domingo, 11 de outubro de 2020

 Marcos Calaça

Publicado em 10/1999, no antigo 'O Jornal de Hoje'.

Crônica: ZÉ DONINHA

Zé Doninha era um moreno alto, com um forte brilho nos olhos, que sempre caminhava na rua Velha, na cidade de Pedro Avelino. Trabalhava como carpinteiro. Seu Zé era lírico e aprendeu a ler sem ter estudado em escola nenhuma.

Seu Doninha costumava fazer longas caminhadas pela madrugada ao distrito de Baixa do Meio, distante 30 quilômetros da cidade. Isso ocorria aos domingos, dia de feira no distrito.

Ele não gostava de carona. Certa vez, o dia estava clareando, bem próximo de Baixa do Meio, um cão vira-lata o mordeu. Pensou Zé Doninha: "Não tem problema". No retorno, por volta do meio-dia, o danado do cachorro estava numa tremenda soneca à sombra de uma algarobeira. Seu Zé, com um porrete, deu uma pancada segura no animal, que não chegou nem a latir. O velho Zé, experiente, com sua voz grave, disse:"Quem tem inimigo não dorme no ponto".

Zé Doninha tinha um problema sério de saúde, sofria de tuberculose. Sempre batia no peito com força, ao ponto de se ouvir o seu grito com muitos metros de distância. Quando batia, gritava: 'bá,bá,bá'.

Num dia qualquer, um aluno o indagou: "Seu Zé, porque o senhor bate com força no seu peito?'. O velho respondeu:" Menino, eu tenho problema de tuberculosis bacterium. Pergunte à sua professora o que é bacilo de coch".

Certo dia, Zé Doninha passou em frente à casa do agropecuarista Teodoro Ernesto, que estava sentado em sua calçada. Seu Zé bateu com força no peito e "bá, bá, bá". O senhor Teodoro o interpelou: "Zé Doninha, bata no seu peito devagar, isso dói". Zé Doninha perguntou: "Teodoro, o peito é meu ou seu?". Teodoro respondeu: "é seu", e Zé Doninha dá o troco: "Se o peito é meu, então, bá,bá,bá". E foi-se caminhando rua adentro.

O estudante adolescente Helder Câmara chegou à carpintaria e encontrou seu Doninha fazendo uma roda de madeira para carro de mão. "O que é isso?", perguntou Helder. "Isso é uma circunferência. E toda circunferência tem trezentos e sessenta graus". Converse com o seu professor de geometria, respondeu Doninha, sabiamente deixando o rapazinho sem entender nada.

Essa história aconteceu mais ou menos assim: na comunidade do Bairro do Açude, Zé Doninha tinha uma grande paixão. Não sei se pelo bairro ou por alguma mulher. O certo é que num desses dias loucos da vida, Doninha deve ter feito alguma presepada por lá, ao ponto da polícia ter ido ao local prendê-lo. Quando os soldados passaram em frente à Casa Paroquial, o padre Antas conversou com eles para liberar seu Doninha. Os policiais atenderam prontamente ao pedido do padre, que perguntou o motivo da prisão. Zé Doninha explicou: "Padre Antas, eu lhe respeito muito. Mas, samangos me levem preso. Dura lex sed lex. A lei é dura , mas é lei. Me prendam que eu errei". Imagine como ficou o padre.

Em um dia qualquer, faleceu uma pessoa importante da cidade, que Doninha certamente não gostava, chegando ao velório se dirigindo ao falecido fitou-o e foi logo dizendo: "se Deus não quiser, o Diabo não injeta ", e se retirou.

Zé Doninha fazia humor típico de uma pessoa respeitável e que sua resposta era rápida e convincente. É de lembrar que na sua humildade, nos seus defeitos e nas suas virtudes, era uma figura doce e simpática. Fazia com que nós sentíssemos uma certa infância nostálgica e feliz, ouvindo as suas palavras e o seu 'bá'.

Morreu, faz anos, e levou consigo um bocado de segredo e de mistério de sua vida. Como aprendeu a ler? Como sabia um pouco do latim? Como entendia algo de inglês, e o português? Como entedia o espaço geográfico? Quem ensinou a esse 'mestre' alguns segredos da matemática? e da geometria?. Só os Deuses da sabedoria respondem.

A maioria das crianças tinha medo do senhor Doninha, talvez pelo seu grito de 'bá'.

Doninha tinha uma certa cultura que se perdeu no tempo e no espaço e que ninguém tentou estudar esse fenômeno.

Já não se escuta o 'bá' de Zé Doninha há algumas décadas. Bá!

Marcos Calaça é jornalista e poeta.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

  UMA VEZ Por Virgínia Victorino (1898/ 1967) Ama-se uma vez só. Mais de um amor de nada serve e nada o justifica. Um só amor absolve, santi...