sábado, 17 de novembro de 2012

ESTÓRIAS DE CANTADOR

 


                                                                      Ai do país que abandonar as raízes da cultura.

                                                                                                                                 Antônio Girão Barroso, escritor cearense

Francisco Agripino de Alcaniz ou "Chico Traira" [n. Ipanguaçu-RN, m. Assu-RN], como era mais conhecido, era um afamado poeta cantador potiguar, dos melhores do Nordeste brasileiro, que dizia versos improvisados ao som da viola, "arte que floresceu no meio rural do Nordeste, especialmente no sertão, e que só aos poucos vem conquistando público das grandes cidades."

Certa vez, ChicoTraira [eu tive o prazer de ter convivido com ele na cidade de Assu-RN, na década de oitenta] cantando na casa de um amigo, com outro notório poeta do repente e da viola chamado Manoel Calixto, recebeu o desafio com a seguinte estrofe:


Avise ao dono da casa

Que não vá fazer asneira
Tenha cuidado em Traira
Que ele tem uma coceira
Se não quiser que ela pegue
De manhã queime a cadeira.

Chico retrucou:


Você é que tem coceira

Dessas que arrebenta a calça
Está tomando por dia
Dezoito banhos de salsa
Quando a coceira se dana
Num dia acaba uma calça.

De outra feita, Chico viajando de Natal com destino a cidade litorânia de Macau, interior da terra potiguar, em cima da carroceria de um caminhão, em companhia de outro 
poeta cantador de viola chamado Patativa*, escultou dele, Patativa, o seguinte: "Traíra*, eu acho que essa viagem não vai ser muito sublime!"  Patativa se referia aos balanços que vinha sentindo em razão da trepidante estrada esburacada. Pois bem, Chico pegou na deixa, dizendo no melhor da sua inspiração e criatividade poética:

Se o amigo não está

Achando a viagem boa
Você é pássaro, eu sou peixe  
Eu mergulho e você voa
Você volta para o ninho
E eu volto a minha lagoa.

* Patativa: Pássaro de canto melódico e suave.

* Traira: Peixe de água doce muito comum nos rios, açudes e lagoas do Nordeste brasileiro.

Chico Traira fora convidado para participar de uma solenidade em homenagem a Câmara Cascudo [que se tornou por merecimento, o escritor potiguar mais conhecido no mundo], realizado pela UFRN. Chegando a sua vez,Traira improvisou a sextilha ao som da viola, que transcrevo abaixo:


Eis o doutor Cascudinho*
Que valoroso tesouro!
Lá no sertão também tem,
Cascudo, aranha e besouro.
Os de lá não valem nada.
Mas este aqui vale ouro. 

*Cascudinho: Como era chamado Cascudo, pelos seus mais íntimos.

O poeta-violeiro, jornalista Rogaciano Leite, cantava com o conhecido Cego Aderaldo [Aderaldo Ferreira de Araújo - 1878-1967], cearense do Crato, numa feira livre da cidade do Recife-PE. Rogaciano ao ver se aproximar, salvo engano, o músico seresteiro Sílvio Caldas, debochou com Aderaldo: "Tô cantando com esse velho, esse velho que não serve pra mais nada, que devia tá numa rede todo enferrujado" e coisa e tal. Aderaldo não se fez de rogado, rimando na horinha, conforme adiante:

Andei procurando um besta

Um besta que fosse capaz
E de tanto procurar um besta
Encontrei esse rapaz
Que não serve pra ser besta 
Porque é besta demais.

Fernando Caldas

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