“No início do século, os cafés eram o lugar de sociabilidade por excelência”, lembrou a historiadora Marissa Gorberg, doutora em história, política e bens culturais pelo CPDOC da Fundação Getulio Vargas. “Era onde os intelectuais e artistas se encontravam para o fomento das ideias. Com as reformas de Pereira Passos, o Centro espelhava esse modelo de progresso que deveria ser uma vitrine para o resto do país”, disse a historiadora. Entre tantos cafés do Centro, o Gaúcho se diferenciava por sua diversidade, observou Gorberg.
Provavelmente por causa de sua localização, era um melting-pot capaz de receber tanto os pintores rebeldes do Núcleo Bernardelli quanto os católicos conservadores que fundaram a revista A ordem. Ou ainda músicos do grupo Oito Batutas, formado por Pixinguinha e Donga, entre outros, e intelectuais negros como Abdias do Nascimento. “Não era um lugar fechado para brancos, onde negros se sentiam intimidados”, disse Gorberg. “Para quem chegava de fora da cidade, seja para procurar emprego ou para se enturmar com os intelectuais, o lugar era ali.”
O fenômeno não se restringia ao Rio. Em São Paulo, a turma de 1922, capitaneada por Oswald de Andrade, frequentava as mesas do Café Guarany, na Rua XV de Novembro, perto do antigo Largo do Rosário, do lado esquerdo de quem vai para a Praça da Sé. Também compunha o roteiro da intelectualidade paulista o Bar Viaduto, ao lado do que hoje é o Largo Santa Ifigênia. Ambos surgiram ainda no século XIX, mas, diferentemente do Gaúcho, não sobreviveram ao fim do modernismo. O primeiro fechou na década de 1930 e o segundo na de 1950.
O Gaúcho tem duas datas de fundação. A administração crava 1935, ano em que a família do atual proprietário o comprou. Os jornais antigos, porém, guardam uma trajetória amputada da versão oficial. No dia 26 de março de 1921, nesse mesmíssimo número 86 da Rua São José, os sócios M. Soares e R. Carvalho inauguravam o café com “farto lunch e chopps”, como lembra a revista Careta da época. As ofertas do “lunch gaúcho” incluíam comidas como pastéis de carne, camarões recheados, empadas, croquetes e canjica de milho verde. Nada muito diferente das atrações da casa atual, que tem como carro-chefe o cachorro-quente com linguiça e uma nababesca milanesa com pão francês.
“Foi lá, por exemplo, que Candido Portinari fez de tudo para retratar a bailarina Eros Volúsia, filha dos poetas Gilka Machado e Rodolfo de Melo Machado. Também foi lá que nasceu um dos principais mecanismos de divulgação do modernismo carioca, a revista ‘Festa’”
O que mudou mesmo, para além da decoração, é o conceito do negócio. Relatos e fotos antigas mostram um espaço para se sentar e papear noite adentro. Hoje, porém, o Gaúcho serve cafés e lanches rápidos nos três balcões da casa, com os clientes em pé — uma mudança introduzida nos anos 1950, e que faz muita gente chamar o lugar de “bisavô das lanchonetes”. E fecha às 21 horas.
“Sem saber nada sobre ele, tomei muito cafezinho no Café Gaúcho nos anos 1960 e 1970, quando a Livraria São José ainda ficava na própria São José e, na Rua Rodrigo Silva, havia a Motodiscos, insuperável sebo de discos do Carlinhos”, contou Ruy Castro, que cita diversas vezes o estabelecimento em seu livro Metrópole à beira-mar, um painel do Rio moderno dos anos 1920. “Tem balcão de metal, ficha de plástico, açucareiro de vidro e café de verdade. Que maravilha.”
Desde a sua fundação, o café podia não ter o glamour das confeitarias Colombo, Cavé ou Alvear, frequentadas por Rui Barbosa, Chiquinha Gonzaga e Olavo Bilac, nem a fama boêmio-folclórica do Lamas, preferido por Emílio de Meneses. Mas havia um diferencial: encontrava-se em uma rua com muitas pensões de estudantes (incluindo a de Gilka Machado) e de livrarias tradicionais, como a São José, frequentada por Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Assim, virou o ponto de encontro das grandes cabeças da cidade: “Pintores com velhos plastrons desbotados e poetas e críticos e alfarrabistas”, como lembrou uma reportagem de 1950.
Em sua mocidade, Schmidt saía todas as noites de Copacabana para a “cidade”, pronto para “excursões noturnas, perfeitamente líricas e inocentes, e que duravam até depois da madrugada”. Ele recorda: “Passava eu de pince-nez e bengala, à procura da vida literária que se desenrolava em alguns cafés da cidade, notadamente no Gaúcho”. Há referências ao estabelecimento como um espaço afetivo na obra de diversos escritores do período. Os lendários relatórios que fizeram a fama do prefeito Graciliano Ramos (que governou a alagoana Palmeira dos Índios de 1928 a 1930) no Rio começaram a circular pela primeira vez entre as mesinhas do Gaúcho. Um dos embasbacados com a descoberta do manuscrito foi o autor Marques Rebelo. “Depois de Manuel Antônio de Almeida e Machado de Assis, nada encontrara até então em prosa do Brasil que tanto me satisfizesse”, escreveu ele.
Em um texto memorialístico, o mestre do romance urbano José Geraldo Vieira descreveu o clima das noites do Gaúcho em sua juventude. Nos anos 1920, o futuro autor de A quadragésima porta lembra de esperar nas mesas o esfomeado amigo dadaísta Maneco Nunes Pereira. “Assim que João Castelo Branco ou João Lins Caldas começavam a querer ler-lhe poesias que haviam escrito em caixas de cigarro ou na orla de jornais, (Maneco) segurava um deles pelo gasganete e berrava: ‘Eu quero é média com pão e manteiga! Arrebento a cara do primeiro safado que ousar me ler um soneto!’.”
O café fundado logo após a Gripe Espanhola agora tenta manter-se em pé na pandemia de coronavírus. A crise sanitária foi especialmente dura com o comércio do Centro do Rio. Lugares tradicionais nas imediações, como a Casa Ulrich e a Leiteria Mineira resistem como podem. Depois de fechar por 90 dias entre março e junho, o Gaúcho reabriu, mas com o movimento muito abaixo do que estava acostumado. Com tantos funcionários públicos da área fazendo home office, acabaram-se as happy hours lotadas. “Vendíamos 800 cafés por dia, agora não chegamos a 200. Barril de chope vão dois ou três. Antigamente, iam até 12 nas sextas-feiras”, disse João Tavares, que chegou ao Gaúcho em 1961 como funcionário e hoje é sócio.
Tavares contou que veio do Ceará e foi praticamente adotado pelo então dono do café, o Seu Cunha (avô dos outros dois sócios da casa, Claudio e Marcos Cunha). Naquela época, já não havia mais pintores ou escritores modernistas, embora Tavares se lembre de ter visto os músicos Luiz Gonzaga e João Nogueira no Gaúcho. Mas o passado é o passado. Agora, como os outros bares e restaurantes da redondeza, o mais velho funcionário da casa pensa no futuro, enquanto aguarda ansiosamente a prometida ida das novas repartições da prefeitura para o edifício da Procuradoria da República, na Rua México, a poucos metros dali. “Todos os comércios estão vendo como a salvação”, disse.
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