sexta-feira, 13 de maio de 2011

NAS ASAS DE NÚBIA LAFAYETTE

Para Lécio Arruda

Por Pedro Simões

Ela estava mais para borboleta do que para mariposa. Na verdade não lhe atraíam as luzes, nem se deixava encandear pelos inevitáveis luzeiros. Era trêfega, é verdade. Melhor dizendo, era esvoaçante, e nisso ela ultrapassava a borboleta e alcançava o beija-flor ou a abelha, perigosamente próx...ima da mariposa.

Gostava de se soltar pelos espaços à procura de nada em especial, apenas se soltava, como as folhas se desprendem das árvores, talvez para avaliar a gravidade, experimentar a aventura, a soltura até o solo, mesmo sabendo que um dia seria menos que um vegetal, adubo.

Chamava-se Núbia, homenagem que o pai prestara à sua cantora predileta, aliás, preferida por três de cada cinco habitantes da gloriosa freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Rio dos Homens. Os outros dois ou eram doidos ou moucos.

Ao lado de sua casa, morava um rapaz, a quem a mãe havia dado o nome de Adelino. Como tinha a mesma idade da moça, quem sabe não tivesse sido uma resposta musical ao vizinho pai de Núbia? Ou seria coincidência demais: Adelino (Moreira) e Núbia (Lafayette). O compositor que abriu o caminho do sucesso à cantora que, em contrapartida, deu mais colorido às canções do grande compositor.

Afinal, estava na moda os duelos musicais. E Dalva de Oliveira não dava publicidade às brigas de amor com Herivelto Martins? Vivia -se a Era do Rádio.

.Voltando ao fio da meada, por acaso o moço se gabava, mais do que de fato era possuidor, de uma bela voz. E se considerava a versão masculina da cantora, já que utilizava o mesmo repertório da consagrada intérprete. Faça-se justiça, até que ele se esforçava para dar à sua voz a mesma emoção e o mesmo timbre da artista, embora ficasse nos graves e não chegasse à notável interpretação da cantora. Dava pro gasto. Enganava bem.

Toda noite, à exceção das segundas feiras, apresentava-se no “Céu Azul”, uma das boates mais concorridas da ZBM de Conceição. Lá, era teúdo e manteúdo da veterana Maria C... de Ferro, dona da casa noturna. Não negava a condição de sustentado por mulher, ao contrário, ostentava o título com muito orgulho.

Tanto aceitava a carapuça, que adotara a postura e o visual dos cafetões da época: óculos escuros, costeletas largas que desciam pelas mandíbulas, bigode fino, cabelo cruzado “ponta com ponta” caindo pelo pescoço e colado ao couro com brilhantina (ou vaselina?) e dedos anelados. Usava as calças folgadas e ajustadas abaixo da cintura. Camisa de cor fixa impecavelmente engomada. Sapatos lustrosos de bico fino.

Adotava um ar enfadado de quem ainda lutava para despertar, sabe como é: alguém com os olhos semicerrados, às vésperas de um bocejo e o aspecto de quem não está ainda ligado com o dia. Ou, como hoje se diz – não estava nem aí...

As moças de bem de Conceição o olhavam atravessado, de cobiça ou desdém, mas não se aproximavam do cantor.

No entanto, predestinada pela vizinhança da parede-meia, Núbia sentia arrepios de prazer quando o via caracterizado com a roupa e pose de “gostoso” casual. Para ela, havia uma languidez insinuante naquele olhar morno. Quando ele a olhava, acidentalmente, ela se sentia queimar por dentro, feito fogo de monturo que queima sem arder, mas a deixava em cinzas.

Se o rapaz notava as atenções da jovem, não dava a menor importância.

Um dia, ela não conteve o impulso de achegar-se ao amado.

Deu-se que ele ensaiava o clássico “Coitada de você, meu ex-amor...” (assim, no feminino que ele não fazia concessões à macheza – já não era suficiente assumir esse lado feminino de “cover” de uma cantora assumidamente fêmea?) E botava alma na interpretação. Estava afim de mulher, num cio másculo. Não necessariamente da vizinha.

O coração de Núbia começou a bater descompassado e o sangue, talvez por isso, aligeirou-se e alvoroçou a cabeça. Não pensava direito, o juízo soltou-se das amarras de moça burguesa provinciana. Estava decidida a cometer loucuras.

Não contou conversa. Bateu na porta do vizinho e foi o próprio cantor quem a recebeu. Abraçou-se ao sufocado amor. O rapaz, logo que superou o susto, rendeu-se ao ardor da companheira. Afinal, Núbia não era de se jogar fora, era uma flor roceira, sem perfume nem desenho especial, mas bela assim mesmo. Simples e naturalmente bela.

Quanto à rapariga (no bom sentido) ela própria se desconhecia. Era toda paixão, dessa que arranha, morde, agarra, oferece a língua, lambe, abre as pernas e deseja penetração.

No início, o rapaz respondeu à altura aos estímulos. Depois (e até hoje não tem explicação) o seu entusiasmo murchou, literalmente. Núbia já estava sem as calcinhas, antegozando o prazer da entrada triunfante do seu deflorescedor. Olhou estarrecida para o parceiro, sem acreditar naquele esmorecimento.

O ardoroso cafetão estava com expressão abobalhada. Juraria, e seria verdade verdadeira, que não entendia o que estava acontecendo. E, num repente inesperado e por isso patético, chorou. Chorou, chorou, soluçou de tremer o corpo e desejar morrer ali mesmo.

A quase deflorada não se apiedou. A sua frustração cresceu tanto, que ficou maior que a piedade.

Olhou-o nos olhos, implacável

- Brocha!

E mais não disse.

(Adelino continua fazendo sucesso como cantor e como garanhão das mulheres damas de Conceição. Mas nunca mais encarou a Núbia profana e impiedosa, que deu para cantar diariamente, logo que acordava: “Coitado de você, meu ex-amor” – no masculino, com toda ênfase no “coitado”)

(Crônica do meu livro, inédito “Armadilha para pássaros e caçadores”)

Postado por Fernando Caldas

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