domingo, 28 de agosto de 2011

ECCE HOMO
por Pedro Simões, domingo, 28 de agosto de 2011 às 05:35

"A velhice produz mais rugas no espírito que no rosto" (Montaigne)

... Haverá alguém, neste orbe, alguém com uma alma dura e inquisitiva, que possa ouvir a minha confissão? Que me ouça sem comover-se, um desses, capaz de conviver com os anjos e não se converter, com os demônios e não se perverter. Isento, mas com alma solidária quando descomprometido. Inflexível, mas não intolerante. Puro, mas não imaculado. Com porejada humanidade, adquirida no eito da terra seca e estéril. Um que me chamasse irmão, mas não me exonerasse de culpas. Uma criatura acima do bem e do mal.

Que não me crucificasse, mas me pusesse de costas para o sol para me transformar em sombra, num vulto indistinto, para melhor me aferir. Que não se enternecesse com a minha atitude súplice e arrependida, mas se valesse dela para me atingir o mais profundamente quanto fosse possível. Que me depurasse com o sal de Sodoma e Gomorra.

Eu me ajoelharia e lavaria os seus pés, num gesto de reverência e humildade. E retomaria a condição de rastejante, na peregrinação pela terra, santificada por tanta humanidade anônima. Como me igualar às santidades sem rosto e sem identidade, se grito tanto o meu nome e exponho tanto o meu rosto, para não me confundir com o rebanho?

E por que, se as ovelhas são as verdadeiras crias do Senhor?

Já os rastejadores amargam o pó das sandálias do Divino, acompanhando os seus passos, sem nunca alcançá-lo.

Este sou eu, Senhor da Misericórdia, o que reclama piedade, mas a repele, para que a alma se fortaleça no solitário e longuíssimo caminho do calvário, no padecimento sem esperança de ressurreição, mas de renascimento em outra jornada de expiação.

Este sou eu Senhor, as mãos lisas, sem calos, a alma nodosa, mais cansado e faminto que os trabalhadores braçais que à noite conseguem repousar os seus corpos e alimentarem a sua alma. As minhas noites são indormidas, vigilantes, missionárias. Atravesso desertos, selvas e caatingas insalubres, sem o consolo de uma flor, sem a consolação de um pássaro canoro, entre uma e outra lamentação, entre um e outro gemido.

(trecho do meu livro inédito "Armadilhas para pássaros e Caçadores")

(Do FB do autor)

- A tela é de Lourena Kalahan 

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