segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O APRENDIZ DE CEGO



Pedro Simões, professor, poeta, escritor potiguar

Sua memória era visual. Era capaz de delinear qualquer imagem conhecida a que se referia o interlocutor – pessoas ou coisas. Até materializava sugestões abstratas. Desde criança tinha esse dom. Eis porque a visão era o mais solicitado dos seus sentidos e talvez por isso, o mais apurado.

Quando era estudante, guardava na memória as aulas verbalizadas pelos professores, mas só se sentia seguro quando o mestre escrevia no quadro negro ou buscava subsídios nos livros, sobre as aulas dadas.

Isso não quer dizer que não se valesse satisfatoriamente dos outros sentidos. O paladar e o olfato eram tão eficientes quanto a visão. O tato era um recurso suplementar, que dependia muito da familiaridade com o objeto. Já a audição desde há muito tempo era deficiente e agora perdera completamente a do ouvido esquerdo e alguns pontos percentuais do ouvido direito.

Para completar o quadro, vez em quando tinha crises de labirintite. Nessas ocasiões, a visão ficava turva, confusa, já não bastasse a catarata, ainda inoperável, do olho direito, e a miopia no esquerdo. O parecer do médico fora cruel: iria perder gradativamente a visão, pela idade avançada e pela diabetes invencível.

Restava-lhe então, acomodar-se à inevitabilidade. Sua vida sempre transcorrera desse modo, adaptando-se às circunstâncias. Talvez por isso fora favorecido pela ausência de alergias e por um fator que os médicos denominam de “labilidade” – numa explicação simplista e pragmática, uma extraordinária capacidade de sair, naturalmente ou por ação medicamentosa, de crises. A queda gradual de um pique hipertensivo, por exemplo.

E a sua cabeça ajustara-se às crises freqüentes de suas inúmeras doenças. Literalmente, ajustara-se à instabilidade.

Mas agora enfrentava o seu pior teste, já que lidava com o seu maior recurso de memória e o mais aguçado instrumento de sua vida de relações, não fosse já aquele que lhe oferecia mais segurança e idoneidade nesse relacionamento.

A bem da verdade, como já foi esclarecido, era suficiente um estímulo, uma sugestão verbal para que a sua memória lhe oferecesse imagens subliminares, pela visão do sub-consciente.

Decidiu mais uma vez adaptar-se às circunstâncias.

Teria de se habituar às trevas. Primeiro, passou a explorar a casa de olhos fechados e a dormir na mais absoluta escuridão. Depois, adotou o hábito de fechar os olhos enquanto trocava idéias com os amigos, que justificavam esse modo como um cacoete ou uma excentricidade.

Passou a pastorear as madrugadas em busca do alvorecer e, quando este denunciava sua chegada, cerrava os olhos e o imaginava tal como o conhecera. Assim também com os ocasos. A aurora e o por do sol, não por acaso, eram reconhecidos por ele como os maiores espetáculos da natureza, secundado pelos luares, pelo céu estrelado e a visão do mar.

Levantava os olhos para o azul do céu e o cinzento esfumado das nuvens, e os reproduzia de memória. E assim fez com os pássaros, a paisagem urbana, o trivial que compunha o em torno da sua biografia, a versão atualizada dos parentes e amigos distantes e arredios e pôs-se à espreita da tragédia.

Já acomodado à nova situação, foi assaltado por um temor: e os sentimentos alheios, como os identificaria? Costumava dizer que só o olho-no-olho era capaz de decodificar o real sentimento, o que, de fato se escondia por trás dos sorrisos e das lágrimas, das palavras doces ou amargas, o aperto de mão e o afago.

Por isso mesmo, detestava o telefone, e qualquer outro modo de comunicação que ausentasse o interlocutor do exame do olhar.

Soubera que havia pessoas de bom ouvido, com um tipo especial de intuição, que detectavam uma nota falsa nas emissões de voz inidôneas. Reverberações insinceras, cavilosas, maldosas, invejosas. Para esses a visão era apenas uma amostragem, já que a caixa de ressonância era adequadamente a própria voz.

Desafortunadamente, ele era “visualista” e quase surdo.

O único ser humano em quem confiava, bem a propósito, cegamente, era a sua mulher, mas esta era uma criatura que procurava um pretexto para santificar as pessoas, mesmo aquelas que traziam o estigma da excomunhão. Só enxergava a bondade, mesmo que incidental, das criaturas humanas.

Estaria, então, indefeso. Salvo se escolhesse o isolamento como modo de vida. Mas que sentido teria em viver em torno do umbigo, logo ele que gostava de gente, sobretudo da diversidade humana, das suas contradições. E que já dissera que seria um sacrifício inútil viver em isolamento e em santidade para preservar-se numa solidão oca ou merecer o paraíso, onde se vivia o tédio da paz eterna.

E a criatura humana era um ser complexo, constituído por seus conflitos e paradoxos, tanto mais envolvida em ebulição, quanto mais rica em caráter, senhora de uma história atraente, um personagem, mais que uma pessoa indistinta e amorfa.

Iria arriscar. Preferível ter uma existência curta, com qualidade de vida, a uma vida longa vegetativa, sem compensações, conjugando o verbo sobreviver com sabor de chuchu.

Foi.

Conviveu com anjos e demônios, heróis e poltrões e sobreviveu a todos. Porque era como o pássaro mágico do Bhagavad Gita – compartia, coexistia, mas não se envolvia. A sua visão interior o compelia a partilhar-se sem doar-se completamente, deixando sempre uma porção essencial de si para seguir. Mergulhando nas águas de qualquer superfície, sem aprofundar-se, emergindo sem molhar a sua penugem.

(Nesse instante, em que o vento murmura cálidas e suaves palavras de amor à palmeira do jardim, eu sei, um pássaro pousou e se aninhou no teu colo. Não me perguntes porque eu sei, eu só sei. E a tua mão pousou, cautelosa e terna, quase maternal, sobre a sua plumagem. Um ousado Bem Te Vi, talvez, ou um irrequieto pardal. Não importa. Ele se conservou silencioso, como não quisesse com o seu canto, competir com a ternura do teu gesto.

E tu desejaste que esse momento se eternizasse, porque sabes da ânsia peregrina dos pássaros. Por isso puseste mais gravidade na tua mão. E foi nesse exato momento que a ave bateu as asas e se arremeteu, intimorata, pelo espaço.

Uma lágrima solitária escorreu, silenciosa, sobre a tua pele. A tua memória guardará para sempre esse instante, eu sei, não me perguntes por que. Nem por que eu dividi contigo, perplexo, o enigma desse sonho prisioneiro, ponto de fuga para a solidão.)


















Nenhum comentário:

Postar um comentário

  UMA VEZ Por Virgínia Victorino (1898/ 1967) Ama-se uma vez só. Mais de um amor de nada serve e nada o justifica. Um só amor absolve, santi...