Palavras de amor - CONTARDO CALLIGARIS
FOLHA DE SP - 08/08
A declaração de amor não serve para seduzir o objeto de amor, mas para apaixonar-se cada vez mais
Os sentimentos funcionam como picadas de mosquito, que coçamos e
recoçamos até que se tornem feridas infectadas e, às vezes, septicemias
generalizadas (quem sabe fatais). Salvo um exercício difícil de
autocontrole, qualquer picada pode adquirir uma relevância desmedida: a
gente tende a se coçar muito além da conta porque descobre que se coçar
não é um alívio, mas um prazer autônomo em si.
Por isso mesmo,
em geral, não confio nos sentimentos --nem nos meus, nem nos dos outros.
Não é que eu supunha que os humanos mintam quando amam, odeiam ou se
desesperam no luto. Nada disso.
Apenas verifico que os
sentimentos, em geral, são condições autoinduzidas: transtornos ou
desvios produzidos pelos próprios indivíduos, que, se não procuram
sarnas para se coçar (como diz o ditado), no mínimo adoram coçar as
sarnas que eles têm. Detalhe: coçando, aumenta o prurido, assim como
aumentam a vontade e o prazer de se coçar.
Tomemos o exemplo do
amor. Eu encontro, conheço ou vislumbro de longe alguém que preenche
algumas condições básicas para que eu goste dela. Sussurrando entre
quatro paredes ou gritando em praça pública, anotando no meu diário ou
escrevendo para grandes editoras, passo a encher o ar ou as páginas com
as descrições da beleza inigualável de minha amada e com as declarações
hiperbólicas de meu sentimento.
Claro, minha prosa ou poesia
poderão, quem sabe, conquistar meu objeto de amor, mas esse é um efeito
colateral. O efeito mais importante (e esperado) de minhas palavras de
amor não é tanto o de seduzir o objeto de meus sonhos, mas o de eu me
apaixonar cada vez mais. Pois a intensidade do meu amor será diretamente
proporcional à insistência e virulência de minhas declarações.
Em linguística, chamamos performativas aquelas expressões que, ao serem
proferidas, constituem o fato do qual elas falam. Exemplo clássico: um
chefe de Estado dizendo "Declaro a guerra" --essa frase é a própria
declaração de guerra.
Dizer que sou apaixonado, que odeio ou
que me desespero no luto talvez não sejam propriamente performativos.
Mas se trata, no mínimo, de semiperformativos, ou seja, talvez os
sentimentos existam antes de serem declarados, mas eles só crescem e
tomam conta da gente na hora de serem ditos, descritos e contados --na
hora de sua declaração, pública ou privada.
Há três razões
pelas quais o amor é absolutamente indissociável da literatura amorosa. A
primeira é que a gente aprende a amar e a declarar o amor pela
literatura. A segunda é que o amor se tornou relevante em nossa vida à
força de ser descrito e idealizado pela literatura. A terceira é que o
amor, como sentimento, é um efeito das palavras que o expressam: a
literatura nos instiga a amar tanto quanto nossas próprias declarações
amorosas.
Acabo de terminar a prazerosa leitura de "Como os
Franceses Inventaram o Amor" (editora Prumo). Nele, Marilyn Yalom
percorre a literatura francesa e revela que ela é um repertório completo
do amor.
A coisa começa com o triângulo amoroso, que não é um
acidente ou um imprevisto do amor; ao contrário, o amor começa, mil anos
atrás, com o triângulo amoroso. Tristão escolta Isolda, a futura esposa
de seu tio, e se apaixona por ela. Lancelote venera seu rei Artur, mas
se apaixona pela rainha. E, em geral, os poetas do amor cortês amam
damas casadas (e frequentemente fiéis a seus senhores, aliás).
A
França é, para Yalom, a pátria do amor. Não só pela riqueza de sua
literatura, mas justamente porque, na cultura francesa, do amor cortês
do século 12 até as conversas das preciosas nos salões parisienses do
século 17 (que Molière ridicularizava, mas também admirava), amar é,
antes de mais nada, uma arte de dizer, de ser efeito das próprias
palavras que usamos ao declarar e descrever nosso sentimento.
Alguns acham que falta amor em sua vida. Como Emma Bovary ou Anna
Kariênina (extraordinária a tradução de Rubens Figueiredo, pela Cosac
Naify), temem que, sem amor, sua vida nunca chegue a ter a dignidade de
um romance. A eles, recomendo paciência: os tempos mudam, e talvez se
afirme hoje, aos poucos, uma retórica nova, menos sentimental, capaz de
dar valor literário a uma vida sem amores e paixões.
Outros se
queixam dos estragos que o excesso de amor faz em sua vida. Aqui a cura é
simples: eles não vão acreditar, mas basta se calar um pouco, assim
como é suficiente não se coçar para que as picadas de mosquito parem de
incomodar.
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