sexta-feira, 12 de julho de 2024

FAMÍLIA LINS CALDAS- ORIGENS

O “começo” está próximo, em torno, faz parte das escolhas, da consciência, dos desejos, das possibilidades e visibilidades: é uma armadilha conhecida. A “origem” não nos cabe, nos antecede, nos determina, nos condiciona, nos embala, justifica e engana: a nós somente sofrê-la ou combatê-la quando e onde seja possível. Aparece com nosso nome, nosso rosto, nossos gestos, nossa palavra, nossas ações e desejos, mas são vestígios, fantasmas, sobrevivências, propagações, intumescências, tumores, fósseis. Torna consciência o que é esquecimento, corpo o que é repetição, gramática o que é genético.

Minha família se divide em cinco segmentos. A primeira, os Lins; a segunda os Caldas, a terceira os Lins Caldas, a quarta os Guimarães Peixoto e a quinta os Gonçalves. Os Lins da Alemanha, os Caldas e os Guimarães Peixoto de Portugal, os Lins Caldas de Pernambuco e os Gonçalves do grande sertão.

Os Lins, família que desce até 1300 com o primeiro que deixou rastro, Heins Lins, passando por Albercht Lins, Johann Lins, Conrad Lins von Dorndorf, Zimprecht Lins e Sebald Lins/1508-1597, que foi pai de Cristóvão Lins (1529-1602), o que chegou a Pernambuco na década de setenta do século XVI para ganhar a vida no Novo Mundo. Era uma família de comerciantes, aventureiros e pequeno-burgueses. No Brasil conquistaram terras, roubaram terras, pilharam terras, mataram homens, moldaram homens, humilharam famílias, torceram heranças: e se tornaram senhores de muitos engenhos a partir da segunda metade do século XVI. Sempre foram terra a terra, metidos a aristocratas, finos e ricos. Nulidades que se articularam com todas as grandes famílias pernambucanas e ainda hoje são bem postos, arrotando descendências e poderes perdidos. Jamais os considerei como família, tendo de suas existências somente uma fria indiferença.

Os Caldas eram comerciantes e funcionários, chegaram no século XVIII por razões que somente eles sabem, mas nada grandioso ou aventuresco. No fim deste século houve uma união destas famílias, nascendo o Lins Caldas como sobrenome conjunto, deixando de ser tanto Lins quanto Caldas, que seguiram seus caminhos independentes. O que me interessa é que logo depois dessa união nasceram dois senhores de engenho (os “Dois Irmãos”, das terras onde hoje fica o zoológico do Recife: muito bem localizado: lugar de bicho): Thomas e António Lins Caldas, filhos do primeiro Lins Caldas: Luiz José Lins de Caldas, senhor de terras, títulos e escravos. Esta família continuou com suas terras e escravos, enquanto Thomas Lins Caldas engravidou uma escrava chamada Balbina, conhecida familiarmente por Babá, seguindo seu obscuro caminho familiar com a esposa real. Dessa união gilbertofreyriana nasceu Francisco Lins Caldas (1825-1907), criando um ramo dos Lins Caldas que não teve direito as terras, aos escravos nem tampouco a paz de espírito de quem nasce bem. Foi advogado, estudou na Faculdade de Direito, e iniciou a família que reconheço como minha: ele é o fundador, inclusive do orgulho e da prepotência que nos acompanha e arruína, mas ao mesmo tempo da inteligência e da sensibilidade que justifica esses pecados até mesmo na primeira cornija do baixo purgatório.

Este Francisco é meu trisavô. Ele não nos transmitiu tão somente a vida e os humores dos Lins Caldas, mas da escrava Balbina e da sua própria posição e sentimentos de quem vive “fora da sociedade” mesmo dentro, mesmo enganando, mentindo e se escondendo: era “acinzentado”, quase branco, um metro e noventa; cachaceiro, atrabiliário, desbocado e que negava a mãe; tinha um cartório em Olinda; mas no fundo considerava-se um nada e nunca aceitou isso. Tornou-se o máximo que sua condição permitia: advogado. Um paria integrado. Um bastardo que recebeu um nome, uma profissão, mas não recebeu um passado e teve que trabalhar pelo que teve. Pelo que desejou. Ele criou, querendo ou não, o passado familiar que se cola à minha carne, sonhos e desejos: ele é a origem. Quando muito velho, já dentro do século XX, matou-se por não suportar mais um soluço renitente: matamos e morremos por soluços ou suspiros: somente ninharias nos fazem perder a cabeça. Seu desdém ao povo, aos outros que não os familiares muito próximos, o horror ao mundo possuía fundamento na fuga, no não enfrentamento, na não consciência ou até mesmo na consciência aguda demais de sua posição social, financeira, racial. O que nele foi verdadeiro em nós é somente um espectro sem suporte.

Meu bisavô foi um dentre seus muitos filhos com Rosa: Herculano Lins Caldas (1871-1940), advogado e promotor, que se casou com Elisa dos Guimarães Peixoto (1869-1909), onde se articula o antiderradeiro segmento familiar. Esses Guimarães Peixoto eram metidos a bestalhões, aristocratas branquinhos e bem postos (a presença de Francisco no desejo de reverter de Herculano), vindos de um Portugal caduco e de um Império colonial ridículo. Elisa, que fugiu com meu bisavô pelas ladeiras de Olinda, era filha de Pedro D'Alcântara dos Guimarães Peixoto (1829-1883) e de Ninpha de Morais dos Guimarães Peixoto (1836-1907). Pedro era filho de Vicente Ferreira dos Guimarães Peixoto (1781-1840), que deixara para a família a honra de haver sido o médico da Imperatriz e um brasão (Quascumque Findit, sob quatro leões patéticos segurando espada e maça, cheio de borlas, coroas e gestos) dado pelo Imperador Pedro I. Esse vazio orgulho familiar deixaria marcas profundas de horror em meu avô Osíris dos Guimarães Peixoto Lins Caldas (1898-1978), filho de Herculano e Elisa, que riscou os Guimarães Peixoto do nome e da vida, jamais os aceitando, sendo somente Osíris Caldas a vida inteira.

Desses Guimarães Peixoto inúteis brotou, pelo menos, dois momentos estranhos e antagônicos. Um deles, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (o insuportável Olavo Bilac, o “Olívio Biloca” das portas de banheiro) e Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas (a Cora Coralina), prima do meu avô. O primeiro um aleijão poético, uma vaca de presépio, e a segunda uma impossibilidade velha, familiar e rural: um milagre além do inexistente marido: um caso provinciano de literatice.

O último segmento familiar é o da minha mãe: os Gonçalves. Eram comerciantes e fazendeiros, se perdendo dentro do processo de colonização indo e vindo do sertão. Meu avô, João Batista Gonçalves (1907-1945), era farmacêutico e minha avó Severina Cadete (1909-1962), com sua morte, continuou com a farmácia para tentar sustentar a imensa ninhada. Ele era senhor de muitas terras e casas antes de ser assassinado pelas ninharias que perturbam os Lins Caldas vindos de Francisco, mas que não eram importantes aos Gonçalves: morreu inocente (se tenho alguma bondade e inocência devo a este avô a este ramo familiar), o que não acontece com os desequilibrados descendentes do filho da escrava: não aceitamos a ingenuidade, a inocência, o trabalho honrado, as horas perdidas com ninharias, as festas, as conversas vazias, a inutilidade, a burrice gratuita: podemos morrer por qualquer razão, menos por inocência e bondade.

Tudo isso (achaques, raivas, depressões, sentimentos, iluminações) chegou até a mim vindo diretamente dos meus avós, dos meus pais, tios e tias. Faz parte do que não me pertence, do que não domino, do que não vejo razão mas sigo pensando que sou eu. E não deixa de ser. Somos uma soma de fantasmas, de corpos que não vemos, de programas escritos por outras mãos, outras vidas, escrituras que nos compõem como uma grande partitura viva e muito mais complexa que a nossa vã Ciência.

COMEÇO


Nasci numa casa recheada de livros: esse é o meu universo desde o começo. E uma casa onde se reuniam os amigos do meu pai para conversarem sobre o mundo, a cultura, a política, o teatro, as religiões, as crenças, a musica, a poesia, a Geografia, a História (cada uma destas palavras conduz a várias histórias), em grandes batalhas, às vezes pública, onde se reuniam interessados de todas as áreas, cada um armado com imensos livros, infindáveis bibliotecas e razões. Dali pelo menos um nome se estabeleceu na literatura: Ângelo Monteiro, um dos melhores poetas da sua geração. Foi professor do Departamento de Filosofia (UFPE) e fez a articulação entre o Movimento Armorial e alguns de nós.

Meu avô (Osíris Caldas) recitava de cor, caminhando no colorido de muitas tardes, seu querido Molière, ou poemas em espanhol. Era Coletor Público mas tinha um teatro onde reunia um grupo criativo e conversador. Havia começado a escrever nos jornais do Recife em 1914, finalizando em 1970, quando a impressa deixou de ser familiar ao seu mundo (compôs, numa imensa e negra máquina de escrever, dois artigos por dia durante cinqüenta anos para o “Jornal do Comércio” e para o “Diário de Pernambuco”); publicou livros, escreveu e representou muitas peças de teatro, mas gostava mesmo era de dirigir Shakespeare, e se deleitava recitando para mim passagens inteiras de uma peça da sua paixão (Otelo e, às vezes, Romeu e Julieta), trechos de Sófocles quando estava triste ou, para rirmos, histórias fantásticas. Mas seus livros, artigos, peças, ensaios, sua visão de mundo não eram, e talvez não devessem ser, cosmopolitas. Estava preso a um universo nordestino, década de vinte e trinta, provinciano, mesmo tendo me aberto os olhos para uma sensibilidade que somente ele foi capaz de me transmitir, uma poeticidade que só muitos anos depois pude reerguer do seu solo de esquecimento. A ele devo a paixão pelo teatro, por certas músicas e poemas, por uma inflexão schopenhaueriana, por uma vida dedicada somente ao que nos arrebate, e ao nosso Shakespeare.

Meu tio paterno (Carlos Alberto Bruno Lins Caldas) era pintor e desenhista. Foi através dele que conheci as artes plásticas, e fui seduzido pelas cores, pelas transparências falsas, pelo movimento imóvel, pelo cheiro das tintas, da terebintina, a moleza ou dureza dos incontáveis pinceis, a paixão pelos murais, pelo cubismo, por Picasso e Dali, e por uma atuação incisiva na política num tempo muito perigoso. Junto com meu pai formaram a idéia que carrego ainda sobre o que é e como deve agir um intelectual, como deve ser um intelectual.

Meu pai (Alberto Frederico Lins) foi professor do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco (lugar que me estaria reservado se não fosse pela dura luta contra todos, esta doce maldição). Minha vida foi acompanhar suas amizades, leituras, pesquisas, escritas, publicações e polêmicas (foram muitas, mas as principais com Osman Lins, Agnaldo Silva, Mário Melo e Aglae Lima foram memoráveis). Ele escrevia no Diário de Pernambuco, ganhava prêmios, vivia no Arquivo Público passando horas em intermináveis pesquisas, ensinava e isso definiu meu horizonte futuro: mas numa reflexão “depois da festa”. Passei muitos anos fugindo dessa direção. Até que, em 1983, comecei a estudar mais seriamente História. Mas antes alguém me foi de fundamental importância intelectual.

Enquanto meu pai me apresentava a muitos dos seus amigos (Gilberto Freyre, Ariano Suassuna, Flávio Guerra, Nilo Pereira, Pinto Ferreira, Mauro Mota, Marcus Prado), entregando-me certa literatura brasileira (José de Alencar, Machado, Lima Barreto, Humberto de Campos) e portuguesa (Camilo [sua absoluta paixão], Herculano, Eça, Júlio Dinis, Guerra Junqueiro), a História (Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Braudel, José António Gonçalves de Melo), a Geografia dos mapas, as “geomorfologias” euclidianas n'Os Sertões (paixão paterna que somente nos últimos anos tenho reconquistado), a História Regional e o Romance Histórico (Walter Scott, Victor Hugo, Alexandre Dumas, Michel Zevaco), - Gláucio Veiga, catedrático da Faculdade de Direito do Recife, amigo do meu pai, marxista e escrevendo sua monumental “História das Idéias da Faculdade de Direito do Recife” (13 volumes), me apresentou, em muitas conversas, leituras e anos, Hegel, Marx, Weber, Heidegger, Ortega y Gasset, Braudel, Balzac e Proust.

O contato entre essas visões de mundo díspares (Camilo/Proust – Marx/Freyre, Braudel/Melo), em plena ditadura, possibilitou uma visão de mundo polifônica, aberta, móvel, contraditória e sem exigir conciliação: todas as visões cabiam no mundo e seu rotacionar, no mundo e suas ficções, no mundo e suas escrituras. Nas bifurcações proustianas mundos inteiros apareciam e desapareciam, feitos de tempo e memória, de palimpsesto e desejo. A História, o pensamento, a literatura, não poderiam fundar seu reino numa única perspectiva, numa única verdade. História, Antropologia, Arqueologia, Sociologia, Filosofia e literatura se entrelaçavam num único processo vivencial, visceral. A separação seria uma violência. Na “minha” Dialética não cabiam mediações, o que causou sempre combates infindáveis entre amigos e companheiros. Dos dois (Gláucio e meu pai) fiquei com o que havia de melhor. A crítica marxista de um e do outro o gosto pelo estilo, pela abrangência dos interesses, tornando “o social” e “o histórico” algo mais rico que o tradicional; e a tara pelos livros, a sedução pela escrita.

Enquanto minhas leituras infantis (década de sessenta) eram essencialmente aventurescas, pura imaginação (os volumes de Tarzan, de Edgard Rice Burroughs, o Sherlock Holmes de Conan Doyle, as delícias de Júlio Verne, as destrezas de Maurice Leblanc com seu Arséne Lupin, o universo insuperável de Michel Zevaco com seus Pardaillans, os “contos maravilhosos” de muitas literaturas) - uma experiência arriscada a travessia de cada livro, as do começo da adolescência (1969/1970/71/72) eram essencialmente literárias, formativas e inescapáveis (Sófocles, Dante, Boccaccio, Montaigne, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Melville, Dickens, Stevenson, Wilde, Poe, Graciliano, Drummond); na adolescência (o resto da década de setenta) as leituras (sempre obsessivas na quantidade, na qualidade e no labirinto de gostos, coisa que marca profundamente a cartografia intelectual da minha biblioteca) começaram a se dividir entre a História, que meu pai me apresentava (uma História sempre “acontecida de verdade”, jamais teórica, como “O Domínio Holandês em Pernambuco” de Watjens e “Memória de um Senhor de Engenho” de Julio Bello, ou temas obsessores como as Famílias, os Engenhos de Açúcar, a Segunda Guerra Mundial, Hitler, o Vietnam, a Coluna Prestes), e novos mundos que foram surgindo muito fortes como a Antropologia, a Arqueologia, a Psicanálise, Marx e os marxismos, Darwin e a Biologia Evolutiva, Hegel e a Filosofia, a História e a Filosofia Marxista, Sartre e todos os existencialismos, tudo dentro de uma clivagem inesperada (Sade, Dostoievski, Nietzsche, Rilke, Joyce, Svevo, Camus, Pirandello, Genet, Ionesco, Beckett, Arrabal) que foi me afastando, no fim da adolescência (1977), daquela formação literária inicial, descomprometida a não ser com o prazer e a descoberta de mais prazer, como se não fizessem parte de um mesmo movimento, exigindo de mim, muitos anos depois, um esforço de síntese que ainda não concluí completamente.

Sobre essa “cultura em formação” pairava um “grande espírito”: Gilberto Freyre. Gláucio Veiga o odiava com amor, havendo polemizado com ele algumas vezes, terminando por se reconciliar muitos anos depois; meu pai o amava e admirava, tendo me levado para conhecê-lo em Apipulcos, onde conversamos, ele velho e com aquela perna sobre o braço da cadeira, sobre muita coisa enquanto meu pai recordava momentos comuns. Gilberto não somente foi um dos primeiros a discutir assuntos como a história da comida, do corpo, da infância, da sexualidade, das habitações, mas isso com dignidade de “grande tema”, sempre numa articulação viva, vibrante, convincente, profundamente literária e complexa com uma força de quem queria criar um povo. Ele fazia parte daquela mono-cultura recifense, feita com o isolado das ilhas mas convivendo com o link das pontes e do porto, o aberto e o fechado, o mar, o mangue, a terra. Mas essa simbiose, essa rede viva de caranguejos, navios e histórias, era aristocrática - mesmo quando falava do povo, com o povo (Tobias, Freyre, Ariano, Cabral, Brennand). Essa aristocracia é o que expulsa e maltrata (“Recife, cidade cruel”) todos aqueles que diferem, todos aqueles que abolem a terra em nome do mar, ou aceitam o mangue contra a terra e o mar.

Alberto Lins Caldas
Professor de Teoria da História - UFRO
caldas@unir.br

Nenhum comentário:

PELO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA Se Guilherme de Almeida escreveu 'Raça', em 1925, uma obra literária “que tem como tema a gênese da na...