1864 não havia nenhum plano militar do Império do Brasil contra o Paraguai. Sequer havia um exército brasileiro moderno organizado; seus efetivos não chegavam a 20 mil homens e estavam distribuídos pela imensidão do país. Do lado da República Argentina, criada em 1862 e ainda sem exército nacional, não interessava um governo paraguaio, que tinha vínculos com a oposição argentina que se opunha à centralização do poder em Buenos Aires. Mas Mitre não podia fazer nada contra Solano López, no mínimo por não ter recursos militares para tanto. Aparentemente, Solano López não pensava assim ou, então, tomou uma opção de risco, a de iniciar uma guerra, aproveitando-se do contexto favorável para impor-se ao Brasil e à Argentina.
    RH – Havia quem apoiasse López?
    FD – No Uruguai, ele tinha uma aliança tácita com os blancos, pois lá acontecia uma guerra civil entre estes, que ocupavam legalmente o poder, e os colorados, que se sublevaram com o apoio de Mitre e as simpatias dos estancieiros do Rio Grande do Sul e, depois, do governo brasileiro. Na Argentina, a centralização do poder nas mãos da elite portenha em 1862 era recente e as oligarquias do interior tinham muito autoridade e resistiam a Buenos Aires. O principal caudilho oposicionista, Justo José de Urquiza, da província de Entre Ríos, estimulou Solano López a resistir a Buenos Aires que, por sua posição geográfica, tradicionalmente era um obstáculo ao acesso paraguaio ao Oceano Atlântico e, portanto, ao comércio com o exterior. Solano López tinha o apoio dos blancos, tinha o apoio de Urquiza, e sabia que o sul do Brasil era fraco e vulnerável militarmente. Ele fez um plano militar brilhante, arriscado mas brilhante, que consistia em uma “guerra relâmpago contra o Brasil e Buenos Aires, mas que deu errado. Afinal, planos brilhantes também dão errado.
    RH – Qual foi o plano?
    FD – Começar uma guerra contra o Brasil, em um ataque surpresa a Mato Grosso, para garantir a retaguarda paraguaia, o que ocorreu em dezembro de 1864 e, ao ter negada permissão de Mitre para passar com as tropas por território argentino para invadir o Rio Grande do Sul, Solano López invadiu a província de Corrientes em abril de 1865 e o Rio Grande do Sul em junho. Ao que tudo indica, o plano era vencer Mitre e impor uma derrota militar ao Império no Uruguai. Esse plano era exequível, tanto que os paraguaios chegaram até Uruguaiana e ocuparam Corrientes com facilidade. Só não foram além porque, no Rio Grande do Sul, o coronel Estigarribia desobedeceu a ordem de não entrar nas cidades para não perder tempo na marcha. Mas como Uruguaiana era um centro comercial, os paraguaios nela entraram para saqueá-la, dando tempo aos aliados de se organizarem, sitiarem a cidade e, após combate, obterem a rendição de Estigarribia.
    RH – E em relação à Argentina?
    FD – Solano López pensou em uma guerra relâmpago contra a Argentina e o Brasil. Após ocupar Corrientes, o comandante das forças paraguaias, general Robles, também desobedeceu as instruções de marchar para o sul e manteve-se imóvel, dando tempo de reação por parte dos aliados. Ademais, Urquiza aderiu aos aliados, inviabilizando um apoio organizado da oposição argentina a Solano López. O plano era de os invasores marcharem para o sul, rumo a Buenos Aires, na condição de libertadores das províncias do interior contra a capital, contra Mitre.
    RH – Qual foi a participação do Duque de Caxias?
    FD – Esta foi uma surpresa para mim. Fiz minha graduação durante a ditadura militar e tudo o que o regime afirmava a gente pensava o contrário. Se o regime apresentava Caxias como herói, nós éramos contra. Este foi um grande prejuízo para o mundo intelectual brasileiro: a polarização política e a falta de liberdade acadêmica levaram a interpretações que, em outras condições, não teriam prosperado, e uma delas é o equívoco na interpretação da figura de Caxias.   
    RH – Que interpretação foi essa?
    FD – Para mim, foi fantástico ler a correspondência dele, porque descobri um “outro Caxias”. Por exemplo, ele foi contra a continuação da guerra em 1868. Ele foi a favor da paz, mas o imperador mandou-o continuar. Aquele senhor de mais de 60 anos de idade, que tinha sido ministro da Guerra, era senador vitalício, enfim, que estava numa posição politica confortável, aceitou ir para a guerra em 1866, em um momento em que a possibilidade da vitória aliada estava comprometida. Falava-se em derrota, em fazer a paz; o exército estava desorganizado e desmoralizado após a derrota na batalha de Curupaití e, ainda assim, ele aceitou ir para o Paraguai.
    RH – Por que ele aceitou?
    FD – Caxias era um fiel servidor do Estado monárquico. Embora não fosse um amigo do imperador, ele era extremamente fiel à sua figura. O que me surpreendeu foi sua dimensão humana, suas angústias com a guerra e sua subordinação ao poder civil. Ele era uma figura mais complexa do que o chefe militar vitorioso, disciplinador e centralizador que o regime militar me apresentara nas décadas de 1970 e 1980. Ele foi um grande líder militar, cometeu erros, mas muito mais acertos, e conseguiu destruir o exército inimigo. Em todos os comandos que exerceu, Caxias obedeceu às ordens superiores, inclusive aquelas das quais discordava pois, além de disciplinador, era disciplinado e sempre foi fiel à Constituição e subordinado ao poder civil; foi um legalista do Império. Estas características devem ser recuperadas na construção de um Brasil democrático e moderno.
    RH – Como ficou o Paraguai quando terminou a guerra?
    FD – Foi destruído. Claro que também não era o país industrializado e moderno, mito construído por aquele revisionismo histórico mais populista. Era um país agrário, com técnicas de cultivo atrasadas e com alguns lampejos de modernidade com finalidade militar. Se você aceitar a tese de que o Paraguai era desenvolvido e industrializado, o que não é verdade, a destruição teria sido abismal. Se você considerar que se tratava de um país agrário, também foi uma destruição. Mas nos faltam dados confiáveis.
    RH – De que tipo?
    FD – Sabemos que houve uma imensa perda demográfica, mas não sabemos exatamente de quanto, e essa falta de informação também se aplica às forças aliadas. Podemos falar que o exército imperial teve uma imensa perda, mas só sabemos em termos relativos, não absolutos. Não temos certeza, até hoje, de quantos homens foram para guerra pelo lado do Brasil. Nós não sabemos qual era a população do Paraguai no início da guerra. Sabemos que não era de 1 milhão, como afirma o revisionismo, mas sabemos que a maior parte da população masculina morreu, podendo-se afirmar que houve uma hecatombe demográfica, pois no país a mortandade se concentrou entre aqueles que estavam em idade reprodutiva. A perda masculina foi tão grande que, inclusive, se cita a poligamia como consequência da guerra, mas este não é um bom argumento, pois ela existia  no Paraguai desde os tempos coloniais. A historiadora alemã Bárbara Potthast-Jutkeit afirma que o número de mulheres que um homem tinha era um indicador de prestígio político no Paraguai colonial.  
    RH – Como a economia paraguaia foi afetada?
    FD – A agricultura perdeu terreno para uma floresta que reocupou os campos, e o interior ficou despovoado. A partir da década de 1870, houve o início da valorização de matérias-primas, devido à industrialização acelerada da Europa. Argentina, Uruguai e Brasil se beneficiaram muito com isso, mas não o Paraguai. O país não tinha um produto competitivo para exportar e nem acesso a essas correntes internacionais de comércio devido à sua posição geográfica de país mediterrâneo. Desse modo, o Paraguai se tornou a periferia da periferia, dependente da Argentina.
    RH – Como ficou o equilíbrio de poderes no Cone Sul?
    FD – A guerra acentuou a rivalidade entre Brasil e Argentina. Em 1868, o partido conservador retornou ao poder no Brasil. Era o mesmo partido que, na década de 1840, havia elaborado uma política externa de contenção de Buenos Aires e que via a Argentina como um inimigo que um dia atacaria o Império. Do lado argentino, o presidente eleito em 1868, Domingo Faustino Sarmiento, não confiava no Império. Quando a guerra acabou, houve uma tensão enorme. A diplomacia brasileira criou um governo provisório em Assunção, composto por paraguaios sem ligações com Buenos Aires e, depois, influenciou na montagem de uma estrutura política, de modo a garantir a continuidade do Estado paraguaio independente, pois temia-se que pudesse ser incorporado à Argentina. Até 1876 houve uma divisão do Exército Imperial; 3 mil homens ficaram aquartelados em Assunção, e o Império usou sua superioridade militar para impedir que se instalassem no Paraguai governos favoráveis à Argentina. A tensão foi muito grande, a ponto de o Brasil assinar com o Paraguai um tratado de paz unilateral em 1872, o que era proibido pelo acordo que criou a Tríplice Aliança [Argentina, Brasil e Uruguai]. Por ele, todo o território a oeste do rio Paraguai seria anexado à Argentina, o que foi rejeitado pelos conservadores brasileiros, sob o argumento de que este país teria, então, fronteira com Mato Grosso, de difícil defesa. Só não houve guerra entre o Império e a Argentina porque ela não tinha Marinha de Guerra e sua economia seria duramente atingida em caso de bloqueio naval brasileiro ao porto de Buenos Aires. Em 1876, depois de arbitragem internacional do presidente dos EUA, a Argentina ficou apenas com parte desse território, de acordo com o desejado pelos conservadores brasileiros, embora eles não tivessem tido qualquer influência nesse laudo arbitral.
    RH – Existem documentos que permanecem secretos?
    FD – Não pesquisei no arquivo do Exército, de modo que nada posso afirmar sobre ele, mas não me surpreenderia que nele ou em outros arquivos houvesse algo inédito, em decorrência da classificação incompleta de documentos. No entanto, quando se fala em arquivo secreto da Guerra do Paraguai, cita-se o diplomático, do Itamaraty, no Rio de Janeiro. Conheço bem esse arquivo e tenho certeza de que nele não há documentação sobre a Guerra do Paraguai, sobre as operações militares que tenham se mantido secretas. Existiu, de fato, essa documentação, mas ela foi liberada na década de 1990; de verdadeiramente inédito, havia pouco menos de duas dezenas de cartas do Solano López sobre condições de saúde no exército. O resto era material já de conhecimento público, mas que ficou secreto por muito tempo não pelo conteúdo, mas pela lógica burocrática da instituição, e em função da falta profissionais que pusessem a documentação em ordem para a consulta.
    RH – Como o senhor vê o ensino da guerra na escola e o lapso entre as pesquisas acadêmicas e o ensino escolar?
    FD – Leva alguns anos até os resultados de uma pesquisa original chegarem aos livros didáticos dos ensinos Fundamental e Médio. Muitas vezes editoras e autores de livros didáticos não querem fazer essas inclusões, por comodidade ou custo financeiro. Ademais, o professor do Fundamental e do Médio, que é um herói, pois ganha pouco e trabalha muito em condições precárias, não tem tempo e nem dinheiro para se atualizar.  Além disso, dizer que o imperialismo não foi responsável pelo conflito ou que foi Solano López que iniciou o conflito, retirando-lhe o papel de vítima, faz com que se tenha  de repensar outras explicações para o processo histórico de nosso país e da América Latina. Se você passou 20 anos acreditando em uma coisa, é difícil mudar de opinião. É muito mais fácil e confortável culpar o imperialismo por todos os problemas do nosso continente, embora, evidentemente, tenha existido a ação imperialista, como o demonstra a criação do Canal do Panamá.
    RH – Qual é o tema da sua nova pesquisa?
    FD – Publiquei, no ano passado, o livro Relações Brasil-Paraguai: afastamento, tensões e reaproximação (1889-1954); são 550 páginas recheadas de informações inéditas obtidas em arquivos. Para tanto, eu tive uma bolsa de produtividade cientifica do CNPq e, agora, com esse mesmo apoio, estou trabalhando as relações entre o Brasil e a ditadura de Stroessner. É uma pesquisa que envolve questões como a cooperação militar e cultural, a integração logística, a construção de Itaipu, a Operação Condor, a relação entre ditaduras e o impacto da redemocratização brasileira na ditadura de Stroessner. Para tanto, já pesquisei no arquivo diplomático uruguaio e agora estou pesquisando no Itamaraty; também espero ter acesso a arquivos na Argentina e no Paraguai. Há bibliografia sobre alguns desses aspectos, mas baseada em documentação limitada, pois a Lei de Acesso à Informação é deste ano. Minha expectativa é a de escrever, daqui a algum tempo, um livro sobre essas relações baseado em documentação inédita e nos trabalhos já publicados por colegas.

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