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Por Mauro Argachoff
Recentemente as redes sociais foram tomadas de manifestações referentes a um episódio envolvendo conhecido ator de televisão e um casal nas dependências de um restaurante. Conforme noticiado, referido casal, inconformado com a presença do ator, devido a posicionamento político partidário deste, passou a agredi-lo verbalmente com palavras de baixo calão. Instalado verdadeiro bate-boca, veiculado inclusive através de vídeo gravado provavelmente por algum outro cliente do local, o até então “insultado”, desfere uma cusparada contra a mulher e outra contra o homem que lhe xingavam.
Em que pese os posicionamentos favoráveis e contrários a ambos os lados, passemos a uma análise puramente técnico jurídica sobre o ocorrido. Levaremos em consideração, contudo, os fatos que chegaram ao conhecimento público, sem sabermos se o desenrolar dos mesmos deram-se exatamente como veiculado, mas partindo da premissa de que sim, para único efeito do desenvolvimento do estudo.
Dispõe o artigo 140 do Código Penal:
Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:Pena – detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.
Trata-se do crime de injúria, cujo significado é desrespeitar, ofender, insultar. Fere-se com a conduta a chamada honra subjetiva da pessoa, entendida essa como sendo o conceito positivo que a pessoa faz de si mesma; sua autoestima.
Quanto ao termo dignidade, infere-se como respeitabilidade. Já decoro refere-se a compostura.
Dando sequência a leitura do artigo 140 do Código Penal, iremos nos deparar, no seu parágrafo primeiro, com verdadeira causa de extinção da punibilidade, ou seja, nas palavras de NUCCI (2015. P. 798): “quando o Estado, diante de circunstâncias especiais, crê não ser cabível punir o agente”.
As causas previstas no tipo penal são:
I- quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria;II – no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.
As duas hipóteses parecem se amoldar perfeitamente ao caso concreto. Havendo comprovação de que o casal sentado na mesa vizinha, sem qualquer relação com o ator, iniciou as ofensas sem serem instados a tal, de forma gratuita, pelo simples fato de não aderirem às idéias daquele, estariam de forma reprovável provocando diretamente a injúria. De igual maneira, o “injuriado” ator estaria autorizado por lei a retorquir imediatamente a ofensa sofrida, ofendendo aos seus ofensores, em uma espécie de legitima defesa de sua honra maculada.
Cezar Roberto BITENCOURT (2007. P. 560-561), ao contrário, atribui à retorsão imediata natureza jurídica de exercício regular de um direito, traçando um interessante paralelo com o desforço imediato previsto no Código Civil.
Contudo, um ponto importantíssimo deve ser observado. O analisado artigo 140 do Código Penal, em seu parágrafo segundo, assim determina: “Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que por sua natureza ou meio empregado, se considerem aviltantes: Pena- detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa, além da pena correspondente à violência. Recebe tal parágrafo a denominação de Injúria Real.
A partir de tal momento é que os fatos ganharam maior alcance. O que até então não passava de um xingamento retorquido com outro xingamento adquire maior expressão. Não estaremos mais no campo das palavras apenas, mas sim de conduta corporal, de contato físico, agressivo, que poderá lesionar ou não, nesta última hipótese correspondendo à contravenção de vias de fato.
Parece evidente que uma cusparada tem o condão de humilhar, ainda mais feita em público (situação até desnecessária para a configuração do delito que fere a honra subjetiva, mas que não deixa de lhe emprestar contorno de maior humilhação). Inobstante tal fato, é pacifico na doutrina e jurisprudência que a contravenção de vias de fato fica absorvida pela injúria real. O questionamento a se fazer então seria: as causas de extinção de punibilidade previstas no parágrafo primeiro são extensivas às hipóteses de injúria real previstas no parágrafo segundo do tipo? Entendemos que sim.
O crime de injúria tem como elemento subjetivo especifico a intenção de ofender. Nas palavras de NUCCI (2015. P. 797): “Em discussões acaloradas, é comum que os participantes profiram injúrias a esmo, sem controle e com intenção de desabafar”. No caso em tela, o casal, ao proferir as ofensas, agia de forma livre e desprovida de tal emoção, pois ao que consta, iniciaram a agressão de forma espontânea, sem serem provocados para tal. O mesmo já não se pode dizer de quem as retorquiu, pois ainda que entendamos absolutamente condenável sua atitude do ponto de vista ético e das relações interpessoais, agiu imbuído pelo calor do acontecimento.
A título de comento, merece referência a teoria de ROXIN (apud SANTOS, 2010, p. 327) sobre os chamados “excessos inconscientes ou conscientes”, onde o agente estaria determinado por afeto astênico de perturbação em conjunto com afeto estênico de ira ou ódio. Tais excessos seriam impuníveis.
Não chegamos a tal ponto. Imaginemos que ao invés de uma cusparada tivesse desferido um empurrão contra um dos seus agressores fazendo com que o mesmo caísse sentado ao solo, sem contudo lhe ocasionar nenhuma lesão. Juridicamente tal situação seria considerada tão vias de fato quanto a cuspida. O mesmo já não poderíamos dizer se tivesse desferido um soco contra um ou ambos os agressores, em tal hipótese deveria responder pelas lesões corporais que lhes causasse, mas a título de excesso.
Em conclusão, entendemos que o instituto da retorsão imediata no delito de injúria é explorado superficialmente pela doutrina, trazendo dúvidas quanto a sua aplicação em casos de maior complexidade, como o que se apresenta neste breve artigo. De nossa parte, não nos furtamos em apresentar posicionamento sobre a possibilidade da extensão da exclusão da punibilidade do delito de injúria, através da retorsão imediata, mesmo na hipótese da conduta praticada através da contravenção de vias de fato, tendo em vista, inclusive, doutrina e jurisprudência reinantes no sentido de que estas são absorvidas pelo crime contra a honra.
REFERÊNCIAS
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 15. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral – 4. Ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010.
Mauro Argachoff – Mestre em Direito Penal pela USP. Professor de Direito. Delegado de Polícia (SP).
Fonte: Canal Ciências Criminais
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