EM UMA ENTREVISTA CONCEDIDA EM
1984 AOS JORNALISTAS MARCO AURÉLIO DE SÁ, OSAIR VASCONCELOS E TICIANO
DUARTE, O DR. VULPIANO LEMBROUA SUA LONGA MILITÂNCIA E O FAMOSO CASO EM
QUE FOI OBRIGADO A FUGIR DE UMA MULTIDÃO EM JUAZEIRO DO NORTE, QUE
ACREDITAVA QUE ELE E OUTROS COMUNISTAS ESTAVAM NA CIDADE PARA ROUBAR OS
OSSOS DO PADRE CÍCERO.
Vulpiano Cavalcanti, cearense, 74 anos,
médico ginecologista e obstetra, é militante do Partido Comunista
Brasileiro desde os anos 20, quando se empolgou com a “Coluna Prestes” e
começou a conviver nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de
Janeiro com os precursores do comunismo no Brasil. Nesses longos anos, à
exceção de um curto período entre 1945 e 1946, o seu exercício político
tem sido praticado sempre na clandestinidade. E por conta de suas
ideias foi preso inúmeras vezes e até torturado. Neste depoimento, ele
narra toda a sua trajetória política, principalmente no Rio Grande do
Norte, para onde veio há mais de 30 anos, inicialmente para Areia
Branca, Mossoró e Macau, e depois para Natal. Detalhes inéditos sobre a
atuação do PC, revelação de sofrimento e de torturas físicas que
enfrentou nos tempos de maior repressão ao comunismo, nomes de pessoas
que perderam a vida em nome da causa em que acreditavam, e até nomes de
alguns torturadores que agiram no Rio Grande do Norte são relembrados
aqui por Vulpiano, um septuagenário que não se julga velho, mas apenas
“usado e maltratado”. Confiante no processo de abertura democrática do
país, nas eleições diretas para presidente da República e na legalização
do PC, ele – que faz parte do Comitê dos Dirigentes Comunistas – espera
que dentro em breve o partido possa levar sua mensagem às massas sem
que os seus militantes estejam expostos às represálias e à violência.
MARCOS — Como e quando o sr. decidiu-se a ingressar no Partido Comunista?
VULPIANO — Isto é uma questão de gênese.
Meu avô. Melo César, por parte de minha mãe, teve um irmão que morreu na
revolução pernambucana, esquartejado. Meu avô por parte de pai foi
nomeado comendador do Império, mas era um republicano. De maneira que
ele esteve cotado para barão, mas morreu republicano. Ele era um sujeito
liberal. Houve uma seca no Ceará e ele construiu um açude lá no
Boqueirão de Arara, ao qual os pobres tinham livre acesso a água, que
era uma coisa difícil. Por isso que eu digo: sempre fui revolucionário
por uma questão de gênese, pois sou descendente de revolucionários.
OSAIR — Mas houve influências que o conduziram ao Comunismo? Os livros, os amigos. . .
VULPIANO — A principio, eu era
“prestista”. E quem não era naquela época? Isso foi no tempo da “Coluna
Prestes”, aí por 1922. Então, quando estudante de Medicina, eu fui da
Aliança Nacional Libertadora, onde fiz grandes amigos e conheci grandes
figuras. Na primeira vez que fui preso, tive notícia de que Carlos
Lacerda que pertencia à “Juventude comunista” da época, chegou a chorar
porque havia publicado um artigo numa revista onde ele mencionava
praticamente todos os comunistas daquela época….
MARCOS — E quando foi a sua adesão?
VULPIANO — Eu passei a ler livros
comunistas. Por exemplo: “O ABC do Comunismo”, de Bukarin Isso me
indicou a direção. A convivência também me ajudou. Comecei a estudar
Medicina na Bahia, depois me transferi para o Rio. Fiz amizade com
Isnard Teixeira, com Simões de Menezes, e outros, e fui aceitando cada
vez mais as ideias do Comunismo. Foi por esse tempo também que Carlos
Prestes se decidiu pelo Partido. Desta forma, posso dizer que sou um
militante da velha guarda.
TICIANO — O Sr. tem quantos anos de militância?
VULPIANO — Desde 1922, praticamente, até hoje. E nesse tempo todo, se o Partido passou dois anos na legalidade, foi muito!
MARCOS — Então, o Sr. formado em Medicina, militante do PC, como veio parar no Rio Grande da Norte?
VULPIANO — Eu me formei em 1929 e era um
dos mais novos estudantes de Medicina, pois entrei na faculdade com
apenas 17 anos. Concluído o curso, eu segui para Fortaleza, pois sou
cearense. Lá procurei entrar para o Partido Comunista quando ele entrou
para a legalidade, mais ou menos pelo ano de 1946. A partir daí, passei a
ser membro de um partido legalizado. Depois, veio o problema do
fechamento. O Presidente Dutra resolveu fazer uma tragédia por causa da
prisão de um bêbado lá em Moscou. O nosso embaixador na Rússia, que era
um beberrão, envolveu-se num incidente por lá e terminou sendo preso por
desordem. “O Jornal”, de Chateaubriand, publicou então a fotografia do
embaixador deitado no chão, apanhando dos cossacos. Isto serviu de
pretexto para o nosso país cortar relações com Moscou. Mesmo na
ilegalidade, continuei ainda no Partido Comunista. Foi nessa
clandestinidade que eu terminei vindo para o Rio Grande do Norte, porque
me perguntaram onde é que eu gostaria de servir. Como existia um
parente meu — Nestor Falcão, tio do ex-ministro Armando Falcão — que me
sugeriu que em Areia Branca havia uma oportunidade para mim, eu me
instalei lá, onde venci como médico com uma facilidade incrível. Como
Mossoró fica próximo a Areia Branca, eu ia muito até lá. E numa dessas
vezes fui procurado por um dos médicos do hospital da cidade que me
pediu ajuda. Ele me disse: “Colega, você é do Ceará, venha me dar aqui
uma explicação. Estou com uma cliente que está perdendo muito sangue e
eu não sei se o seu caso é um aborto ou se é uma gravidez”. Depois de
ver o caso, eu disse que a mulher tinha de ser operada de urgência. E
ele ponderou: “Mas não tem quem faca esta operação aqui!” Aí olhei para
ele e respondi: “Eu faço”. “Mas toda cesariana que se faz aqui, morre
mãe e filho” — afirmou o colega. Eu então disse que gostaria de tentar. E
deu tudo certo. Com isso, correu logo o boato de que tinha chegado um
médico em Mossoró que operava cesariana e não morria nem mãe nem filho. .
. Assim foi a minha chegada em Mossoró! Porém quem fez mais propaganda
minha mesmo foi o bispo Dom João Batista Porto Carrero Costa. . . Ele
fez um sermão na igreja de Mossoró em que avisava às mães cristãs da
cidade sobre a minha presença. Dizia ele: “Acaba de chegar a essa cidade
um médico hábil, inteligente e culto, e por isto mesmo escolhido a dedo
por Moscou para pregar o comunismo no Rio Grande do Norte”! Isto me deu
um cartaz imenso e a minha clinica disparou. Eu já não dava vencimento à
procura. Eu atendia muito em Areia Branca, mas operava em Mossoró, pois
em Areia Branca não havia hospital. E interessante era o seguinte: como
um automóvel era muito caro, ficava mais barato viajar de avião. Nessa
época. Vieira, que era um ótimo piloto lá em Mossoró, era quem me
transportava para Açu, Macau e diferentes cidades daquela área, onde eu
atendia. Então, correu o boato de que “tinha chegado um médico, Dr.
Vulpiano, que era enviado por Deus e que vinha voando atender as
doentes”. E é verdade que eu ia mesmo voando, mas de teco-teco.
TICIANQ — E quando se deu a sua primeira prisão?
VULPIANO — Foi mais ou menos em 1952,
quando eu me encontrava em Areia Branca. Chegando à cidade, fui me
hospedar numa casa do Sindicato dos Salineiros. Então, por perversidade
ou não, picharam na frente do prédio a frase “Viva o Partido Comunista”.
Com isto, me botaram para fora do prédio. Ai houve um gesto muito
bacana: os salineiros se reuniram e disseram: “Botaram o Dr. Vulpiano
para fora. . . Pois a agora ele vai ser o nosso médico, o médico das
nossas famílias”. E me contrataram me pagando um salário muito grande!
Eu me senti reabilitado pela solidariedade. E eu atendia a todo mundo,
até de graça.
MARCOS — E aí veio a prisão?. . .
VULPIANO — Eu estava em Macau… Já era o
“assombro” do Rio Grande do Norte, com “a foice e o martelo na testa”,
quando prepararam a minha prisão. Havia um sargentinho por lá que bebia
muito… Ele reuniu o Tiro de Guerra e mandou me cercar, prendendo-me. Eu
estava nessa ocasião com um plano de trabalho do Partido, onde constava
exatamente uma greve dos trabalhadores das salinas. Mas eu escrevia tudo
com uma letra muito miúda, que não se lia facilmente. Se letra de
médico é ruim, vocês imaginem a gente querendo fazê-la ainda pior!
Pegaram meus documentos. Ai o sargento disse “Depois eu vejo. . .” e
colocou-os de lado. No meio deles, estava o plano da greve. E eu fiquei
pensando como tirar aquilo das mãos dele. Aí fixei os olhos em algum
objeto do outro lado e ele acompanhou meu olhar. Enquanto isto eu passei
a mão no papel e botei-o na boca. E foi aí que eu vi como é difícil a
gente engolir papel. Lutei mas não consegui engolir. Depois, fui ao
banheiro e o cuspi lá, dando descarga. Bom, essa foi a minha prisão de
estreia. Eu me encontrava na companhia de Luiz Maranhão e mais dois
outros companheiros de Partido.
TICIANO — Passou quanto tempo preso?
VULPIANO — Fiquei preso no Tiro de Guerra
em Macau e depois me mandaram para Natal, com um pelotão de soldados me
escoltando. Nesse momento eu disse a Luiz Maranhão: “Não estou gostando
disto. É bem possível que sejamos mortos e digam depois que tentamos
fugir”. Mas viemos sem problemas, a ponto de numa parada a meio do
caminho, em João Câmara, eu informar a uma senhora que estava seguindo
preso para Natal e ela dizer que não acreditava. Aí me voltei para os
oficiais e perguntei “Vou ou não preso para Natal”? “Vai”. Aí a mulher
acreditou e disse: “Ah, o Sr. é que é o Dr. Vulpiano? Já ouvi falar
muito do seu nome e queria que o Sr. examinasse a minha filha que vai
ser submetida a uma operação de fibroma. “Eu tive permissão de ir fazer o
exame. Fui e vi que em vez de um fibroma, era um “filhoma”. . . E eu
disse à mãe que não deixasse operar a moça, pois em três ou quatro meses
o “fibroma” sairia naturalmente. . . (Risos). Então, vim para Nata! e
não me lembro que tempo eu passei na prisão. Sei que estive preso aqui
em Natal várias vezes. Numa das vezes um tenente da Aeronáutica — que
depois foi servir no Canadá — criou um sistema de celas que tinham
apenas uns quatro palmos de largura por sete de altura. E eu fui
colocado numa dessas, nu, sem agasalho, com dois alto-falantes desses de
rua, voltados para dentro da cela. Esses autofalantes ficavam a
irradiar músicas.Não sei se vocês se lembram de uma música que imitava
toda a bicharada? Que imitava o pato, o porco, o boi? Aquilo não tinha
quem aguentasse ouvir três vezes, tão chata era a música. E eu tinha de
ouvir aquilo dia e noite, a todo volume. A cela era de cimento armado,
sem grades, e para o sujeito não morrer sufocado havia uma porta de
ferro com uns furinhos que não dava para passar um dedo. Era um negócio
chatérrimo. O Tenente Bravo da Câmara chegou algumas vezes a urinar por
um desses buracos da porta, caindo a urina sobre meu rosto. Em me lembro
de que eles aplicavam vários tipos de tortura. Um deles era o rádio
relógio. Hoje, o rádio relógio é muito diferente: tem notícias, tem
músicas. Naquele tempo era só aquele barulho: tum, rum, rum, tum .
Tantos minutos para seis horas… tum, tum, tum. Passa um minuto de seis
horas. Tum, tum, tum . . . Aquilo era de lascar! O único momento de
alívio que eu tinha ali em Parnamirim era quando eles chamavam a gente
para o banho. Aquela aguazinha fria me fazia sentir retemperado para
começar de novo. . . Eram proibidas as visitas. Eu ficava sem poder ver
até a minha mulher. . . Havia do lado de fora um pássaro que repetia as
primeiras notas da “Sonata Aurora” de Beethoven. Eu que sempre apreciei a
música erudita, me deliciava com o canto da ave, mas ao mesmo tempo me
revoltava mais com a prisão, vendo o pássaro em liberdade.
MARCOS — Mas o que ocasionou as suas prisões? Havia algum movimento a ser deflagrado?
VULPIANO — Nunca houve movimento
preparado aqui no Rio Grande do Norte. Se houve movimento aqui,
preparado peles comunistas, foi no tempo de Getúlio, em 1935. O meu
trabalho era apenas o de arregimentar. Eu, por exemplo, saía à noite com
outro companheiro, para visitar algumas pessoas. Havia uma vigilância
tremenda! Eu arranjei uma cabocla, filha do dono de uma casa para onde a
gente ia, e saí de braço com ela, tentando despistar. Mas, quando vi,
estava diante de um carro da Aeronáutica, do qual desceram os soldados
para me prenderem. 0 interessante nessa ocasião foi que a Aeronáutica
deu uma nota pelo jornal “tranquilizando as famílias
norte-rio-grandenses” e dizendo que a Aeronáutica estava preparada para
repelir qualquer movimento Comunista. Só que esse movimento nunca houve.
MARCOS — Havia que tipos de torturas físicas?
VULPIANO — Vejam com os seus próprios
olhos. . . Esta grande cicatriz no meu braço esquerdo foi causada por
pontas de cigarro. A água fervendo, chega a 100 graus. A chama de um
cigarro vai a 600 graus. Enquanto eu era interrogado, na presença do
major Hipólito da Costa, do capitão Souza Mendes e do tarado sargento
Correia, eles queriam que eu dissesse os nomes da outros membros do
Partido. E, diante do meu silêncio, eles encostavam o cigarro no meu
braço e pelo corpo inteiro e gritavam “Responda, seu filho da… ” Como eu
não nasci para ser dedo-duro, eu não falava. No auge das torturas, eu
me lembrava dos nomes de alguns que já estavam presos e os citava, mas
nunca denunciei ninguém, é claro! Outra tortura que eu recebi foi quando
me pegaram uma vez no consultório, quando eu já morava em Natal e tinha
o meu consultório numa sala ali na Avenida Rio Branco, no primeiro
andar da Galeria Olímpio. Eu estava examinando uma senhora, quando chega
o major Hipólito. Naquele tempo, a Aeronáutica usava uma farda caqui e
eu pensei que fosse um- “mata mosquito”, um daqueles guardas da malária.
Quando vi o sujeito empurrando a porta do consultório, eu disse: “Não é
possível! O Sr. vai entrar aqui desta maneira?” Ele me deu voz de
prisão e perguntou se eu ia reagir. Eu respondi que não e que estava ali
realizando um atendimento médico a uma paciente. A mulher ficou lá
tendo um ataque, fazendo o maior alarde. Então, o major Hipólito me
arrastou escada abaixo e me levou preso em um jipe. Fui posto naquela
mesma cela que eu já descrevi. Eu fui na ilusão de que não demoraria
muito a ser liberado. Levei a minha identidade de oficial da reserva,
joguei em cima da mesa com toda elegância, e o filho da mãe só fez olhar
para mim, rasgar o documento e atirar na minha cara. Aí eu perdi
qualquer ilusão. Essa prisão, as torturas, além dos alto-falantes, tinha
uma sessão noturna de charanga, quando vinham aquelas pessoas com
tambores bater nas portas das celas, para chacoalhar, acabar com os meus
nervos. Mas não conseguiram não.
MARCOS — Quanto tempo o Senhor esteve preso?
VULPIANO — Eu sofri quatro prisões. A
última, em 1964, me durou dois anos e dois meses. É preciso que vocês
vejam o seguinte: pela legislação da época, eles só tinham direito de me
prender pelo prazo de 60 dias, que era o período de averiguações. Mas
isto foi esquecido! Depois de um ano e um mês, eu ouvi um boato de que
ia sersolto. A empregada da minha casa ia me levar almoço no quartel e
então mandei dizer à minha mulher que havia o boato da minha soltura,
embora eu ainda não estivesse acreditando. São coisas que eu nunca
consegui compreender. . . Eu tenho impressão de que um juiz, naquela
época, queria me libertar. Eles não deixaram. Então, resolveram me botar
num avião e me levaram para Pernambuco. Passei lá dois dias, fui muito
bem tratado, bem alimentado e tive condições de cortar minhas unhas,
fazer minha barba. Voltei de novo para cá, novinho.
TICIANO — Durante esse período o Senhor voltou a ser torturado?
VULPIANO — Não. Não digo que tenham me tratado bem, mas me trataram com respeito.
TICIANO — Mas o Senhor voltou ainda a ser preso outras vexes, não foi?
VULPIANO — Sim, a Polícia Federal. Sofri
ainda duas ou três prisões pela Polícia Federal, mas não fui mais
torturado. Fui bem tratado. Não sei se é porque eu sou maçon. Eu fiz os
sinais maçônicos de socorro, que a gente faz sempre, e não me trataram
mal. Pelo contrário!
OSAIR — Ao longo da sua trajetória
profissional e política, o Senhor sofreu alguma discriminação da
sociedade por ter uma ideologia diferente?
VULPIANO — Não. Jamais notei esse tipo de discriminação.
OSAIR — Embora o Senhor seja um comunista, nós estamos vendo aqui na sua biblioteca um exemplar da Bíblia.
VULPIANO — Esta Bíblia pertence à minha
filha. Ê um dos maiores livros da humanidade. É um livro muito
interessante. Se todo mundo lesse a Bíblia, a humanidade seria melhor,
mas é um livro muito interessante.
TICIANO — Qual é a imagem que hoje você faz de Carlos Prestes?
VULPIANO — Eu já disse uma vez que tinha
uma verdadeira adoração pelo “Cavaleiro da Esperança”. Eu tenho na minha
biblioteca um livro de Prestes, que me foi oferecido por ele. Mas eu
não gostei do livro, que é um negócio muito pessoal. O pessoal da
direção do Partido chamou várias vezes Prestes para fazer crítica,
autocrítica, e ele sempre recusou. Eu percebia que estava havendo alguma
coisa, mas não podia imaginar que ia chegar à profundidade que chegou.
Acabaram afastando, eu não diria expulsando Prestes do Partido. Ele
continuou como um patrimônio histórico e não era possível expulsar um
cara daquele, como os jornais geralmente afirmam. Giocondo Dias assumiu a
secretario geral do Partido. Um amigo meu, Dr. Sarinho, uma vez me
perguntou: “Com quem você está? Com Giocondo ou com Prestes?” Eu
respondi: “Continuo com o Partido, Sarinho”.
TICIANO — E sua impressão de Giocondo?
VULPIANO — Eu conversei muito com Giocondo
Dias, inclusive sobre um episódio que se comenta aqui no Rio Grande do
Norte que teria ocorrido logo depois da revolução de 35, quando ele era
cabo e liderou o movimento em Natal. Dizem que, depois da revolução, ele
refugiou-se em Lages e lá teria tentado conquistar a mulher de um
fazendeiro que o escondia. Ele nega o assunto completamente. Diz ele que
naquele tempo tinha a ilusão da pureza do Partido. A mulher insistia
para ter relações com ele. Com raiva da sua resistência, a mulher foi
dizer ao marido que ele estava tentando conquistá-la. A coisa foi mais
ou menos assim.
MARCOS — Por que o Partido Comunista nunca conseguiu um apoio popular mais amplo no Brasil?
VULPIANO — Em primeiro lugar, ainda não
nos deram oportunidade de mobilização, não é? Se o Partido passou dois
anos na legalidade, passou muito! E nesse curto espaço de tempo, Carlos
Prestes se elegeu senador com 600 mil votos! Para fazer um proselitismo
como nós desejaríamos, o tempo foi muito curto. Eu não creio que o
Partido, apesar dos erros que tem — incontestavelmente tem e são sérios —
não tenha capacidade de atrair o povo. Entre os maiores erros eu cito,
por exemplo: o Partido Comunista, no chamado “manifesto de agosto”,
preconizou o que nós chamávamos de preparação para a guerrilha, na
esperança de que aqui no Brasil nós devíamos fazer como na China. Isto,
mas ganhou em Natal. Natal ficou até conhecida com o “moscouzinho”.
MARCOS — Mas o que eu dizia é o seguinte; a
nível nacional, talvez o PC não tenha influído na eleição de ninguém,
mas a nível estadual os comunistas já deram valiosas contribuições na
eleição de diversos governadores. Aqui mesmo no Rio Grande do Norte nós
sabemos que em 1960, Aluízio contou com a simpatia dos comunistas.
VULPIANO — Um dia desses, até Ticiano
escreveu uma história interessante, sobre o relacionamento de Aluízio
com os comunistas. Quando eu estava preso em 1964, quiseram que eu
informasse quanto Aluízio tinha dado ao Partido Comunista , e eu disse :
“Ele até prometeu dar algum a contribuição, mas dizem que ele não gosta
muito d e cumprir seus compromissos” .
MARCOS — O Senhor poderia relatar algo mais sobre sua militância comunista?
VULPIANO — Vou contar alguns episódios da
época da legalidade. Uma vez eu saí de Fortaleza para o interior do
Crato, de Juazeiro. Ia com Jeová Mota, Luiz Mendes e outro s
companheiros. Estávamos tomando café num a pensão lá em Juazeiro quando
entrou um matuto e cravou o punhal na mesa, declarando: “Quem for homem,
diga que é comunista! “Quem é que ia ter coragem de dizer que era”? Nós
íamos fazer um comício na cidade e mandamos distribuir uns panfletos. 0
padre então reuniu as “Filhas de Maria” dizendo-lhes que os comunistas
iam roubar os ossos do Padre Cícero para mandá-los para Moscou. E
insuflou-as contra nós. Nós estávamos na casa de um camarada que dizia
ter muitos votos, mas terminamos vendo que ele só tinha conversa. E
vimos aquela massa avançando em nossa direção. A sorte é que a casa
tinha fundos para outra rua e nós tivemos tempo de correr. A massa
ignara nos perseguia, entrando de casa em casa, revistando tudo ,
abrindo guarda-roupas . Fomos salvos por um maçon que despistou o
pessoal, indicando que nós tínhamos fugido numa direção oposta à que nós
realmente seguimos.
MARCO S — Com o Senhor pessoalmente está
vendo essa luta da sociedade pelas liberdades, pela eleição democrática,
por uma nova constituição, pelas diretas? Isto tudo pode acabar num
novo fechamento do regime, ou a gente tende mesmo a encontrar uma saída
democrática para o país?
VULPIANO — Incontestavelmente, o
presidente é presidente só porque está cercado por alguns que o forçam a
fazer certas coisas. Vejam por exemplo a saída do ministro Maximiano.
Ele pediu demissão. Você s deve m ter percebido — e eu vi aqui pela
televisão — a solidariedade que recebeu da própria Marinha. Quinhentos
oficiais de alta patente foram recebê-lo no aeroporto. Não houve
discurso, houve nada. Mas só a presença era como se eles estivessem
dizendo “conte conosco”.
MARCOS — E a emenda que o governo deve estar mandando ao Congresso, propondo eleição direta para presidente só e m 1990?
VULPIANO — Eu vejo isto como uma coisa
feita para atender a Figueiredo, mas não creio que isto aconteça não.
Diante da campanha do país inteiro pelas eleições diretas-já , eles vão
ter muita dificuldade de impor essa solução.
MARCOS — O Senhor acredita que saia a curto prazo a legalização do Partido Comunista no Brasil?
VULPIANO — Não só acredito como afirmo que
não há democracia sem o funcionamento do Partido Comunista. No s
Estados Unidos existe o Partido Comunista. Embora seja considerada uma
entidade estrangeira, mas está lá! Vai haver a legalização no Brasil. É o
povo que quer. Podem surgir ainda muitas dificuldades, mas essa luta
será vitoriosa.
TICIANO — Cite uma figura importante do
Comunismo no Rio Grande, do Norte, uma figura de sua admiração, a quem
você atribua importância na luta pelos ideais comunistas no Rio Grande
do Norte.
VULPIAN O — H á quem diga que o Rio Grande
do Norte teve dois mártires : Frei Miguelinho e Luiz Maranhão, sendo
que este último morreu pela causa socialista.
MARCOS — O Senhor poderia enumerar alguns
membros do Partido Comunista no Rio Grande do Norte que perderam a vida a
o longo dessas lutas na clandestinidade?
VULPIANO — Daqui morreu bastante gente.
Cito, por exemplo, aquele guerrilheiro macauense Migue l Moreira. Num
livro sobre a Intentona Comunista, João Medeiros Filho conta como morreu
Miguel Moreira. Ele convidou um companheiro para acompanhá-lo num
assalto que ia fazer — assalto politico! — e o companheiro o seguiu,
indo sempre atrás. Quando viu que ele estava a uma distância segura,
matou- o pelas costas com um tiro de revólver. Tratava-se de um elemento
infiltrado. Agora, dizer quem são os outros que perderam a vida, eu
prefiro não dizer. Há tanta gente importante no meio disso. E o Dr.
Vulpiano não é o único a saber.
ATENÇÃO – AS FOTOS AQUI
APRESENTADAS FORAM REALIZADAS NO DIA 14 DE JUNHO DE 1984, NA CÂMARA
MUNICIPAL DE NATAL, NA OCASIÃO EM QUE O DR. VULPIANO RECEBEU O TÍTULO DE
CIDADÃO NATALENSE. INFELIZMENTE NÃO DESCOBRI A AUTORIA DESSAS FOTOS.
De: https://tokdehistoria.com.br
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