Quem foi
o homem cujo nascimento hoje celebramos? Desde o século XIX, o estudo crítico
do Novo Testamento e do primeiro cristianismo tem tentado reconstituir quem
terá sido o «Jesus histórico». Em que ponto estamos desta investigação? Vou
dar-vos uma proposta de biografia do Jesus real.
Jesus
nasceu em Nazaré, no fase final do reinado de Herodes, o Grande (rei que morreu
em 4 a.C.). Era filho de um construtor chamado José e da sua mulher, Maria. Era
o mais velho de vários irmãos e irmãs. Em casa, falava-se aramaico; mas Jesus
beneficiou do facto de Nazaré estar perto de cidades gregas, como Séforis, cuja
distância de Nazaré corresponde à que medeia, na nossa cidade do Porto, entre o
Estádio do Dragão e a rotunda da Boavista. Em toda a volta de Nazaré, falava-se
grego. De Gádara, uma das dez cidades gregas da zona, era originário o maior
poeta grego do século I a.C.,
Meleagro.
A helénica Séforis tinha um teatro; e Jesus sabia o que era o conceito grego de
«actor», pois usou a palavra grega «hipócrita» numa acepção sem qualquer
equivalente no aramaico falado em casa ou no hebraico da Escritura.
Jesus
recebeu uma educação judaica baseada nessa Escritura e foi certamente o rapaz
intelectualmente sobredotado de que vemos reflexo em Lucas 2:47. As pessoas não
lhe chamaram «mestre» à toa.
Nos anos
20 do século I, Jesus contactou com o movimento de João Baptista, que apelava
aos israelitas que «mudassem de mentalidade» e que, por meio do baptismo no rio
Jordão, obtivessem o cadastro limpo perante Deus que, oficialmente, só podia
ser obtido por meio do sacrifício de animais no templo. João Baptista atraiu a
má vontade da elite sacerdotal de Jerusalém; o mesmo aconteceria com Jesus.
Jesus
tomou a decisão de ser baptizado por João; mas, depois de João ser preso,
passou a ter uma actuação independente. A mensagem de Jesus, de que o «reino»
divino estava próximo, era coincidente com a de João, mas Jesus sublinhou acima
de tudo a tolerância e compadecimento divinos e a ideia de que nenhum de nós
perdeu em definitivo a oportunidade de se «salvar». No cerne da mensagem de
Jesus, sempre, o amor: «amai os vossos inimigos, fazei bem a quem vos odeia».
Com esta
mensagem, Jesus levou uma vida de pregador peripatético na Palestina, falando
sobretudo em pequenas localidades na parte norte do lago da Galileia. Escolheu
como destinatários homens simples – pescadores, agricultores –, assim como
pobres, doentes, e excluídos da sociedade, como prostitutas, etc. De forma
talvez surpreendente para a época, não excluiu dos seus potenciais destinatários
pessoas do sexo feminino, entre as quais temos de contar como a mais importante
Maria de Magdala, conhecida como Maria Madalena (que não era uma prostituta –
nada confirma essa ideia nos textos que nos chegaram).
A família
de Jesus, nesta fase, achou que ele era um louco, embora mais tarde se tenha
aproximado da sua mensagem; em especial, o seu irmão Tiago assumiu um papel
relevante depois da sua morte (Tiago acabou por ser morto também).
A imagem
de Deus que Jesus transmitiu deu vida nova a dois entendimentos antigos (e
presentes na Escritura judaica): Deus como Rei e Deus como Pai. No entanto,
«rei» foi somente um conceito implícito na boca de Jesus, já que o conceito que
lhe interessou foi «reino».
Ao
encantamento das suas palavras não era alheia a força poética das muitas
parábolas que lhe são atribuídas. Para o encantamento da sua presença, muito
contribuiu a sua fama de milagreiro carismático. Terá Jesus multiplicado pães,
transformado água em vinho, caminhado sobre a água, curado doentes e expulsado
«demónios»? Compreende-se que a força da sua personalidade tenha levado a que
fossem projectados nele tais poderes.
Embora
respeitando a Lei judaica, Jesus mostrou uma atitude bem liberal e tolerante
relativamente a muitos aspectos dessa Lei. «O sábado foi feito para o homem, e
não o homem para o sábado». Essa atitude valeu-lhe a má vontade da elite
sacerdotal, que procurou entrar em discussão com ele e enredá-lo em
contradições e blasfémias. A forma como Jesus atacou directamente o Templo como
antro de materialismo, quando finalmente levou a sua mensagem para Jerusalém,
determinou o seu fim.
Antes
desse fim, ele estabeleceu – como substituição dos ritos sacrificiais judaicos
no templo – um rito novo: uma refeição de amor fraterno, uma partilha de pão e
de vinho, para ser continuamente feita em memória dele. Não quis morrer sem
antes lavar os pés dos seus amigos mais íntimos. «Os últimos serão os
primeiros».
No mundo
romano, fazia parte do castigo atroz da crucificação os crucificados não serem
enterrados: eram deixados na cruz depois de mortos, como pasto para aves de
rapina. É-nos transmitido que, no caso de Jesus, isso não aconteceu, graças à
intercessão e poder económico de José de Arimateia. Será verdade? Não sabemos.
O relato
mais antigo (Marcos) do que aconteceu a seguir à morte de Jesus diz-nos que
Maria Madalena e mais duas mulheres chegaram ao túmulo e lá encontraram um
jovem vestido de branco que lhe disse que «Jesus, o Nazareno» ressuscitara
(vincando, nas suas palavras, o facto de ele ser originário de Nazaré). As
mulheres fugiram, espavoridas, «e nada disseram a ninguém: tinham medo, pois».
Outras
tradições desenvolveram o tópico das aparições de Jesus «post mortem». Um judeu
helenizado chamado Paulo (que nunca conheceu Jesus) registou que Jesus teria
aparecido a 500 pessoas. Será verdade?
A
resposta a essa pergunta não compete ao estudo académico do Novo Testamento,
mas sim a outro âmbito, que é a fé. Todos somos livres de acreditar – ou não.
Seja como
for, celebramos hoje o nascimento de alguém que marcou a história da humanidade
de forma indelével. O que ele disse e fez continua válido hoje – por isso eu
tenho uma admiração infinita por Jesus. O que fizeram dele – nomeadamente os
muitos cristianismos fundados em seu nome, com os seus emaranhados de ficções
teológicas – será outra coisa. Maus cristãos houve sempre. Mais importante é
que sempre houve, e sempre haverá, bons cristãos.
Bom
Natal.
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