Um relato da escravidão, em primeira pessoa
Único relato conhecido de um escravo no Brasil é lançado em português
por Miguel Martins e Tory Oliveira — publicado 09/01/2016 20h58, última modificação 09/01/2016 20h58
O abolicionismo brasileiro fortaleceu-se nos anos 1870, duas décadas após a proibição definitiva do tráfico negreiro. Consolidava-se em meio à implosão do sistema escravista, incapaz de se reproduzir com a suspensão das rotas comerciais de cativos entre o Brasil e a costa ocidental da África. Relatos em primeira pessoa dos sofrimentos vividos por africanos submetidos ao cativeiro não foram registrados na Colônia ou no Império. O silêncio dos escravos e libertos na historiografia nativa, acessíveis apenas por fontes indiretas como testamentos e arquivos policiais, fragiliza a empatia dos brasileiros e o entendimento do horror da escravidão e de suas consequências perenes.
Nos Estados Unidos, o abolicionismo floresceu ainda no século XVII, com forte conteúdo religioso. Os pastores protestantes americanos acostumaram-se a coletar os relatos de negros libertos como parte de sua missão. Em 1854, o abolicionista Samuel Moore publicou as memórias de Mahommah Gardo Baquaqua, ex-escravo libertado nos EUA após três anos de trabalhos forçados em Pernambuco e no Rio de Janeiro. Trata-se do único relato em primeira pessoa sobre a trajetória de um africano escravizado em terras brasileiras conhecido até hoje.
A biografia de Baquaqua passou mais de um século e meio sem uma edição nacional. Os historiadores brasileiros Bruno Véras e Nielson Bezerra, com apoio do Ministério da Cultura e do governo do Canadá, abraçaram a causa de concluir a tradução iniciada pela pesquisadora Silvia Hunold Lara, da Universidade de Campinas, ainda em 1988. Orientado pelo pesquisador canadense Paul Lovejoy, responsável pelo relançamento recente da biografia em inglês, Véras ampliou o escopo da versão brasileira. Na segunda-feira 30, entra no ar o site baquaqua.com.br, que traz uma edição digital interativa da biografia com foco no público infantil. No primeiro semestre de 2016, o livro será lançado pela Editora Civilização Brasileira.
A história de Baquaqua inicia-se na cidade de Djougou, no Benin. De origem muçulmana, ele descreve os hábitos islâmicos de sua família, como as sessões de reza e as leituras do Alcorão. A região onde hoje atua o Boko Haram era domínio do Califado de Socoto. “O islamismo e o jihadismo sempre foram fortes no Benin”, afirma Véras.
Convidado a conhecer o monarca de uma cidade próxima a Djougou, Baquaqua foi preso após falsa festa em sua homenagem. Vendido para um traficante de escravos, acabou acorrentado aos seus semelhantes em um navio negreiro e zarpou para o Novo Mundo. “Imagino que, em toda a criação, haja apenas um lugar mais horrível do que o porão de um navio negreiro, e esse lugar é aquele onde os donos de escravos e seus lacaios muito provavelmente se encontrarão algum dia.”
A passagem demonstra o forte conteúdo religioso do relato. “A maior parte dos textos era mais de biografias espirituais do que de protestos contra a escravidão”, afirma o historiador americano Sean Kelley, integrante do projeto canadense Shadd, que organiza e edita biografias de africanos escravizados, entre elas a de Baquaqua.
O tráfico de escravos foi proibido formalmente no Brasil em 1831, mas prosperou por duas décadas na ilegalidade. Baquaqua chega ao Brasil em 1845. A equipe de Lovejoy, integrada por Véras, percorreu várias possíveis praias onde ele pode ter desembarcado em Pernambuco. A mais provável delas é a de Itamaracá, que funcionava como porto clandestino para a entrada de cativos. Na capitania nordestina, Baquaqua foi comprado por um fazendeiro português. Em um primeiro momento, o escravo tentou se aproximar de seu dono, sem sucesso. “Fizesse o que fizesse, descobri que servia a um tirano e nada parecia satisfazê-lo.”
Desiludido, Baquaqua entregou-se à bebida. Pensou em matar seu algoz, mas preferiu tentar o suicídio por afogamento, ação malfadada que lhe rendeu impressionantes castigos físicos. “Fui levado à casa de meu senhor, que atou minhas mãos para trás, colocou-me de pés juntos, chicoteou-me sem misericórdia e me espancou na cabeça e nas faces com uma vara pesada.”
Vendido novamente a um traficante de escravos, Baquaqua foi levado ao Rio de Janeiro, onde passou a trabalhar para o capitão Clemente José da Costa, dono do navio Lembrança. Ao ser contratado para um serviço de transporte de sacas de café para Nova York, Costa levou Baquaqua em sua tripulação. Ao chegar ao Norte dos Estados Unidos, onde a escravidão fora abolida, o cativo fugiu do navio. Enquanto era perseguido, gritava a palavra free. Embora tenha sido capturado novamente, foi libertado pelas autoridades americanas poucos dias depois.
Enfim livre, Baquaqua partiu para o Haiti, onde se converteu ao cristianismo. Voltou aos EUA em 1850. Após ter sua biografia publicada, foi para o Canadá e para Inglaterra. O Porto de Liverpool foi o último lugar que registrou sua passagem. Véras pretende, porém, ir a Lagos, na Nigéria, atrás de outros eventuais destinos de Baquaqua. “Acredito que ele voltou à África no fim da vida.”
Ex-professor da rede pública de Pernambuco, Véras optou por lançar o site com foco nos estudantes dos ensinos fundamental e médio. “A falta de referência histórica e estética dos africanos no Brasil é responsável pela baixa autoestima dos negros nas escolas.” Por esse motivo, a biografia digital é também um livro para os alunos imprimirem, recortarem e colorirem. O “Baquaquinha”, personagem infantil que apresenta o relato para as crianças, descontrói logo de início o preconceito cotidiano: é hora de pegar seu “lápis cor de pele” para pintar os personagens. “Meus alunos negros se pintavam de rosa, branco, jamais de preto. Quero que eles sintam orgulho das suas origens.”
*Reportagem publicada originalmente na edição 878 de CartaCapital, com o título "O cativeiro em primeira pessoa"
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