Maria Luiza Tucci Carneiro
Nos momentos de instabilidade política, um Estado de perfil autoritário se apressa em nomear seus inimigos: anarquistas, comunistas, integralistas, feministas, terroristas. Serão eles os alvos prioritários da política repressiva.
O Brasil vivenciou dois momentos críticos de ditadura que cercearam o exercício da democracia: durante o Estado Novo comandado por Getulio Vargas (1937-1945) e durante a ditadura militar (1964-1983).Em ambos os períodos, a sociedade brasileira esteve sob a tutela de um Estado que agiu apoiado por um conjunto de aparelhos repressivos cuja ação trouxe graves consequências para o país.
Tanto durante a ditadura estadonovista quanto sob os militares, o Estado procurava evitar que ocorresse uma suposta revolução político-social no Brasil. Para reforçar esta missão, nos dois momentos foi criada uma polícia especial que deveria identificar e coibir reações políticas adversas, armadas ou não, que colocassem em perigo “a ordem e a segurança públicas”. Uma legislação específica para legitimar a repressão foi aprovada em 1935, e voltou a ser invocada na ditadura militar. Ela incluía a Lei de Segurança Nacional (LSN), o Tribunal de Segurança Nacional e as figuras do Estado de Sítio e do Estado de Guerra.
Após o golpe de 1964, as atividades da Polícia Política foram (re)orientadas pelos Atos Institucionais e pela outorga da Constituição de 1967 que, no seu conjunto, (re)instalaram o Estado de Segurança Nacional. Criou-se também uma rede de informações de combate à subversão, preconizada pela “Doutrina de Segurança Nacional”. Todos os demais órgãos repressivos estavam subordinados ao Serviço Nacional de Informações (SNI). Importante função foi delegada ao Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna – o conhecido DOI-Codi –, onde se concentraram representantes de todas as forças policiais.
Assim, a tradicional lógica da desconfiança estava agora armada por uma logísticamilitar, oferecendo estratégias adequadas aos agentes da repressão interessados em aniquilar os grupos revolucionários.Preocupadas em comprovar o crime político, as autoridades procuravam manter a população sob constante vigilância.Agentes produziam informações que eram direcionadas ao SNI e órgãos de inteligência militares (Ciex, Cisa e Cenimar). Órgãos de repressão subordinados ao staff do regime foram instalados por todo o país sob a coordenação de um militar assessorado por uma elite de informantes. Agentes invisíveis emergiram por todos os poros da sociedade, que passou a viver em constante estado de alerta. Associações identificadas com as ideologias conservadoras – como a Tradição, Família e Propriedade (TFP), o Comando Geral Democrático e o Comando de Caça aos Comunistas – passaram a cooperar com o regime na luta contra o inimigo-maior: os comunistas. Outras informações eram obtidas sob tortura ou através de delações anônimas. A morte clandestina, extorções generalizadas e a arbitrariedade tomaram conta dos porões do DOI-Codi após 1964.
Dentre os profissionais mais visados como “subversivos da ordem” estavam os jornalistas, escritores, artistas, músicos, estudantes, livreiros, gráficos e editores. Com base na Lei de Segurança Nacional, cabia às autoridades policiais desvelar os segredos daqueles que, como arquitetos de um complô verdadeiro ou imaginário, viessem a minar a ordem estabelecida. Para isso, confiscou-se grande número de fotografias, correspondência particular, catálogos, periódicos, livros e objetos pessoais, todos devidamente anexados aos autos de investigação.
Sucederam-se prisões ilegais de suspeitos, perseguições aos familiares, censura postal, invasões de domicílios, confiscos de objetos e documentos pessoais, deportações de estrangeiros, tortura e morte nos cárceres.Toda e qualquer arbitrariedade era justificada pela lógica da desconfiança. Os militares assumiram o papel de condutores da nação, afastando os civis das esferas de decisões políticas e transformando-os em meros coadjuvantes. A dor e o terror tornaram-se estratégias de controle das multidões.
Mas o desmoronar da República brasileira já tinha um precedente. Nos anos 1930 e 1940 ela foi minada em seus propósitos e traída em seus ideais por profissionais do poder. Sob a batuta de Getulio Vargas, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade – herdados da República francesa – foram substituídos pela disciplina do corpo e do espírito, pelo culto à força e à raça eugênica.
Sob o slogan do “nascimento de uma nova nação” e com o auxílio das Forças Armadas, Vargas instaurou a ditadura colocando fim à nossa breve e turbulenta experiência democrática de 1934-1937, e assim traindo os ideais da Revolução de 1930. O signo da “Ordem e progresso” continuou a ser reinvidicado pelo Estado, à custa da repressão policial, da domesticação da massa operária e do controle do pensamento. O golpe de novembro de 1937 representou o verdadeiro repúdio ao liberalismo político e econômico, consumado com o fechamento do Congresso Nacional, a extinção dos partidos políticos, das eleições e das garantias individuais.
A Constituição de 1937, outorgada pelo próprio Vargas, conferiu plenos poderes ao presidente da República. Assim consagrou-se o ditador. A nova carta constitucional se fez baseada na centralização política, no intervencionismo estatal e contrariando o modelo liberal clássico de organização da sociedade. As liberdades civis foram suspensas, o Parlamento dissolvido, os partidos políticos extintos, nos moldes das experiências europeias recentes. De uma forma geral pairava no ar a ideia de que a “velha democracia liberal” estava em extinção. Apesar de Vargas negar qualquer similaridade com os regimes nazifascistas, a realidade política sustentada pelo Estado Novo afinava-se com os rumos trilhados na Alemanha e na Itália, cujos modelos ideológicos serviam de paradigmas para os intelectuais e dirigentes políticos integrados ao projeto étnico-político que marcou a Era Vargas.
O nacionalismo alemão transformou-se em fonte de inspiração para a construção de um Estado nacional, uniforme e padronizado cultural e politicamente. Esta uniformização implicava na exclusão de grupos estrangeiros estranhos ao projeto de nacionalização e que, de alguma forma, contestassem o regime imposto. Tal política recaiu contra as áreas de colonização europeia, com base nos decretos nacionalistas de 1938, contrariando o ideal de uma sociedade pluralista que abrigasse etnias diversidade. Em relação à imigração, o governo Vargas definiu-se pelo elogio ao homem branco, não semita ou não judeu. O povo foi seduzido por um discurso nacionalista e por mensagens legitimadoras da intolerância. À educação coube a tarefa de reforçá-las a longo prazo.
Após 1937, os sonhos republicanos caíram por terra, fragilizados pelos atos autoritários que obstruíram os caminhos que poderiam levar à soberania popular. O Estado procurou, de todas as formas, identificar e eliminar os signos de “erosão da identidade cultural brasileira”, ou seja, qualquer manifestação de identidade estrangeira ou subversiva.
O “estado de agonia” da República foi resultado da valorização de um Estado forte, intolerante e tutor da sociedade civil. Que defendeu, através de atos e programas legais, a homogeneidade racial e combateu o comunismo – tratado como ideologia “exótica” e assassina.
Já vivemos tempos sombrios, e não queremos que ressurjam. Cabe ao historiador, consciente dos silêncios propositais, desconstruir as versões divulgadas por qualquer Estado autoritário. Como num quebra-cabeça, nem todas as peças se encaixam. Registros comprometedores são escondidos e eliminados. Interessa ao autoritarismo que a história continue mal escrita.
Maria Luiza Tucci Carneiroé coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação do Departmento de História da USP e autora de Cidadão do Mundo: O Brasil diante do Holocausto e dos Judeus Refugiados do Nazifascismo, 1933-1948(Perspectiva, 2011)
Fonte: Tok de História.
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