A boemia natalense amanheceu de ressaca. Dessas de deixar o corpo encurvado feito berimbau. A salvação no caldo de mocotó do Bar do Lourival tem gosto amargo hoje, véspera de mais um jogo do escrete canarinho. Amanhã, tudo vira futebol e o livro da história de Natal recebe mais um capítulo dedicado às tradições boêmias e costumes do chamado Plano Palumbo. O dono do bar mais antigo de Natal tomou sua última dose de vida na madrugada de ontem e deixou amigos e adeptos do verdadeiro boteco órfãos da última saideira com "Lourinho".
Antes de administrar o boteco, o comerciante trabalhou durante 35 anos como contínuo em um banco Foto: Arquivo DN/D.A Press
Lúcio Lourival da Silva morreu aos 86 anos decorrente de problemas cardíacos, no hospital da Hapvida (Antônio Prudente). Há uma semana foi levado à UTI quando sofreu pequenos infartes. O currículo de internações hospitalares de Lourival é recheado. Só de cirurgias foram seis safenas e duas mamárias. Era também diabético. A luta contra a morte foi uma constante nos últimos anos. O corpo foi velado durante a manhã e sepultado às 17h de ontem, no Cemitério Morada da Paz. Amigos e assíduos do velho bar estiveram presentes.
O bar já vinha administrado por Lourival Filho há alguns anos, quando o pai piorou a saúde e se afastou do boteco criado há 45 anos. À época, Lourival era contínuo do Banco do Povo. Trabalhou lá 35 anos até alugar o ponto onde hoje está situada a sede da Rádio 96, situada próxima à casa onde morava. Comprou depois a casa ao lado do ponto alugado - do famoso construtor Joaquim Vitor de Holanda, responsável pelos projetos do Atheneu, Colégio das Neves e outros -, encerrou o aluguel e montou o bar nos jardins da residência.
À frente, a sede do Diário de Natal, na Deodoro da Fonseca. E a avenida, então dos principais corredores de tráfego da cidade - recebia ali a sua universidade popular, o ponto de encontro da boemia natalense. Jornalistas como João Batista Machado, Jurandir Nóbrega, Ubirajara Macedo e outros tomaram o bar como segunda casa. "À época, o Diário promovia shows no auditório e de calouros na Rádio Poty. Tinha também o Cinema e o bar ficava em frente. Quando tínhamos dinheiro, pagávamos, quando não, pendurávamos a conta", fala o jornalista Paulo Tarcísio Cavalcanti.
Paulo era dos jornalistas do Diário de Natal frequentadores do bar ainda embrião. Recorda ainda do "botequinho vizinho onde hoje é a 96" e só depois ampliado com a compra da casa ao lado. "Ele sempre foi muito atencioso e amigo com quem chegava. Mas sabia deixar os frequentadores à vontade". "Seo"Lourival nunca soube responder quando o bar começou. Arriscava um "maio de 66" incerto, desconfiado. Certeza mesmo, a lembrança da avenida Deodoro ainda de barro e à espera do progresso.
A arte do encontro
Se diariamente o carneiro na nata e o guizado encontram bocas anônimas a saborear papos de buteco (buteco com "u", o verdadeiro, e sem pedir licença poética), o bar também foi memória. Por lá passaram Pelé, Luiz Gonzaga, Sílvio Caldas e Altemar Dutra. Afora as estrelas locais e nacionais que se apresentavam na Rádio Poty e iam depois ao Bar de Lourival. "Eles vinham seapresentar, ficavam conversando e acabavam se aproximando dos clientes", contou "seo" Lourival ao Diário, em 1996, quando comemorou 30 anos do bar.
Já naquela época, Lourival disse estar "sem forças para tocar o bar". A morte da mulher Liege Silva há poucos anos agravou o estado de saúde de um dos patriarcas da vida boêmia da cidade, que ensinou a muitos onde mora a verdadeira vida. Como disse o poetinha Vinícius, "a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida". E Lourival convidou, sem formalidades, anônimos e sinônimos ao roteiro lírico e sentimental do bar.
(Do jornal Diário de Natal, 24.6.2010)
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