LUDOVICUS - INSTITUTO CÂMARA CASCUDO·QUARTA-FEIRA, 8 DE JULHO DE 2020
Fundava-se, sobre base do tradicionalismo
patriarcal, a sociedade norte-rio-grandense, no trabalho da pecuária e
agricultura. O plano de roças de mandioca garantia a farinha indispensável à
alimentação histórica. A ribeira do Apodi, na última década do século XVIII
(1791-93, a grande seca, “Seca Grande” como ficou conhecida), produzia 56.640
alqueires de farinha nas freguesias do Apodi, Portalegre e Pau dos Ferros. O
rebanho bovino é que se desenvolvia normalmente, criando-se, desde longos anos,
a indústria das carnes secas em Mossoró e Açu, tornando-se famosos os portos
das “Oficinas de Carne”, ou simplesmente Oficinas, à margem do mesmo rio.
Somente em 1788 é que o Capitão General de Pernambuco, D. Tomás José de Melo,
proibiu a promissora indústria, permitindo-a apenas do Aracati para o norte.
Decorrentemente a carne seca ficou conhecida como “carne do Ceará” em data
posterior à tão desassisada medida de administração às avessas. A abundância do
gado, explicação poderosa da obstinação holandesa em fixar-se no Rio Grande,
era uma consequência dos pastos bons nas zonas de criação. Já em julho e novembro
de 1686 o Governador de Pernambuco avisava ao Rei ter recebido avisos do
Capitão-Mor do Rio Grande informando-o da presença de um navio “de grande
força” e um patacho de piratas no litoral norte-rio-grandense, saqueando barcos
e que “lançava gente em terra a fazer Carnes e aguadas”.
O contrato do estanco do sal, alvará de 7 de
dezembro de 1758, permitia aos proprietários de salinas o uso do produto, mas
não a exportação. Multa e perda da embarcação carregadora. Só em 1808
recomeçaria a produção regular e venda para o sul.
A alimentação era a carne, assada ou cozida, com
farinha, farófia ou pirão. Verduras, hortaliças, quase desconhecidas. Usavam os
“cheiros”, cominho, coentro, alho, como no “Velho da Horta” de Gil Vicente. O
milho dava o cuscuz, comum e mais raro o cuscuz de mandioca. O de milho nos
viera do Oriente pela mão do português e do negro africano que o tivera do
árabe. As vacas-de-leite garantiam o queijo e especialmente o prato secular e
milenar, a coalhada, de universal uso. O sertanejo não bebia leite. Comia-o,
com farinha, com jerimum (abóbora), com batata, com milho cozido, o mungunzá.
No ciclo de São João há a comida-de-milho, canjica, pamonha, bolo, canjicão,
com leite de coco, este em anos do século XIX. O açúcar branco não era fácil. Comprava-se
e guardava-se para adoçar remédios lambedores (xaropes) e chás medicamentosos.
Como o mel de abelha para o indígena, a rapadura era o “doce” para o sertanejo.
O próprio nome de “açúcar” era pouco usado. Dizia-se:- “quer mais doce?
Sirva-se do doce!” na acepção do adoçante que era rapadura raspada para os
pobres. Ainda em 1910 havia esse clima no sertão norte-rio-grandense.
Ovelhas, marrã de ovelha, constituíam prato
precioso, cozido, assado, a buchada, tripas e mais vísceras, cozidas em fogo
lento, noite inteira, com pirão de farinha ferventado na gordura do próprio
animal. Até meados do século XVIII não encontro alusão aos caprinos. O
carneiro, nunca recusado, foi acepipe conhecido e Henry Koster encontrava-o
menos saboroso que o da Inglaterra. Manoel Rodrigues de Melo e Hélio Galvão
mostraram sua popularidade na alimentação normal.
As sobremesas apreciadas eram banana cozida, batata
assada, doce de banana, rapadura com farinha, também o chouriço, espécie de
morcela portuguesa. Ainda alcancei o prestígio da farinha com açúcar para os
meninos do meu tempo. Finalizava-se a refeição bebendo o caldo da carne.
Os ovos quentes eram impopulares. Ovo cozido,
farinha de ovos com carne assada era prato antiquíssimo. Beber ovo cru só o
faria timbu. Os peixes eram cozidos ou assados. Raramente havia técnicas para
outras maneiras. Os molhos eram desconhecidos. O leite de coco tornou-se
indispensável, mas é vitória do século XIX para o sertão.
Galinhas seriam comida clássica das parturientes, a
canja simples e a galinha cozida, com arroz de forno. Galinha assada era prato
de festa. O guiné, angola, pintado, tido por “carregado” era parcimoniosamente
consumido. Os perus apareceram no interior muito depois. Eram comuns no
litoral. Gostava-se mais das peruas, cevadas em casa, com milho cozido,
empurrado a dedo na goela.
Herdeiro do indígena, o sertanejo amava todas as
peças de caça, veados, pacas, emas, nambus, asa-branca, tijuaçu, preá, mocó,
tatus, muitas repugnando aos moradores do litoral, especialmente aos praieiros.
Em compensação, os caranguejos, lagostas, lagostins davam náuseas aos
sertanejos e eram saboreados pelos praianos, “gente que come aranha
caranguejeira”, como dizia, arrepiado feito porco espinho, meu tio Francisco
José Fernandes Pimenta, olhando em Natal uma travessa de goiamuns rescendentes.
As comidas comuns correspondiam às “comidas de
campo”, levados pelos vaqueiros nos pequeninos alforjes de couro como provisão
para os longos dias de perseguição aos bois marruás ou touros fugitivos. Era a
paçoca, carne pisada a pilão, com farinha, comida com rapadura ou banana.
Delícia. Era o “comboieiro” carne assada, cortada miudinha e misturada com
farinha. Diziam-na “comboieiro”, porque era o prato mais fácil de fazer quando
os longos “comboios”, carregados de algodão, descendo para as cidades e vilas,
arranchavam-se à sombra das oiticicas. Água, conduzia-se na “borracha”, saco de
couro, que a tornava fria e límpida. Era nome vindo de português. Os indígenas
amazônicos faziam-na com a seringa e daí denominar-se “borracha” ao látex da
seringueira. As velhas e legítimas “borrachas” (“Botas” em Espanha e França)
eram de couro.
Fiéis a dez mil anos de sabor, os sertanejos eram
amigos do tutano, batendo os ossos, sorvendo-o devagar, puro ou misturado com
farinha. Tutano dá força porque é a essência do animal. Pensavam assim todos os
povos primitivos do mundo. E o gosto continua.
Para beber, o raro vinho tinto, a meladinha ou
cachimbo, aguardente com mel de abelha, insubstituível para “fechar o corpo aos
calores e friagens”.
Os ricos tinham sempre vinho do Porto, vinho
espanhol de Málaga, servidos aos cálices. Fumava-se cachimbo, mascava-se uma
folha de tabaco, usava-se mecha no nariz ou sorvia-se o rapé, torrado. O
cigarro é depois da Guerra do Paraguai. O charuto apareceu no século XIX. E
raro. Quando o Padre Francisco de Brito Guerra, então deputado-geral em 1833,
voltou do Rio de Janeiro para o Caicó, trouxe charutos e ofereceu-os a dois
amigos velhos, correligionários seguros. Acabaram de almoçar e o Padre
retirou-se um instante. Quando regressou viu os amigos verdes e nauseados.
Tinham comido os charutos, julgando-os sobremesa habitual na Corte.
Fonte: “História do Rio Grande do Norte” / Luís da
Câmara Cascudo – Natal: Fundação José Augusto/Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
Imagem: Reprodução capa da obra “Arte e rituais do
fazer, do servir e do comer no Rio Grande do Norte: uma homenagem a Câmara
Cascudo” / Arthur Bosisio Junior (Coord.) – Rio de Janeiro: Senac Nacional,
2007.
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