terça-feira, 27 de agosto de 2013

CONTO

PERNA DE PAU
- Eugênia!!!... Bote o comer filha de rapariga! – Esse tom ameaçador era o grito de guerra de Marcolino para sua esposa, quando se aproximava de casa embriagado. 

Marcolino era pescador. Um sujeito diferente. Moreno, alto, barrigudo, barba descuidada, cabelos compridos e encaracolados. Para terror da criançada tinha uma perna de pau. Tal qual a de alguns piratas das estórias infantis. Devido a sua experiência não tinha dificuldades para andar. Caminhava a passos longos. No entanto, quando estava bêbado andava desengonçado, aos tombos, muitas vezes caindo. Atolava em qualquer areal.

A comunidade de Juazeiro ficava pavorosa, quando tinha notícias de que Marcolino Perna de Pau estava bebendo. Era sinal de desgraças, arruaças, intranquilidade para todos.

Ele já havia brigado com quase todos os habitantes do lugarejo. Não tinha respeito e consideração a ninguém, nem homem nem tampouco mulher. Era tido por todos como um elemento revoltado, nocivo à sociedade. Alguns diziam que tinha sido trauma por ter perdido a perna com apenas treze anos de idade num acidente, quando tentava ancorar um barco no porto de Areia Branca. A barcaça bateu noutra, sem dar tempo de retirar a sua perna da rota de colisão.

Quando chegava a seu barraco, construído de taipa, se a mulher não tivesse “pronta” a peia comia o couro. Água fria, comer quentinho, rede armada no alpendre da cozinha, eram o tripé de conforto exigido pelo valentão.

Os mais velhos diziam que ele apareceu na comunidade de Juazeiro num final de semana para uma pescaria na lagoa. Daí em diante nunca mais saiu do lugar. Casou, teve cinco filhos. Apesar de aparentar um cinquentenário possuía apenas 42 anos de idade.

Num sábado foi para Assu vender o peixe pescado durante a semana. Entrou numa roda de pif-paf no ‘beco do mercado’ e enrolou a noite, bebendo e jogando. O jogo acabou, quando os parceiros desconfiaram de que ele estava roubando e reclamaram. Foi o suficiente para Marcolino dar de mão de uma faca de doze polegadas e de um revólver calibre 38 e apontar em tom ameaçador para os companheiros de jogo. Todos correram. 

O dono do ambiente mandou um menino avisar à polícia. Quando soube de quem se tratava, o soldado de plantão mandou avisar que estava ocupado cuidando dos presos e que o delegado tinha viajado.

No Cabaré de Rosemary as mulheres ainda estavam curtindo a ressaca, quando as portas dos quartos começaram a ser abertas a bofetes.

- Levanta raparigas, que Marcolino Perna de Pau chegou e quer fuder!

As mulheres saiam dos quartos correndo. Descabeladas, enroladas em lençóis, outras nuas. Buscavam um lugar seguro. Afinal o “elemento” já era conhecido no trecho. Foi um domingo de horror: as mulheres dançaram e desfilaram peladas; beberam a força copos cheios de cachaça; tomaram banho de cerveja; fizeram fila para praticarem sexo oral no delinquente... 

O sol já buscava repouso no horizonte, quando despontou na rodagem que dá a cesso a comunidade de Juazeiro um burro mulo conduzindo algo parecido com uma pessoa. Depois de algum tempo foi reconhecido.

- Valha-me Nossa Senhora, lá se vem Marcolino! Bêbado rodando! 

A velha Rita tinha reconhecido a silhueta devido à perna de pau esticada, ao lado direito do estribo da cela posta sobre o pobre animal.

À medida que Marcolino ia passando ao longo da estrada, as poucas famílias da comunidade iam fechando suas portas. Não sem antes dar uma olhadinha para ver o estado daquele temível e indesejável morador.

- Eita terrinha de corno! Terra de cabuetas manobrados por muiê! - Dizia Marcolino ao passar à frente de cada casa fechada. 

Quando foi se aproximando de sua casa, viu saindo em toda carreira o jovem Benedito, garoto que ele já tinha escutado falar de que enamorava Ritinha, sua filha mais velha, de 16 anos de idade.

- Epa negro bom de peia. Volta aqui! Seja homem! Se te pego namorando Ritinha... – Gritou Marcolino descendo do burro de ligeira em punho. Não perdendo tempo, as duas primeiras ligeiradas acertaram as costas da sua filha Ritinha. A mãe, Eugênia, tentou evitar e levou três lapadas que deixaram marcas no seu corpo. Por sorte os outros quatro filhos menores entraram na baderna e conseguiram, com muitos esforços, dominar o agressor.

Naquela noite ele não saiu mais de casa. Acordou pela manhã cedo, pegou a canoa e entrou na água da lagoa. Não chamou nenhum dos meninos, como de costume. Provavelmente estava curtindo uma ressaca moral. Afinal, havia muito tempo que os filhos de Marcolino não se envolviam numa briga em casa. De certo estavam ficando grandes. 

Três dias se passaram. Nenhuma notícia de Marcolino Perna de Pau. Um garoto entrou afrontado na casa gritando: 

- Dona Eugênia!... Dona Eugênia! Encontraram Perna de Pau... Tá morto na beira da lagoa.

A notícia se espalhou rapidamente. Todos os habitantes de Juazeiro foram para um matagal de junco existente à margem da lagoa. O corpo de Marcolino estava fétido. Podiam-se ver, por todo o corpo, diversos cortes de faca peixeira, mais de trinta facadas. 

Uma curiosidade: o criminoso e a perna de pau usada por Marcolino nunca foram localizados. Dizem que em noite de lua cheia, ouve-se o baralho da perna de pau perambulando por Juazeiro.
Do Livro Dez Contos & Cem Causos - Ivan Pinheiro 

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