sábado, 18 de janeiro de 2014

Negado durante anos, o “povo brasileiro” foi recentemente “redescoberto” pela historiografia. Agora só nos falta aceitar

Marcus J. M. de Carvalho

Quando o Brasil nasceu, logo na primeira Constituinte, em 1823, houve uma discussão sobre o que seria a nação brasileira, quem deveria ter direitos políticos e que direitos seriam esses. A noção de povo estava no centro da discussão. Será que o Brasil teria um povo, na forma como os europeus entendiam este termo? Bem, para os franceses, por exemplo, era claro. Francês era francês, mesmo que o país tivesse várias etnias, verdadeiras micronações lá dentro falando bretão, occitane etc. Os americanos chegaram até a resolver o problema, entronizando a ideia de “país dos imigrantes” na sua própria justificativa de ser.
Mas e o Brasil? Teríamos um povo realmente, ou o que havia aqui era um agregado informe de gente de diferentes procedências, com posições prefixadas, escravos e senhores, falando línguas diversas, sem nada que os unisse além da inevitável relação de trabalho? Seria essa gente uma massa, sem um nexo ideal comum, uma cultura que os unisse para, enfim, formar uma nação? Salvo um ou outro liberal radical, eram poucos os que incluíam índios e escravos no povo. Eram outra categoria. Estavam fora daqueles direitos e deveres comuns que chamamos hoje em dia de cidadania. E o resto, nas cidades, era uma “África”, como diziam os viajantes, entre irônicos e temerosos, de um país que não entendiam. A fina nata do patriciado brasileiro concordaria com isso. Entre eles e os escravos, o que havia era uma “população”, um arremedo de povo, algo ainda em construção. Era preciso educá-los, civilizá-los. Se possível, branqueá-los.
Esta visão racista e desesperançada, que não conseguia perceber senão anomia, desagregação, teve impacto na historiografia. Nos nossos primeiros manuais de história, os descendentes da mestiçagem, entre europeus, índios e negros, estavam fadados ao silêncio. Não eram percebidos como protagonistas de nada. Eram ou massa de manobra, ou ralé incontrolável destruindo a ordem – ordem esta que podia ser ruim, mas era a que nos dava a lógica certa do cotidiano, pensavam os primeiros ideólogos do Brasil. O que havia de bom era feito nos palácios. À população analfabeta e miserável restava esperar o futuro. Esta percepção, no final do XIX, ganhou amparo em teorias pseudocientíficas racistas, e higienistas, pois também era preciso separar essa massa dos “verdadeiros” cidadãos, ou seja, os proprietários. A propriedade, o voto censitário delimitavam as categorias. Houve até intelectuais que acreditavam que, com o passar do tempo e a ajuda da imigração europeia, o Brasil se branquearia, se alfabetizaria, se civilizaria, alcançando algum dia esse ideal maior de se constituir, finalmente, em nação. Éramos, assim, o país do futuro. Era só esperar.
A História do Brasil, como aliás a de praticamente todos os países do mundo, nasceu estudando os “grandes vultos”, aqueles personagens das elites que marcaram a época em que viveram. Isto é antigo, pois a História surgiu como o estudo dos grandes homens, dos grandes feitos. As nações apareciam através dos seus líderes mais destacados. Para os gregos antigos, a História era um desdobramento da poesia, para poder melhor venerar os heróis. É natural que tenha sido assim. Até hoje nos encanta saber mais sobre pessoas marcantes. É como se através delas a gente pudesse entender o mundo em que viveram. Mesmo gente sórdida, como Hitler ou Stálin, fascina. Acalenta-nos também saber que passaram, que foram vencidos pelo tempo, senhor de todos os destinos. Acalenta-nos também saber que houve grandes personagens da paz, do conhecimento, pessoas que, em suas vidas, representaram valores que respeitamos, justificando tantas biografias de filósofos, pensadores e políticos que visualizavam um mundo melhor, como Mandela ou Gandhi.
A História tem também uma finalidade política. Ela pode ser um instrumento poderoso para quem está no poder ou, ao contrário, para quem o combate. Assim, quando nasce um país, quem está no governo tem que se autojustificar perante as gerações futuras. Num passado remoto, havia sempre algum mito fundador, algum semideus para criar a nova nação e o seu povo. Rômulo e Remo mamaram numa loba para fundar Roma. E quantos reis medievais não tomaram diretamente de algum santo, ou mesmo de Deus, a justificativa do seu trono? Portugal mesmo foi fundado no milagre de Ourique, quando Afonso Henriques teve uma visão do Senhor que o protegeu e lhe comunicou que iria ganhar suas batalhas. O milagre fundou o reino. O século XIX, todavia, era o século da razão, não havia mais lugar para justificar o surgimento de um novo país por algum mandato divino. No mundo laico, cabia à História tecer esta justificativa. O Império do Brasil precisava de uma história oficial que justificasse a monarquia, a escravidão, para falar apenas dos dois pilares mais evidentes sobre os quais fomos fundados.
 Ao nascermos, pisando em um manto de café, cana, fumo e algodão, é óbvio que nossos primeiros manuais tenham legado a barões, condes, duques e ao imperador a construção de algo maior do que a antiga colônia portuguesa. É natural, portanto, que o lugar do povo tenha sido pequeno em nossa história oficial. O homem comum tinha que ser guiado. Se possível educado, para no futuro, quem sabe, tornar-se ele mesmo um protagonista do teatro social. Um dos quadros mais conhecidos do Brasil é aquela cena inventada por Pedro Américo para a Independência. Nela se vê um grupo levantando espadas, saudando Pedro I. No canto esquerdo do quadro, um homem humildemente trajado, guiando um carro de boi com uma vara, assusta-se diante daquela gente ricamente fardada e a cavalo. Era como se perguntasse: “o que é isso?”.
Seria este o papel do povo brasileiro? Ser moldura do teatro da história? Assistir, apenas, àquilo que não entendia? Nesse modelo de História, não éramos protagonistas, mas somente espectadores.
Nas últimas décadas tudo isso mudou radicalmente. A queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria e das ditaduras na América Latina aceleraram a quebra de antigos paradigmas das ciências sociais. Já não se lutava mais apenas por comida, pelas liberdades mais simples ou pelo direito à representação popular, mas também se lutava pela natureza, pelos direitos à sexualidade, pelos direitos da mulher e da infância, pelos direitos humanos. O mundo era outro. “A gente não quer só comida, quer também diversão e arte”, dizia a música dos Titãs do final dos anos 1980. Esse torvelinho de novas demandas entrou na academia, estremeceu velhas prateleiras, misturou pastas amareladas pelo tempo e escancarou a janela para o que ocorria lá fora. A outra janela, a janela para o passado, precisava ser reaberta de forma mais ampla. Havia outros agentes a se estudar.
A vida humana é imensamente rica. Praticamente qualquer coisa pode ser objeto de estudo. O espectro de possibilidades de pesquisa do historiador, todavia, tem limites. Ele não faz literatura. Ele não pode inventar um personagem, um país e um processo histórico que nunca existiram. Ele pode, infelizmente, até errar, mas mentir é desonesto. Ele depende, portanto, de indícios, de fragmentos, com sorte, de evidências sobre processos passados, e assim explicá-los, entendê-los ou, ao menos, apresentá-los a nós para que conheçamos melhor o que fomos, mesmo que o nosso entendimento sobre esse passado seja sempre menor do que gostaríamos que fosse.
Hoje, em História, estudamos tudo. Quer dizer, tudo aquilo sobre o qual temos fontes e artefatos que nos proporcionam a possibilidade de observar o passado. Estudamos da sexualidade ao cotidiano. Da cozinha da casa-grande à vida de trabalhadores portuários. De prostitutas a frades. Uma das grandes viradas da historiografia contemporânea foi trazer à tona a vida das pessoas comuns, como eu e você, que está lendo este texto.
Seria injusto, todavia, dizer que somente na contemporaneidade os historiadores brasileiros se preocuparam com as pessoas mais simples. Alguns dos nossos pensadores mais conhecidos anunciaram esta questão há muito tempo. Capistrano de Abreu abriu o caminho ao tentar visualizar a ocupação do Brasil mais profundo por levas e levas de imigrantes portugueses anônimos, caboclos e mulatos. Gilberto Freyre, mesmo falando a partir da casa-grande, deixou claro que os escravos foram protagonistas da História do Brasil, cuja cultura ficou marcada por eles e também pelos índios. Sérgio Buarque de Holanda, como que continuando o caminho aberto por Capistrano, tentou identificar o ethos, o modo de ser, do brasileiro justamente nesse indivíduo simples que tinha no personalismo e na emotividade o seu traço mais marcante. Caio Prado Júnior deixou claro também que, por mais “capado” e “recapado” que o povo tenha sido, na expressão de Capistrano, ele não estava condenado à anomia, mas destinado a algo maior, quem sabe, a uma revolução.
Entre desesperanças, conjecturas e sonhos, o fato é que cabe aos historiadores mergulhar nos arquivos e buscar indícios e evidências de processos passados. E foi nessa busca que nas últimas décadas ficou claro que o Brasil tinha “povo”. Parece óbvio, mas durante muito tempo não foi. O Brasil digeriu o que recebeu, e recriou um modo de ser próprio. E mais, a historiografia contemporânea tem demonstrado que o povo foi protagonista da história. Ele não assistiu abestado ao que acontecia ao seu redor como o pobre coitado lá na pintura de Pedro Américo.
Só que o protagonismo popular teve que ser buscado em outros locais. De fato, era difícil encontrá-lo nos palácios, raramente no Parlamento. Estava nas ruas, nos engenhos, nas fazendas, no cotidiano urbano e rural, nos tribunais. Tudo bem, estava até nos palácios e no Parlamento também – dentro deles, através de uma multidão de trabalhadores domésticos. Fora desses espaços, mas bem perto da entrada, não faltou multidão pressionando, nem sempre em silêncio, às vezes até ameaçadora.
E foi assim que a historiografia – que hoje é imensa – mostrou, por exemplo, que os escravos foram os principais protagonistas do processo de superação da escravidão. Ficaram claras as inúmeras estratégias que empregaram para minar a instituição, resistindo ao trabalho, fazendo fugas temporárias, colaborando para a compra da alforria. Da mesma maneira, perscrutaram-se as formas de convívio entre povos nativos, quilombolas e as populações rurais em geral, que faziam alianças entre si e, eventualmente, até com proprietários rurais e agentes do poder, mas não o faziam aleatoriamente, pensavam e pesavam quais alianças lhes seriam mais vantajosas. Nas cidades, além da resistência escrava, a população livre e pobre pouco a pouco foi criando meios de organização, inclusive com vínculos com a Igreja, como é o caso das irmandades. Consolidaram também formas de associativismo e ajuda mútua não muito diferentes daquelas que ocorriam na Europa nessa época. Mesmo mulheres praticamente encarceradas em conventos e recolhimentos criaram um mundo próprio, muito diferente daquele que era esperado delas. O povo não foi objeto. Foi agente da história.
É esse protagonismo das pessoas comuns que possibilita uma história popular do Brasil. Sabemos hoje que os homens e as mulheres pobres participaram de vários dos momentos fundadores da nacionalidade. Talvez o historiador José Honório Rodrigues estivesse certo ao dizer que todas as nossas revoluções foram derrotadas. Ao final dos momentos mais marcantes da história, ele afirmava, a elite dominante sempre se reconciliava e fazia algum arremedo de reforma, estancando o movimento que vinha do andar de baixo. Mas será que somos assim tão coitadinhos, fadados à mesmice, a nos conformarmos com o que está posto?
A literatura recente tem revelado outras possibilidades. O povo esteve presente na Independência, tentando se fazer representar. Esteve em inúmeros protestos pelo país afora contra os desmandos da classe senhorial e do patriciado urbano. Esteve no movimento abolicionista que, hoje sabemos, não foi só palaciano, pois sem a resistência escrava não teria frutificado. A abolição demorou a vir, mas veio apesar de todos os interesses econômicos em seu favor e de um bem sedimentado racismo pseudocientífico. As mulheres não eram sempre obedientes a seus pais, maridos e irmãos. A população urbana vivia uma religiosidade fervorosa, mas uma religiosidade própria, distinta daquela que era esperada pela união Igreja-Estado. Houve até um republicanismo popular, vinculado ao abolicionismo, a trabalhadores das nossas primeiras manufaturas, diferente do republicanismo escravista de produtores de café insatisfeitos com a monarquia. Foi das ruas que veio o protesto, a resistência, a força motriz para a queda das nossas ditaduras do século XX, a de Vargas e a de 1964. Tudo bem que a queda de Vargas e a dos militares tiveram o impulso de conjunturas internacionais favoráveis, mas quem conduziu o timão foi o protagonismo popular.
Todos os nossos avanços políticos e sociais mais importantes só aconteceram devido a esse protagonismo popular. Não quero dizer com isso que fizemos revoluções, que chegamos à utopia. Muito menos cair na armadilha panfletária de achar que o mal sempre vem de cima e tudo que é feito com apoio popular é necessariamente o melhor. Afinal de contas, Hitler foi eleito. É possível, sim, enganar muitos por muito tempo. A história ensina isto. Mas o fato é que as nossas demandas populares mais avançadas não foram sempre derrotadas. Vencemos a escravidão. Vencemos as ditaduras. Criamos um país que se não está no primeiro mundo, também não é nem de longe o pior lugar para se viver. Enfim, temos povo. Temos protagonismo popular. É possível e é fundamental fazer a História do povo brasileiro.

Marcus J. M. de Carvalho é professor da Universidade Federal de Pernambuco e autor de “O outro lado da Independência: Quilombolas, negros e pardos em Pernambuco (Brazil), 1817-23” (Luso-Brazilian Review, University of Wisconsin Press, 2006).


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