Jovens de Fernando de Noronha desvendam a história de mobilização popular ocorrida em 1988
Lorenzo Aldé / Fonte - http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/o-outro-lado-da-ilhaEstrangeira na ilha, a jovem estudante de jornalismo, estagiária de um projeto ambiental, não sabia no que estava se metendo ao inaugurar um blog e passar a relatar as mazelas do cotidiano local. No paraíso dos turistas endinheirados, com suas paisagens de tirar o fôlego, ideais para emoldurar as fotos das revistas de celebridades, faltava água para os ilhéus, escorria esgoto na praia, operavam-se esquemas de prostituição infantil. Veiculadas em um site de grande alcance nacional, as notícias começaram a repercutir, e a jornalista aprendeu na prática que liberdade de expressão tem limite: sofreu sanções financeiras – com o cancelamento da isenção de pagamento da (salgada) taxa de permanência na ilha – e foi difamada pelo único jornal existente (obviamente, oficial). Disseram até que havia chamado de prostitutas algumas alunas do único colégio local, onde dava aulas de educação ambiental e artística. Sofreu ameaças das mães. Teve que deixar a ilha às pressas.
Se a trama parece ambientada em uma ditadura caribenha qualquer, não é por acaso. Apesar de integrar um país onde formalmente reina a democracia, Fernando de Noronha é um pequeno feudo à parte do mapa continental, onde o governante não é eleito diretamente. Pouco se conhece sobre a vida e a história dos cerca de 5 mil moradores da ilha, e poucos se interessam que se conheça. Este último grupo acaba de ganhar a adesão de cerca de 20 jovens estudantes, que em dezembro de 2014 lançaram o documentário SOS Noronha. Para tanto, tiveram a orientação da mesma jornalista “convidada a se retirar” da ilha em 2007, Alice Watson Cleto.
O filme vai em busca dos protagonistas de uma histórica mobilização: o levante dos moradores contra a anexação de Fernando de Noronha ao estado de Pernambuco, ocorrida por ocasião da Constituição de 1988. O tema foi detectado por Alice Watson quando voltou à ilha em 2012, em pesquisa de campo para seu mestrado em Turismo pela UnB. “Comecei a entrevistar moradores mais antigos, e vários falavam da mobilização de 88. Mas não havia quase nada na internet ou em livros de história. Comecei a ficar intrigada. A história foi apagada. Como o governo de Pernambuco tomou conta, não era interessante para eles, e deletou”, relembra.
Alice então procurou os jovens do cineclube da Escola Arquipélago e confirmou o sumiço da memória: nenhum deles tinha jamais ouvido falar do caso. Combinaram perguntar sobre o assunto aos seus parentes. No dia seguinte, voltaram de casa com novas informações. “Minha mãe participou”, “Meu pai também estava”. Mas por que não se falava mais disso? Com a curiosidade devidamente despertada, deram início à produção de um documentário, ao estilo aprender-fazendo. A princípio reticentes – “Pra que mexer nessa história? Isso é política” – aqueles pais, tios e avós começaram a tirar suas lembranças do baú. E em pouco tempo os novos noronhenses, entre 13 e 20 anos, descobriram-se herdeiros de um tempo de intensa mobilização política.
Durante mais de dois séculos ocupada por um presídio, e desde 1942 território militar, só em 1987 Fernando de Noronha ganhou seu primeiro administrador civil, e ainda assim indicado pelo presidente José Sarney. Os ventos eram os da abertura política. “Era a primeira vez que a gente começava a dizer como queria que fosse a ilha”, conta, no vídeo, o ex-administrador Domício Cordeiro. “Era tudo em assembleia. Até um terreno, se ele fosse decidido, tinha que ser na assembleia, com todo mundo”, completa Morena, empresária.
Mas nos debates para a nova Constituição surgiu a proposta de entregar a paradisíaca ilha aos cuidados do governo de Pernambuco, na época sob o comando de Miguel Arraes. Contrariando o preceito constitucional de que toda ilha oceânica é território federal, a ideia foi adiante. E os moradores reagiram: dos 1.200 habitantes da época, mais de mil assinaram manifesto contrário à anexação. “A comunidade noronhense se achou traída. A coisa que mais chocou foi esta: veio de cima pra baixo. Isso revoltou e causou insegurança”, relata Morena. Arraes tinha planos de grandes empreendimentos turísticos para a ilha, diziam que pretendia inaugurar até um cassino por lá. Se a jogatina permanece proibida em território nacional, os projetos turísticos em Noronha de fato floresceriam ricamente.
Para arranjar dinheiro e enviar a Brasília seus representantes, os noronhenses se viraram: fizeram festas pagas, bingos e rifas. As crianças ficavam na estrada e pediam contribuição de cada carro que passava. “Eu não sabia distinguir um ascensorista de um deputado, porque tudo usa terno. A gente saiu de uma ilha, onde a roupa era bermuda, short e camiseta, para um lugar onde era tudo engravatado, e as mulheres com aqueles penteados que eu morria de rir… teve esse choque cultural”, lembra a professora Maílde Costa, que integrou o grupo de lobistas improvisados na capital.
A comunidade insular ficou ao telefone, acompanhando a votação. A derrota, por 15 votos, fez todo mundo chorar. E da revolta partiram para a retaliação: picharam a ilha inteira na véspera da primeira visita oficial do governador. Frente a frente com a comitiva das autoridades, alguns manifestantes tentaram partir para a briga. Contidos, restou-lhes chorar mais.
O resultado é o que se conhece: uma ilha protegida por um Parque Nacional Marinho, voltada ao turismo da elite, administrada por indicação do governador. De 2007 a 2014, o administrador foi Romeu Baptista, empresário do ramo turístico. Morava em Recife e visitava Noronha para despachar. Aprovada em janeiro de 2015, nova mudança institucional ameaça centralizar ainda mais o poder: antes subordinada à Secretaria de Ciência e Tecnologia, Fernando de Noronha passa para a guarda direta do gabinete do governador.
Talvez o documentário SOS Noronha represente, para os atuais moradores, um redespertar da atuação cívica. De geração para geração. “Hoje tem que ter uma carteira pra poder entrar numa praia dessas, passar numa roleta. Se passar pelo outro lado, tem uma cerca, você está pior que um animal. A ilha hoje tem um dono”, resume Orlando Souza, presidente da associação dos pescadores. No vídeo ele aparece ao lado do filho, um dos seus jovens autores. “A ilha precisa primeiramente que o representante dela seja escolhido pelo povo, depois que ele seja fixo na ilha, e depois cuidar de coisas como infraestrutura”, reforça Amanda Cristina Costa, 16 anos, outra aprendiz de documentarista. Filha e sobrinha de antigos manifestantes, ela pretende continuar, com seu grupo, agitando a consciência dos ilhéus. “A ideia é essa, não parar”.
Assista ao filme SOS Noronha pelo link: http://qr.net/sosnoronha.
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