Por Laélio Ferreira de Melo
“Quanto à parte do livro (“Sertão de Espinho e de Flor”) que trata do sertão
como objeto de interesse propriamente etnográfico, nas incontáveis notas que
se seguem aos poemas, Othoniel Menezes revela uma comovente postura
intelectual.
À sua experiência empírica, recolhida da memória infantil, acrescenta à de
autoridade em assuntos sertanejos da estatura de Gustavo Barroso, José
Américo de Almeida, Câmara Cascudo, Leonardo Mota, tantos outros.
E o que é mais: às fontes vivas, interlocutores da região, verdadeiros
narradores das coisas do sertão, como o notável fazendeiro de Acari,
Cipriano Bezerra Galvão, zeloso guardador da memória, antepassado de
estudiosos competentes como os citados Oswaldo Lamartine e Paulo Balá. O
resultado é um conjunto inestimável de informações sobre o Sertão. Sertão de
cuja medida se tem idéia pela emoção do seu autor.” Tarcísio Gurgel (Os
grifos não são do original)
SERTÃO DE ESPINHO E DE FLOR
Canto 7
No piso do comboio
[...] As lendas arrepiadoras do caipora travesso e maldoso, atravessando
célere, montado em caititu arisco, as chapadas, desertas,
nas noites misteriosas de luares claros; os sacis diabólicos,
de barrete vermelho à cabeça, assaltando o viandante retardatário,nas noites
aziagas das sextas-feiras, de parceria com
lobisomens e burras-sem-cabeça notívagos: todos os
malassombramentos, todas as tentações do maldito [...]
Os Sertões, p.139
***
Sertão dos meus dez janeiros!
Cavalos mansos, baixeiros.1
Que delícia, era viajar,
armando a rede nos ganchos
do alpendre aberto dos ranchos,2
– seis dias, para chegar…
Fazer uma madrugada! 3
A tropa, inda estremunhada,
trota, no barro da chã…
Vai-se andando… vai-se andando…
Rósea, a barra vem quebrando…4
Chora, no vale, a acauã.
(Rompe-nuvem, baio lindo!
Viaja-se, mesmo dormindo,
no teu dorso embalador!
Teu nome – de avanço e luta –
é uma hipérbole matuta,
chalaça de cantador!
Assim, tardo, é que te quero,
Rompe-nuvem! Que inda espero
volver, tão dócil te sei,
– e, só por matar saudades! –
às serras, às soledades,
do sertão que sempre amei!).
***
A ária, dulcíssima, esparze-a
nas carnaúbas da várzea,
graúna, avatar de Orfeu! 5
Tua asa é a tinta do poema
dos cabelos de Iracema
– que, de saudades, morreu…
Latada! Mata esta sede
de madornar numa rede
bem alvinha, de algodão!
Pelego, 6 na areia… areia
que o rio enxaguou na cheia
– mais fofa do que um colchão…
Moça da saia encarnada,
que eu vi, na volta da estrada,
arisca, a olhar para mim
– talvez nunca mais te veja!
– ou, um dia te leve à igreja,
a ouvir-te o risonho sim…
Não, nunca mais! Bem m’o disse,
na sua sábia crendice,
meu arrieiro, o Tundéu:
– Quem carcula, se atrapaia…
de casamento e mortaia,
o corte é feito no céu!
Eu, condo fui do seu tope,
quebrava no curilope 7
no lenço de gurgurão. 8
Tive tomém uma cera 9
c’uma cabrocha linheira,10
lustrosa que só o cão!
Hoje, num dou mais nutiça:
fizero machaviliça,
briguemo. Foi fuzuê!
Uma sujeita zanôia
dixe que eu sou vira-fôia,11
e ela num quis mais me vê…
– Diz us fio da Caindinha
que ela, agora, é bonequinha
do cabaré do Iguatú.
Nun vê guaiaba passada?12
P’ru fora, cheira e é rosada
– dento, só tem tapuru..
.
Pricurei meu padim Ciço.
Ele tornou-me: Feitiço
de mulata, é bem capaz
de atentá o prope Cristo;
vá rezar, se esqueça disto,
– muié, o vento é quem traz…
Andei mascando a liamba,13
dei birrada,14 acabei samba,
bêbo foi meu naturá.
Sarou. Mas, p’ru dento, é vivo,
o diale do remativo
desse estrepe de juá…
Iguá o freguês sem rumo,
que entra no mato sem fumo,
pra caçá, e fica é só.
Toma ferrão de tubiba 15
– e a caipora, pru riba,
inda lhe infinca o cipó…
O freguês só tem sossego
si num arrumá chamego,16
mucuím, tixe 17 ou muié.
Rabo de saia e mundiça,18
faz inté fazê toliça
cavalo de carroçé! 19
***
Sobe a névoa matutina.
Terno, o galo-de-campina
fere a canção do arrebol.
Desperta a fazenda, em baixo.
O dendezeiro do riacho
apara a esgrima do sol…
Papa-arroz…20 De nome, é feio;
qual, porém, mais belo, veio
da Amazônia, ou do Japão?
Tão retinto, que azuleja:
da gorja 21 ao peito, flameja
um crachá cor de malvão!
A Cidade ainda distante…
Eu, o lírico estudante,
venho em férias. Olho ao sul:
que alvoroço, que alegria!
– a igreja da freguesia
recorta a torre no azul…
Aí vai, cruzando o caminho,
um serrano no burrinho
lerdo, mancando de um pé.
Entra no mato. Mas, onde,
em que cafundó se esconde
seu ninho de caboré? 22
Centelha, vivente, réstia
de sol, gorjeando! Tiveste-a,
a voz, no Céu, a afinar?
Pintassilgo! és o violino
de um gênio, cujo destino
é o de morrer… de cantar!
Casaca-de-couro. 23 O ninho,
enorme, é todo de espinho.
Dá-lhe o nome, a cor que tem.
Canto, em dueto: alarido!
– grita, frucudo, 24 o marido!
– A mulher grita, também!
Sem uma folha, uma, única,
no adamascado da túnica,
o flamboyant faz lembrar
os Doze Pares de França: 25
– é Roldão, 26 ferido à lança,
de pé, com o peito a sangrar…
Ganhou Burbank 27 ouro e glória,
obrigando a palmatória
a sem espinhos nascer.
A nossa, não passa disto:
– nem a coroa de Cristo
tanto espinho era de ter!
Lavandeira,28 lavandisca,
bem casadinha! Petisca,
desde o pátio, ao corredor.
A lenda a protege e nimba:29
– na água e no anil da cacimba,
lava pra Nosso Senhor.
Mulungu, pau de tabuado,
num açude, és um achado
no cavalete 30 que dás!
Florido, a contar de agosto,
na tua fronde, o sol posto
o fogo em retalhos faz…
Notas ao Canto 7
Baixeiro: Hábil no baixo, modalidade miúda e macia, da marcha
do cavalo ou do burro, muito cômoda e agradável para quem viaja.
Em escala de velocidade ascendente, assim se classifica, no sertão,
a marcha da montaria:
– passo
– chouto
– baixo (ou carrego)
– galope-em-cima-da-mão
– galope alto (ou largo)
– contramarcha
– meio
– esquipe
– carreira
Rancho: Ou arrancho. Pouso, lugar onde se descansava, durante
o pino do sol (pingo-do-sol), ou onde se pernoitava, nas extenuantes,
mas tão divertidas, tão pitorescas jornadas através do sertão,
prolongadas por três, quatro ou cinco dias, na marcha ordinária
dos comboios, marcha que consistia em dois períodos: pela
madrugada, até as 10, às 11 horas, e das 14, ou 15, às 18, em
etapas de 5, 6 léguas. Havendo luar, a segunda etapa se prolongava
às 19, às 20 horas. Os ranchos eram o rústico alpendre, colmado31
de folhas de coqueiros ou ramas de oiticica, da habitação à margem
da estrada, a cuja porta a integral, encantadora hospitalidade
sertaneja proverbialmente desobrigava do clássico: “ó de casa!”.
Comumente, também, se não era inverno, servia de pousada, para
o pernoite, alguma copada de oiticica, uma quixabeira alvinha de
flor, um espetacular juazeiro em cuja copa rotunda a gente pressentia
o frêmito dos canários estremunhados, sobre o clarão da
água para o café – o café mais gostoso, mais tonificante, mais perfumado
desse mundo, e cujo pó grosso e rescendente se fazia assentar
da panela.
Durava cinco a seis dias, o trajeto entre Jardim do Seridó e
Macaíba, ponto terminal da jornada, e de onde, através do rio
Jundiaí, em lancha ou bote, se atingia Natal.
Anexins e Ditados: “Agrado é que demora viagem”; “Hóspede
em casa é dia-santo”.
Fazer u’a madrugada: Sair do rancho, em prosseguimento da caminhada, às 3,
às 4 horas e mais cedo. O mesmo que fazer u’a mineira, no Sul.
A barra vem quebrando: Vir amanhecendo. Alusão às nuvens que, ordinariamente
se acastelam ao nascente, na antemanhã. Ao quebrar da barra, cedinho, de
manhãzinha.
Pelego: Idílio. Tem quase sempre sentido pejorativo e, nesta
acepção, não figura no Pequeno Dicionário aqui já muitas vezes citado.
Vejam-se adiante cera e chamego.
Arrieiro: Pajem, pessoa que se encarregava de preparar as refeições, de
cuidar dos animais, durante a jornada. Almocreve, comboieiro, tangerino,
cargueiro.
Condo: Quando.
Tope (ó): Talhe, tamanho, estatura.
Quebrar: Usar, por luxo. Fulano só quebra no brim branco; Fulano só quebra
na seda.
Curilópe: “Chlorilopolis do Japão”, marca de perfume
popularíssimo no Seridó, há trinta anos. Era vendido em vidrinhos de 5 a 8
gramas, com etiqueta dourada – uma gueixa sobre a sombrinha de bambu e seda
– a 50 centavos.
Cera: Namoro, idílio platônico. Veja-se adiante chamego.
Linheira: Esbelta, delgada, lazarina (veja-se, no Canto 11, anotação à
ultima palavra).
Lustrosa: Que não é bonita, nem feia. Simpática, bonitona. G.Barroso e M.
Bandeira não colhem o termo com este significado, clássico em todo o
Nordeste (Referimo-nos sempre, nestas Notas, à segunda edição do
excelentePequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa).
Cão: O diabo. Veja-se Nota à palavra droga, no Canto 4.
Machaviliça: Maquiavelice, intriga.
Fuzuê: Barulho, disputa, confusão, arrelia. Vide verbete angu, em Notas ao
Canto 11.
Vira-folha: Infiel, volúvel.
Passada: Madura em excesso, meio podre (relativo a fruta).
Andei mascando a liamba: Alusão ao ciclo da cachimbagem
dessa erva, que é o cânhamo, cannabis sativa, diamba, riamba, pango, maconha
(a denominação mais popular, esta última). Rica, interessantíssima, a
sinonímia inclui, ainda, aliamba, dirijo, birra, fumo-de-Angola, atchí
(corrutela de haxixe).32 É uma variedade de cânhamo europeu, originário da
Índia, (cannabis indica). Esta planta, cujo uso e contrabando tanto
preocuparam a policia carioca, e foi assunto rendoso a muitos jornais
sensacionalistas
da capital da República, é conhecida, há muitos anos, no sertão, embora o
fato não tivesse sido registrado, até agora, na crônica policial ou
judiciária do Estado. No Seridó propriamente dito, e talvez em todo o sertão
norte rio-grandense, não se sabe do uso da diamba.33
Entretanto, o Dr. Manoel P. Diniz,34 bacharel em direito, advogado, poeta
incluído na coletânea de Laudelino Freire,35 Sonetos Brasileiros, e que, em
1941, encontramos nas funções de secretário da Prefeitura da terra de Padre
Cícero,36 escreve o seguinte, no seu curiosíssimo livro,Mistérios do
Joazeiro, que Câmara Cascudo considera (emVaqueiros e Cantadores) um dos
mais importantes,
minuciosos documentários do ciclo folclórico dominado pela singular
personalidade daquele malogrado Barjesus37 caririense:
Não inventamos bichos-de-sete-cabeças, quando nos referimos ao uso da liamba
[...] Infelizmente, os nossos
governos do Norte e Nordeste (onde há os mais perigosos
centros de cultura e uso da liamba) ainda não criaram
serviço especial de policia preventiva, contra entorpecente
tão perigoso, que concorre, não só, para
achinesar um povo, como para africanizar, que é muito
pior. No Rio de Janeiro existe a legendária favela e, no
sertão nordestino, que está mais próximo do Maranhão?
(Simões da Fonseca, no Dicionário Enciclopédico, afirma
que a liamba é nativa daquele Estado).
M. Diniz continua,
Há muitas favelas, ou elementos de favelas, atuando
particularmente nos grandes centros onde predomina
a maioria da ignorância, como desgraçadamente aconteceu
em Joazeiro, que só de há poucos anos a esta
parte (1935) começou a sair do caos, como se fosse
um novo orbe de que o padre Cícero seria o Padre-
Eterno, conforme a crença de muitos romeiros que a
estas horas, podem estar na Bem-Aventurança celeste,
formando a imensa legião dos pobres de espírito que constituíram o maior
troféu com que o Patriarca
se apresentou diante de Deus, ao ser julgado [...] Mas,
dir-nos-iam, que tem isto com aquilo? Muitíssimo; pois
muitas pessoas, mesmo das menos simplícias, pensavam
que certos tipos, particularmente pretos ou bem
trigueiros, eram realmente doidos ou malucos, conduzidos,
furiosos, à presença do Patriarca, para curálos.
Nem por sonho. Tais indivíduos, que vimos mais
de uma vez à porta do Patriarca, contidos por seus
condutores, cavilosos ou não, no dia seguinte estavam
bons, e proclamando que tinham sido curados por milagres
da bênção do Padim Ciço. Quase todos esses tipos
eram liambados, e nada mais [...] E a liamba, para a
formação desses pseudo-loucos? Existia e existe em
Joazeiro, embora usada ocultamente, não por medo
da policia, mas porque não queriam que o Padim soubesse;
não porque o amassem mas porque temiam que
ele mandasse castigar os empreiteiros da cultura da
liamba e do seu uso maléfico. Damos testemunho de
tal erva aqui. Vimos há anos, no quintal de uma casa, à
rua da Conceição, desta cidade, alguns pés de um arbusto
parecido com o mastruço e de sementes semelhantes
às do coentro. Eram pés de liamba.(Mistérios
do Joazeiro, M. Diniz, tipografia do O Joazeiro, Ceará, 1935).
Em 1947, a revista O Cruzeiro, do Rio, publicou sensacional
reportagem em torno do uso da maconha (liamba). Américo
Valério38 e Gonçalves Fernandes,39 de Pernambuco, têm publicado estudos
especiais a respeito.
Birrada: Pancada (de birro, bilro, cacete curto), caçambada,
tamboretada, sabacuzada, lapada, gebada (esta última tem também sentido
obsceno).
Remativo: Reumatismo. Qualquer dor surda e intermitente, cuja causa não
conheçam, é assim denominada, entre os matutos.
E a caipora, p’ru riba: O sertanejo acredita na caipora,40 duende, espírito
protetor dos animais silvestres, espécie de saci-pererê, um negrinho muito
vivaz, de barrete vermelho, sempre cavalgando um porco ou um veado, e cuja
presença se manifesta num assobio agudíssimo e prolongado. Exige, dos
caçadores, o tributo de um pedaço de fumo, sem o que não poderiam eles
penetrar impunemente no mato, ou realizar caçada compensadora. O castigo
mais temido é o de uma sova de cipó, quando a caipora topa
com um devedor relapso, reincidente. Aos caçadores mais felizes, atribui-se
estarem em dia com o imposto.
Chamego: Namoro, em sentido pejorativo. Agarrado, pegamasso, pelego,
arranhado, xodó, chichinado (subst). Animação, cera, influência e ponta são
empregados na acepção platônica. Por ocasião de sua última viagem ao Seridó
(1941), já ouviu o Autor dessas Notas, em rodas de cafés e bilhares,
chafandrilha, xumbregação, e fiapo (tirar fiapo com fulano, com fulana),
termos da gíria plebéia
natalense. Há, ainda, aqui (Santo Deus!), mamparra, fraguido, ronçoio (do
verbo roçar?), etc.
Macuim: Ou micuim, espécie de carrapato microscópico, habitante das folhas
verdes, e cuja picada produz inaturável comichão.
Tixe: Piolho das aves domésticas, goniodes stylifer. Cafife, mundiça. No
feminino, cafifa, significa importunação, estribilho irritante, mofina,
caninga, infuca, amolação (Veja-se caninga, nas Notas do Canto 6).
Mundiça: Imundície. Denominação dada, entre o povo, a qualquer praga de
parasitas, especialmente de galináceos e colombinos (mundiça). Gente ruim,
canalha, cambada. Em sentido afetivo, trata também assim o matuto a própria
família:
– Como lhe vai, a obrigação?
– A mundiça tá viva, graças a Deus…
Jaques Raimundo41 (O Elemento afro-negro na Língua Portuguesa, p. 124)
ensina que mundiça é sinônimo de grande quantidade (Mato-Grosso), e cita uma
frase de Taunay,42 em Inocência, p. 101:
“Trouxeram de lá uma imundície de gente amarrada”.
Pode ser, esta, a significação em que o matuto emprega a palavra,
referindo-se à prole, ordinariamente numerosa entre os casais sertanejos.
Cavalo de Carrossel: Sujeito que não sai dos limites, em questões de despesa
econômico, a mais não poder, somítico, avarento; pirão-na-unha,
amarrado-de-corda, pão-duro, dura-fogo.
Papa-arroz: Pássaro da família das Fringiloidas, Dolychonix
oryzivorus. Xexéu de coqueiro, de plumagem negro-azeviche, ou azul-ferrete,
encontradiço nos coqueirais e carnaubais. Anda sempre em bandos, nos quais
avultam as fêmeas. O macho, ave belíssima, quando adulto, tem a plumagem
ainda mais escura, e uma faixa cor de brasa viva no papo, começando da parte
inferior do bico.
Cafundó: Lugar deserto e longínquo, de difícil acesso; furna de serra.
Caboré: Glaucidium brazilianum, Gm., pequenina coruja pintalgada, não apenas
noturna, e que só nos ermos serranos comumente constrói o ninho, nos buracos
da velhas árvores e barrancas. Quando canta, nas proximidades do inverno, é
mau sinal. Cuidam os matutos ouvir, no melancólica, regougo,43 em tom grave
do caboré, repetida sinistramente, a onomatopéia ameaçadora: sol… sol…
sol…
Casaca-de-couro: Ave do sertão e da caatinga,44 da família das Mimidas, e
também chamada maria-cocoruta, denominação que lhe vem da poupa de penas. Na
várzea do Assu, é também conhecida por catapirra. É toda de cor de couro,
curtido recentemente.
Anda aos casais, tanto no mato como nas árvores dos quintais urbanos, onde
todos os anos faz o ninho – um ninho enorme, tão entretecido toscamente de
gravetos espinhosos, mas forrados, no interior, com pluma de algodão e
capins delicados. São tão grandes, estes rústicos gineceus, que, não poucas
vezes, arreia com o peso deles o galho da jurema, de favela ou de turco,45
que os suportava.
Há árvores com cinco, seis, e mais, ninhos de casaca-decouro, sempre
construídos pelo mesmo casal – anos e anos. A casaca tem dois terríveis
inimigos, o punaré 46 e o concliz. O primeiro, um ardiloso e voraz rato
silvestre, para lhe devorar os filhotes; o concliz, (Vide esta palavra no
Canto 6), para expulsá-la, aproveitando-se velhacamente da “casa” pronta,
para chocar a própria ninhada. A casaca só canta em dueto, um canto alto,
agudíssimo, estridente, alegre caprichoso, sem melodia consagrada pelos
Hercules-Florence 47 e pelos Gonzaga-Duque 48 do pentagrama
avícola do deserto, mas cheio de graça agreste e de saudosa ressonância,
ouvido a grande longitude na solidão comburida dos meios-dias sertanejos.
Frente a frente, junto ao ninho, e pulando vivo e miúdo, os topetes riçados
49 as asas distendidas e peneirando, “marido” e “mulher” se desafiam,
ardentemente, nesta estrídula melopéia que, a breves intervalos, martelam o
dia inteiro.
Lavandeira: Lavandisca, Fluvícola climazura. Esclarece Câmara Cascudo, em
Aves no Folclore Brasileiro:
Vão ter uma surpresa, quando lhes disser que a
lavandeira está no Índex,50 também. Apesar de seus
hábitos simples, de sua familiaridade, de suas visitas
às calçadas e cozinhas, de seus saltos e reviravoltas, a
lavandeira não é boa peça. Se lavou a roupa de Nosso
Senhor, é que foi obrigada, ou quis agradar uma vez na sua vida. Dá azar, e
dos grandes. Para anular seu
inconveniente prestígio maléfico, quando lhe derem
de comer, especialmente carne verde, não lhe dêem
de beber. E vice-versa.
Cavalete: Toro de madeira leve – especialmente, o mulungu –, muito usado,
nos açudes e nos rios, como precioso auxiliar dos exercícios de natação. É o
salva-vidas clássico no sertão.
***
NOTAS DE LAÉLIO FERREIRA
1 Ver nota de OM.
2 Idem.
3 Idem.
4 Idem.
5 Figura mitológica, filho da musa Calíope, músico e poeta, marido
apaixonado
de Eurídice. Quando tocava sua lira, os pássaros paravam de voar
para escutar e os animais selvagens perdiam o medo. Ele ganhou a lira de
Apolo; alguns dizem que Apolo era seu pai.
6 Ver nota de OM.
7 Ver notas de OM para “condo”, “tope” e “curilope”.
8 Gorgorão, tecido encorpado de seda, com relevos formando finos cordões,
originalmente fabricado na Índia.
9 Ver nota de OM.
10 Ver nota de OM.
11 Idem, idem.
12 Ver nota de OM.
13 Ver nota 373.
14 Ver nota de OM.
15 Do tupi tuuíua – Pequena abelha silvestre meliponídea (Scaptotrigona
tubiba-Smith).
16 Ver nota de OM.
17 Ver nota de OM.
18 Ver nota de OM.
19 Idem, idem.
20 Idem.
21 Garganta, goela, pescoço.
22 Ver nota de OM.
23 Ver nota de OM.
24 O mesmo que frocado: com a coluna reta; aprumado, empertigado.
25 Refere-se a “Carlos Magno e os Doze Pares de França”, canção de gesta,
narrativa com muitas batalhas que se espalhou por todo o sertão e inspirou
violeiros e cantadores. A tradição é que esses pares, cavaleiros que
formavam uma espécie de tropa de elite do imperador Carlos Magno,
eram doze e assim se fixa o seu número no primeiro poema que celebrou
a batalha de Roncesvalles – La chanson de Roland.
26 Forma abrasileirada de Roland, um dos Doze Pares de França, personagem
principal da canção carolíngia – acima referida -, do ano 1070, sobre
a emboscada sofrida pelo rei franco Carlos Magno, no desfiladeiro de
Roncesvales, em 778, pelos bascos.
27 Luther Burbank (1849-1926). Pioneiro dos alimentos ditos hoje
transgênicos, um dos maiores gênios de melhoria de plantas. Vivia na
Califórnia no início do século XX e criou centenas de variedades. Livre
pensador, darwinista.
28 Ver nota de OM.
29 Do verbo nimbar: cobrir uma imagem, pessoa ou figura com um halo ou
auréola.
30 Ver nota de OM.
31 Coberto de colmo. Pequena casa coberta de colmo. Palhoça, cabana,
choupana.
32 Palavra africana (makanha, pl. com pref. ma- de dikanha, tabaco) do
quimbundo, língua da família banta, de Angola. Consumida como o tabaco,
seu princípio ativo é o tetraidrocanabinol. Nas línguas espanhola e inglesa
é
chamada de marijuana (Maria e Juana) e em árabe – e depois na França –
conhecida como haxixe, nominando a planta. No Oriente, conhecida como
charas. A.M.P: maconha embebida em formaldeído, seca e posteriormente
fumada. Skunk: é a maconha de laboratório, cultivada em condições especiais,
com finalidade de obter maconha com concentrações 7 a 10 vezes maiores
de Delta 9 THC. Também chamada de Super Maconha. Outras denominações:
abango, abangue, bagulho, bango, bangue, baseado, baura, bengue,
bolo, bomba, bongo, bosta-de-burro, cabeça-de-nego, cangonha, chá, danada,
dirígio, dorme-dorme, elba-ramalho, erva, erva-do-diabo, erva-docão,
erva-do-capeta, erva-maldita, fininho, fuminho, fumo, fumo-do-mato,
fumo-da-Índia, fumo-selvagem, fumo-de-caboclo, jererê, marijuana, manga-
rosa, maria-joana, massa, mato, muamba, mutuca, massa, nadiamba, pacau,
palha, pango, preto, rabo-de-raposa, ralfe, rafi, riamba, sariema, seruma,
soruma, suruma, tabanagira, umbaru. Os jornais, no Rio Grande do Norte, vez
por outra, noticiam a descoberta de plantações de maconha em terras
potiguares, no Seridó e no Alto-Oeste. Essas lavouras teriam surgido, dizem
os entendidos, por conta do assédio da Polícia Federal aos latifúndios do
chamado Polígono – ou Triângulo – da Maconha, nos cafundós de
Pernambuco, ribeiras do São Francisco. A atividade, hoje, o plantio, o
canhameiral, pode ser até novidade para os nossos sertanejos. O uso da
droga – sempre pernicioso – é secular. A “erva maldita”, veladamente, por
baixo do pano, sempre esteve presente nos sertões nordestinos. Graciliano
Ramos, escrevendo o Linhas Tortas, em Palmeira dos Índios, no sertão das
Alagoas, afirmava que “nas cidades os viciados elegantes absorvem o ópio, a
cocaína, a morfina; por aqui há pessoas que ainda usam a liamba”.
Nunca misteriosa, sempre perigosa e deletéria, a maconha, noutra modalidade
de uso, recebeu na Arábia o nome de haxixe. É a resina, a cera
extraída das flores e dos frutos (belotas). Homero, falando da embriaguez
a que se entregavam os citas, faz alusão à inalação dos vapores do cânhamo.
Os orientais (e muito buona gente em Natal, diga-se de passagem) servemse
do haxixe (de alto preço) pitando o narguilé – cachimbo composto de
um fornilho, um tubo e um vaso cheio de água perfumada, por onde
atravessa a fumaça antes de chegar à boca do usuário.
Mil anos a.C., os hindus já consideravam o cânhamo como planta sagrada,
havendo, no Rig-Veda, alusão a respeito. Charas, na Índia, é, também,
sinônimo de costume. Notável, curioso, é que, no Brasil – e aqui mesmo,
na Cidade dos Três Reis, nas comunidades periféricas, nas reuniões dos
“intelectuais” modernosos e emproados, dos artistas “performáticos”, dos
poetas de vários calibres e segmentos, nos condomínios de luxo ou no
Beco da Lama –, qualquer dependente da maconha, com ou sem leitura,
ocupantes ou não de polpudos cargos comissionados no serviço público,
sabe que um chara equivale a um longo, grosso, substancial “canela-deanjo”,
um “cheio”! E a apologia da liamba corre frouxa, na Potiguarânia –
mais das vezes, até, amparada, a título de produção cultural, pelo dinheiro
de todos nós. Novidade não é que uma grande parte da hodierna
intelligentzia do Rio Grande Sem Sorte, além da liamba, faz “clínica geral”,
“inspirando” as raras cacholas, também, nos eflúvios dos chás de cogumelo,
de zabumba (Figueira do Inferno, Maminho Bravo, Trombeta, Dabumba,
Aubatinga-dos-Indios, Erva-dos-Mágicos, Erva dos Feiticeiros, Erva do
Diabo, Erva dos Demoníacos) e da “hostil e mimosa” Jurema-Preta.
33 As pesquisas e as notas de OM são do período de 1939 a 1952. Hoje,
infelizmente, a maconha corre solta Brasil afora, no Seridó e alhures, “nas
Oropa, França e Bahia”
34 Manoel Pereira Diniz. Paraibano de Alagoa Nova, nascido em 1887,
formado em Direito (1911), pela Faculdade do Recife. Migrou para a terra
do Padre Cícero, onde publicou livros (Mistérios do Juazeiro, 1935), fundou
o Colégio São Miguel, e viveu até sua morte, em setembro de 1949. Com o
pseudônimo de “Dr. Israel”, publicou, ainda, Lunário Moderno ou Manual do
Nordestino. A proposta do autor era a de “adaptar o Lunário Perpétuo para o
Hemisfério Sul”. Como advogado, atuou no inventário do “Padim Ciço”.
35 Laudelino de Oliveira Freire (Lagarto/SE, 26.01.1873-Rio de Janeiro/
RJ, 18.06.1937). Advogado, jornalista, professor, político, crítico
e filólogo. Foi membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).
36 Cícero Romão Batista (Crato/CE, 24.03.1844-Juazeiro do Norte/
CE, 20.07.1934). Padre Cícero do Juazeiro, “Padim Ciço”. Político importante
“coronel” de muito prestígio, latifundiário, fez revolução contra
o governo da República. Fundador da chamada “Meca nordestina”, ou
seja, Juazeiro do Norte.
37 Mago, feiticeiro judeu, falso profeta, também chamado de Élimas. Vivia
em Chipre (Pafos), província senatorial de Roma, governada, à época,
pelo procônsul Sérgio Paulo – a quem servia, como curandeiro. Segundo
os Atos dos Apóstolos, quinto livro do Novo Testamento, Barjesus foi
desmascarado por Saulo (ou Paulo) de Tarso, que, “cheio do Espírito Santo”,
o amaldiçoou, cegando-o.
38 Américo Valério. Médico carioca, nascido em 1898, ensaísta, professor
catedrático. Escreveu sobre Euclides da Cunha, Machado de Assis, José
de Alencar e Graça Aranha.
39 Gonçalves Fernandes. Psiquiatra, antropólogo, folclorista e escritor
especializado em superstições e religiosidade popular. Nasceu em Recife/
PE, no ano de 1909. Formado em Medicina, em 1937, pela Universidade
de Pernambuco. Foi professor na Faculdade de Ciências Médicas do
Recife, na Faculdade de Direito do Recife e na Universidade do Brasil e
diretor da Fundação Joaquim Nabuco. Faleceu na capital pernambucana,
em 1986.
40 Também chamado de Pai ou Mãe-do-Mato, Curupira e Caapora. Para os
índios guaranis ele é o Demônio da Floresta. Às vezes é visto montando um
porco do mato. Uma carta do padre Anchieta datada de 1560, dizia:
“Aqui há certos demônios, a que os índios chamam Curupira, que os
atacam muitas vezes no mato, dando-lhes açoites e ferindo-os bastante”.
41 Jacques (ou Jaques) Raimundo. Professor, jornalista, escritor e
filólogo brasileiro, nascido no Rio de Janeiro. Especialista no estudo das
línguas africanas e sua influência no idioma português. Um dos fundadores
da Academia Brasileira de Filologia. Fernando Jorge, em A Academia do
Fardão e da Confusão registra que o erudito professor desancou o filólogo
Laudelino Freire, criticando ferozmente o Formulário ortographico do
sergipano, “no qual encontrou centenas de erros. Estes lhe deram a impressão
de ser uma “floresta emaranhada de cipós”.
42 Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle Taunay, visconde de
Taunay (Rio de Janeiro/RJ, 22.02.1843-Rio de Janeiro/RJ, 25.01.1899).
Escritor brasileiro do fim do século XIX, professor, militar, político,
historiador
e sociólogo.
43 Som cavo, gutural; ronco, roncadura; ato ou efeito de regougar.
44 Pseudoseisura cristata.
45 O turco (Parkinsonia aculeata L.) é uma árvore de pequeno porte,
pertencente
à família Leguminosae – Caesalpinoideae, ocorrendo em áreas do Nordeste
do Brasil e Rio Grande do Sul.
46 Do tupi puna’re ‘. Espécie de mamífero roedor da família dos equimiídeos
(Thrichomys apereoides), de pelagem macia e cauda longa; rato-boiadeiro.
47 Antoine Hercules Romuald Florence. Chegou ao Brasil em 1824, e
durante quase 50 anos viveu na Vila de São Carlos, hoje Campinas, em São
Paulo – onde morreu em 27 de março de 1879. Entre 1825 e 1829,
participou como desenhista de uma expedição científica chefiada pelo
barão Georg Heirich von Langsdorff, cônsul geral da Rússia no Brasil.
Inventou um sistema de impressão gráfica (polygraphie) e, muito antes de
Daguerre, em 1833, usando câmera escura, chapa de vidro e papel
sensibilizado
para o contato, descobriu um processo fotográfico, dando-lhe o
nome de photographie.
48 Luiz Gonzaga Duque Estrada (Rio de Janeiro/RJ, 1863-Rio de Janeiro/
RJ, 1911). Foi um crítico de arte e escritor brasileiro. Autor de A Arte
Brasileira
(1888) e do romance Mocidade Morta (1899), dentre outras obras.
49 Eriçados, arrufados, postos em pé.
50 Assinalado como indesejável, pernicioso.
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