quinta-feira, 5 de junho de 2014

MINHAS BOTAS CANGULEIRAS







Laélio Ferreira
(Foto Arquivo)
Nos idos de 43/45, no auge da presença dos sobrinhos do Tio Sam em Natal - os “galegos” como os chamávamos, entre os meus cinco e sete anos de idade -. quando tudo era novidade até mesmo para os adultos, tomei muita Coca-Cola, mastiguei, masquei, muito chiclete daquele fininho, uma tirinha e vi muita “gente grande” tomando cerveja em lata e fumando “Camel”, “Phillips Morris”, “Lucky Strike”.
Dos maços de cigarro vazios, fazíamos as “notas” para apostar biloca nos quintais vizinhos.Como meu pai e um irmão mais velho trabalhavam em “Parnamirim Field” não faltavam as “cocas”, de segunda ao sábado de meio-expediente. Geladeira nesse tempo era coisa de rico. As garrafas escuras meu Pai as trazia, seis ou mais, do “Campo”, quase anoitecendo, bem acomodadas sob muito gelo e serragem, num depósito de madeira com alça. Rafick de “Seu” Izidin (Nagib) da bodega, Doca de “Seu” Ruben (Câmara) da “Saúde” e Zelinho de “Seu” João (Vasconcelos) da padaria, olhos pidãos, pigoravam, quase todo santo dia, a tal novidade “made in USA” e bebiam, satisfeitos, arrotando a cada gole, pelo menos um copo. Era uma festa na rua Felipe Camarão, ali bem perto da Juvino Barreto...!
Washington, o mano mais velho – que deixara o emprego na “Força e Luz” e o Sindicato dos Eletricitários com um companheiro de diretoria (que depois virou “gente fina”) chamado Jessé Pinto Freire –, era o Pagador-Geral do pessoal civil da Base Aérea, conhecendo Deus e o mundo: brasileiro paisano ou fardado, de soldado raso a general americano. Falando fluentemente inglês, nos dias e horas de folga, apesar dos renovados protestos de mamãe, farreava adoidado com os gringos.
Competentíssimo cicerone, “guia turístico” de largos conhecimentos em uma Natal de apenas uns 50 mil habitantes, até antes da guerra uma aldeia provinciana e quieta.O “pacote”, em geral – pude saber, anos depois, já taludo -, além dos meretrícios mais manjados, o “baixo” (XV de Novembro, Beco da Quarentena, Bica da Telha e Rua São Pedro) e o “alto” (Maria Boa, Maria de Josino, Rita Loura), circunavegava também pelo Grande Ponto, Tavares de Lira, Canto do Mangue, Grande Hotel, Lagoa do Bonfim, Macaíba, São José e – pasmem todos – Fernando de Noronha!
Para o “tour” no arquipélago, chegava a patota a requisitar, nessas “missões”, B’s25 (Parnamirim-Noronha-Parnamirim) e hidroaviões Catalina (Rampa-Noronha-Rampa). As desculpas (amarelas) para tantos deslocamentos eram as mais diversas: pagamento do pessoal civil, checagem de equipamentos e instalações, inspeções, testes das aeronaves – o escambau. Nessas esbórnias todas por Natal e adjacências, à exceção de outra rota aérea Rampa-Lagoa do Bonfim-Rampa, os traslados terrestres eram todos cumpridos por “jeep’s”. Raramente em “carros-de-praça” (os táxis de hoje), usados tão-somente quando as “girl’s friend’s” (leia-se piranhas) exigiam maior discrição e comodidade. Parnamirim, a incipiente Vila de então, obviamente, face à proximidade dos chamados “escalões superiores”, era descartada de toda essa azáfama turística...
Saudades do meu irmão Washington ! Em um desses seus dias de turista irresponsável, chegou lá por casa, de-meio-lastro-a-queimado, na companhia de um aviador americano do tamanho de um bonde, galego rosagá, sujeito suado como os seiscentos. Levaram-me, os dois, e a Netinho, outro irmão mais velho do que eu um ano, à oficina de um amigo na Travessa Aureliano, na Ribeira. Em meio ao alvoroço do estabelecimento, cheio de operários e clientes, “Seu” Edísio, o inventor das famosas “flying boots”, ajoelhado e risonho, tirou-nos as medidas, riscando sobre uma cartolina,um a um, os contornos dos nossos pés descalços. Uma semana depois, sob os olhares mansos e risonhos de Othoniel e Maria, posávamos, na Praça Pedro Velho, para a máquina de Washington. Nas canelas finas, brilhando mais do que espinhaço de pão doce, as famosas “botas dos americanos”, tão canguleiras quanto eu – que nasci na rua Ferreira Chaves, Ribeira velha de guerra...

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