domingo, 20 de junho de 2021

CALDAS, O POETA QUE VIVEU NO INFERNO

Navegos publica fragmento de livro inédito de Franklin Jorge sobre um dos maiores poetas da Língua Portuguesa, nascido em Goianinha [1888] e falecido no Assu [1967], cidade que ele considerava um “lugar de expiação”, como um dos círculos infernais descritos por Dante.

CALDAS, O POETA QUE VIVEU NO INFERNO

 

*Franklin Jorge

Em Assu, todo mundo que se julgava dotado de algum talento tinha inveja das coisas que escrevia Seu Caldas. – Afirma Dona Lindú Amorim, recostada em sua cadeira de balanço, numa sala intima de sua casa, ao lado da antiga agencia do Banco do Brasil, no Centro da cidade. Tem 94 anos, pois nasceu em 1894.

Seu Caldas foi apaixonado, em sua mocidade, por Alice Wanderley, Maria Alice Wanderley; poetisa, professora, de expressivos olhos negros; na linguagem literária da época, uma deidade morena. Figura na antologia organizada por Ezequiel Wanderley, em 1922. Seu Caldas chegou a escrever para Alice uns versinhos que se tornaram famosos. Deu o que falar em serões nas melhores famílias do Assu. Muitos os achavam pueris, outros, que continham um sentido oculto. Um mistério que todos queriam adivinhar.

                     Minha amada pequenina,

                     Cabe dentro de um dedal.

                     Como folhas de alfinete

                     Num carrinho de cristal.

O alfinete a que ele se refere, informa Dona Lindú, é uma espécie de planta de folhas delgadas, sempre verdes. Verdíssimas, e espetam-nos quando as tocamos.

O poeta apaixonou-se, também, por Dona Lindú, porem sobre isto ela não diz nada. Seus irmãos desaprovaram, por que ela era então quase uma menina, revela Enói, sua filha, que frequentemente interrompe nossa conversa, clamando para que sua mãe não me conte mais nada. Afirma e reafirma que defunto velho fede. Não convém mexer com quem não é mais deste mundo. Dona Lindú, porém, indiferente à pressão filial, continua respondendo às minhas indagações sobre o poeta João Lins Caldas, driblando, altaneira, a polícia da filha zelosa. Tenho consciência da importância deste depoimento para a História, acrescenta em voz pausada e calma. Alguns moleques atrevidos, sem pai nem mãe, às vezes o apupavam… Pode perguntar-me… Sei que fará justiça a Seu Caldas.

Sua mãe, Dona Fefa, era uma mulher muito distinta – retoma Dona Lindú o fio do relato. –  Nascida em Goianinha, tornou-se assuense pelo casamento. Sofreu muito com o casamento, como muitas esposas do seu tempo. Dona Fefa me contou que em Bauru Seu Caldas foi noivo de uma moça chamada Enói, mas, por um motivo do qual não me lembro, ou Dona Fefa terá feito segredo a respeito, o compromisso se desfez antes que chegassem a marcar a data do casamento. Ele tinha uma concepção idealizada da mulher e deplorava que tivéssemos órgãos excretores. Sem  isto, para Caldas, as mulheres seriam deusas…

Maria Heloísa, casada com Antônio Félix, lhe dirá muitas coisas interessantes que enriquecerão a sua pesquisa de campo sobre o nosso único gênio. Foi criada por Dona Fefa, uma alma boa que pousou na terra. Maria Heloisa há de querer reverenciar sua memória, contando-lhe o que sabe… Procure-a. Vá. Ela terá uma grande satisfação, recebendo-o em sua casa. Dona Fefa era homeopata.

Seu Caldas cultivava ódios tremendos daqueles que ele julgava os ladrões de sua obra poética. Muitas vezes eu o ouvi dizer que mataria o pai de Elenir [da Fonseca Varela] por sua obra. Tinha ódio a Dr. Ezequiel Fonseca e a Renato Caldas, que teria plagiado um soneto seu. Ele, se assim podemos dizer, fez o voto da literatura, para servi-la com devoção e sem salário. De hábitos excêntricos, era ridicularizado por muitos.

Seu Caldas deixou vários sobrinhos. Waldir, Nair, Alaíde, Jûnade, José Wilson, Moacir, Hebe, aliás, muito bonita; casou-se com um Serejo de Macau. Hermelinda, mulher de seu Lins e cunhada de Seu Caldas, era filha de um Rufino que existiu aqui e foi criada por meu pai, Oswaldo Justino de Oliveira. Papai era primo de Câmara Cascudo.

Rufino inspirou a Seu Caldas um belo poema. Eu não sei se ainda me lembro de alguns versos. Vou dizê-los em prosa. Sua amiga, Dona Gena, deve ter uma cópia manuscrita desses versos…

“Despediu-se no ano de 1956, a morte o levando no dia do aniversário de Zálix e de Dona Idalina. – Tantas noites, hora e minuto talvez de quando nascia, parede e meia com a minha casa, Célia Maria, única entre cinco irmãos, filhinha do casal Floriano e Dorinha Dantas…” É  um poema muito longo. Não quero cansá-lo…

Sua poesia causava estranheza e inveja. Mais que a aparência desleixada do poeta, causava estranheza e inveja a sua poesia que nos parece feita de relâmpagos. Seus poemas são como relâmpagos. Cada verso deflagra um súbito clarão… Eu tenho na ponta da língua um poema curto dele, um poema que contém em potência algo terrível. Talvez você queira ouvi-lo da boca dessa sua velha amiga. É assim:

  Sentiu na carne a sua deprimente pobreza

  Nos olhos, na cara toda.

 E era a pobreza.

 Nada da vida lhe sorria em torno.

 E era assim essa mal posta mesa.

Um dia, na avareza,

Os homens lhe consumiram toda essa sua tão pequena riqueza…

 – Vamos, está posta a mesa…

 E tudo foi essa miséria toda.

Seu Caldas não fez poesia para qualquer leitor, ressalta a velha senhora, pensativa. Era alguém que tinha a medida exata de seu valor e por isso almejava habitar o Parnaso ao lado de Dante, de Camões e Goethe… Nota-se, em tudo o que escreveu e viveu, no curso da vida, um grande mistério. Um enigma poético que não alcançamos decifrar. Sua poesia é algo cifrado ao entendimento dos simples mortais. Contem em potência o mistério mesmo da poesia…

*Fragmento do livro João Lins Caldas no Inferno.

 


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