Um dos princípios que orientam as decisões que tratam de direito do consumidor é a força obrigatória dos
contratos (derivada do conceito de autonomia privada) e que, por vezes, minimiza o conceito de vulnerabilidade do consumidor. Em função disso, o tratamento dado aos contratos de consumo é, regra geral, que
os contratos devem ser cumpridos, independente da situação econômica do consumidor, restringindo a
possibilidade de revisão de cláusulas contratuais e causando a inadimplência de muitos.
Ainda que o adimplemento contratual seja a melhor solução, há casos especiais que impedem que o consumidor consiga adimplir todas as suas obrigações, gerando uma situação difícil para todos os envolvidos,
com consequências negativas para devedores e credores.
Se os consumidores devedores não têm mais condições financeiras de pagar todas as suas dívidas e, ao
mesmo tempo, manter condições mínimas de sobrevivência digna, ocorre um fenômeno já bastante conhecido: o superendividamento.
AFINAL, O QUE É SUPERENDIVIDAMENTO?
O superendividamento pode ser entendido como a “impossibilidade manifesta de o consumidor, pessoa
natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial”.
As dívidas englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada e não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido
contraídas mediante fraude ou má-fé ou sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento.” (Projeto de Lei nº 3.515/2015, Art. 54-A).
Logo, estão incluídos no conceito de superendividamento apenas as pessoas naturais (físicas) e de boa-fé,
o que significa que são as pessoas naturais que se endividaram por conta dos denominados “acidentes de
vida”: desemprego, doenças na família, mortes e rupturas da estrutura familiar decorrente de divórcios,
separações etc.
Enfim, de acordo com o conceito de superendividamento previsto no Projeto de Lei nº 3.515/2015, há
motivo justificado para a proteção ao superendividado. Não se trata de proteger um consumidor que deliberadamente contraiu dívidas maiores do que pode pagar, mas daqueles que sofrem por circunstâncias
que fogem ao seu controle e que causam um justificado abalo na situação financeira das famílias.
E não existe um valor determinado para definir o superendividamento, sendo este caracterizado pela impossibilidade de resolução das dívidas da pessoa natural. Ou seja, se o pagamento das dívidas comprometa
mais de 30% da renda líquida mensal do consumidor, é possível presumir que o mínimo existencial esteja
afetado, resultando na impossibilidade de arcar com despesas necessárias a uma vida digna (alimentação,
vestuário, higiene, saúde, transporte etc.).
O SUPERENDIVIDAMENTO E A PANDEMIA DA COVID 19
A crise econômica dos últimos anos já indicava um aumento de casos de superendividamento no país.
Agora, em função do aprofundamento da crise em função da pandemia, é necessário repensar a questão,
com maior objetividade e apontar soluções para os casos de consumidores que não poderão adimplir suas
obrigações contratuais, inclusive as relacionadas aos serviços básicos como água, energia, internet etc.
O superendividado, portanto, tem muitas vezes afetado o núcleo material do princípio da dignidade da
pessoa humana. Em outras palavras, o mínimo existencial, necessário para uma existência digna, fica com-
3
prometido com o avanço dos credores nos, já reduzidos, rendimentos do consumidor. O valor das dívidas
contraídas não permite uma solução a curto prazo e o sistema jurídico infraconstitucional atual ainda não
tem qualquer solução específica para o consumidor superendividado em geral.
Apenas para ilustrar a situação na pandemia, de acordo com a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência
do Consumidor-PEIC (elaborada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo-CNC), a parcela de famílias endividadas em março de 2021 é estimada em 67,3% da população (segundo
maior índice desde o início da pesquisa em 2010) e 10,5% das famílias endividadas estão com compromissos em atraso e sem condições de pagar suas dívidas.
A situação que é grave pode ficar ainda pior já que as pessoas estão buscando crédito para pagar suas
dívidas, o que pressupões um grau maior de endividamento, especialmente com as altas taxas de juros
praticadas pelo mercado brasileiro em conjunto com o desemprego e os problemas de saúde decorrentes
diretamente da pandemia.
Além disso, o superendividado sofre com as restrições de crédito por conta das dívidas em atraso e, o que
aprofunda seus problemas e impossibilita uma solução por conta das maiores dificuldades na obtenção
de crédito e por vezes na obtenção de emprego (já que muitas empresas restringem o acesso a “negativados”). Em fevereiro de 2020, em dados apurados pela Confederação nacional de Dirigentes Lojistas-CNDL
e pelo Serviço de Proteção ao Crédito-SPC Brasil, mais de 61 milhões de brasileiras e brasileiros estavam
inscritos em cadastros de devedores (quase 40% da população adulta do Brasil).
OS IMPACTOS NEGATIVOS DO SUPERENDIVIDAMENTO
Além das nefastas consequências econômicas da impossibilidade de pagamento das dívidas nas famílias
superendividadas e na própria economia, pesquisa recente elaborada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas-CNDL e pelo Serviço de Proteção ao Crédito-SPC aponta outra grave consequência da
inadimplência, afetando a saúde física e mental dos endividados.
A pesquisa indica que 82% dos inadimplentes afirmaram ter sofrido algum sentimento negativo ao descobrir que estavam endividados, sendo a ansiedade a mais citada (com 63,5%). Estresse e irritação, tristeza
e desânimo, angústia e vergonha também são citados como consequências diretas da impossibilidade de
pagar suas dívidas. “O levantamento é importante porque evidencia algo de que já desconfiávamos, que
as frustrações e incertezas provocadas pela inadimplência não se restringem ao campo financeiro, tendo
impacto significativo também na saúde física e emocional dos endividados”, explica Marcela Kawauti, economista-chefe do SPC Brasil”.1
O abalo na saúde dos superendividados afeta também sua produtividade no trabalho e nos estudos e cria
um círculo vicioso difícil de ser rompido, com as terríveis consequências do superendividamento sendo
reproduzidas em prolongadas sem maiores perspectivas de solução futura. Essencial também destacar
que a situação de superendividamento atinge o mínimo existencial das famílias, ofendendo diretamente o
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 5º, III), não sendo razoável ignorar uma
situação tão grave e enfrentada por muitas famílias (mais ainda com a pandemia).
Os idosos estão entre os que mais foram impactados negativamente pela pandemia. As taxas de letalidade
entre os adultos com mais de 60 anos são mais altas que as outras faixas etárias. Além disso, o assédio costumeiro das instituições financeiras com as ofertas de crédito consignado nos benefícios previdenciários
(utilizados muitas vezes para ajudar familiares em dificuldades), torna a situação do superendividamento
dos idosos ainda mais preocupante, devendo ser objeto de atenção especial, em função de sua reconhecida hipervulnerabilidade.
1 - Disponível em https://site.cndl.org.br/8-em-cada-10-inadimplentes-sofreram-impacto-emocional-negativo-por-conta-das-dividas-revela-pesquisa-cndlspc-brasil/. Acesso em 30/04/2021.
4
O QUE FAZER?
O ordenamento jurídico brasileiro não tem lei específica para tratar do superendividamento. Apesar disso,
é possível buscar a revisão dos contratos dos superendividados em função da observância ao princípio da
dignidade da pessoa humana (Constituição Federal, Art. 1º, III), especialmente à garantia do mínimo existencial (dimensão material do princípio da dignidade da pessoa humana).
A utilização da analogia (com base em leis que restringem o alcance do comprometimento de renda das
famílias, especialmente normas aplicáveis aos financiamentos obtidos pelo SFH-Sistema Financeiro de Habitação, a Lei nº 10.820/2003 – Lei dos Consignados e a Lei nº 8.112/91 – Estatuto dos Servidores Públicos
Civis da União) para restringir o alcance das dívidas a um patamar que preserve o mínimo existencial das
famílias (em torno de 35%) pode ser uma solução construída em um ordenamento sem legislação específica aplicável.
Entretanto, ainda que algumas soluções jurídicas possam ser elaboradas (com alguma repercussão em
decisões judiciais2
que mencionam o superendividamento3
), é fundamental a aprovação de lei específica
para prevenção e tratamento do superendividado, especialmente para recuperação das famílias no pós-
-pandemia. Em outras palavras, sem legislação específica, não há solução jurídica aplicável pacificamente
e em larga escala pelo judiciário.
APROVA PROJETO DE LEI Nº 3.515/2015
Em 11/05/2021 foi aprovado na Câmara dos Deputado o PL nº 3.515/2015, que atualiza o Código de Defesa do Consumidor para disciplinar as regras de prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores. O Anteprojeto de Lei foi elaborado por uma Comissão de Juristas presidida pelo Ministro Herman Benjamin (STJ) e relatada pela Professora Drª Dr. h. c. Claudia Lima Marques (UFRGS). Agora o Projeto
retorna para o Senado para deliberação dos destaques e, na sequência, seguirá para sanção presidencial.
A aprovação de uma legislação específica para a prevenção e o tratamento ao superendividado é uma
necessidade urgente da sociedade brasileira. A adoção de regras claras para o superendividamento é fator
essencial na superação do problema que afeta os consumidores, suas famílias e toda a economia brasileira.
O PL nº 3.515/2015 pode ser dividido em 3 âmbitos, nas palavras de Cláudia Lima Marques e Roberto
Pfeiffer: “normas de natureza preventiva, repressiva e de tratamento. Assim são vacina (prevenção) e tratamento/remédio (repressiva e de cura) do superendividamento4
”.
Na prevenção, normas que privilegiam o consumo consciente e a informação mais clara ao consumidor
(especialmente na oferta de crédito). Nas normas repressivas há vedação a determinados tipos de publicidade, com sua caracterização como abusivas e/ou enganosas, com preocupação com o assédio ao consumidor (especialmente o hipervulnerável). E há, de forma destacada, normas que buscam o tratamento
daqueles que já se encontram superendividados.
Em resumo, o PL nº 3.515/2015 busca garantir melhores condições de negociação das dívidas dos superendividados, com a previsão de conciliação com os credores e plano de pagamento das dívidas em até 5 anos,
com o comprometimento de renda de até 30% e, com isso preservando o mínimo existencial.
E, apenas após a tentativa de conciliação não obtendo sucesso, o PL nº 3.515/2015 prevê um plano com2 - Resp 1783731 – Rel. Ministra Nancy Andrighi – j. em 23/04/2019; Resp 1586910 – Rel. Ministro Luís Felipe Salomão – j. em 29/08/2017; Resp 1584501– Rel.
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino – j. em 06/10/2016; REsp 1186965 – Rel. Min. Massami Uyeda – j. em 07/12/2010 – 3ª T.; AgRg no REsp 1206956 – Rel.
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino – j. em 18/10/2017; AgRg no AREsp 314901 – Rel. Ministra Maria Isabel Galotti – 4° T - - 18/06/2015; REsp 1.584.501 –
Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino; AI (TJSC) 0033215-65.2016.8.24.0000, Rel. Des. José Carlos Carstens Köhler.
3 - Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-mai-14/garantias-consumo-superendividamento-consumidores-vacina-pl-3515-2015. Acesso em
30/04/2021.
4 - Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-mai-14/garantias-consumo-superendividamento-consumidores-vacina-pl-3515-2015. Acesso em
30/04/2021.
5
pulsório estabelecido pelo judiciário e que consiste no pagamento pelo consumidor do valor do principal
devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e a liquidação total da dívida em, no máximo, 5 anos, sendo a primeira parcela devida no prazo máximo de 180 dias, contado de sua homologação
judicial, e o restante do saldo devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.
O PL do Superendividamento, portanto, associa regras de prevenção e tratamento que são fundamentais
para o resgate de milhões de brasileiras e brasileiros ao mercado de consumo. Era importante na situação
pré-pandemia e agora é absolutamente essencial.
O PL n° 3.515/2015, aprovado na Câmara dos Deputados foi enviado ao Senado como Projeto de Lei nº
1805/2021 (Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº 283/2012). Agora a luta
é no Senado Federal: #AprovaPL1805.
Site: superendividamento.org.br
Coordenação:
Marié Miranda
Presidente da Comissão Especial de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da OAB.
Redação:
Geyson Gonçalves
Membro Consultor da Comissão Especial de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da OAB.
Colaboração:
Teresa Cristina Fernandes Moesch
Membro Titular da Comissão Especial de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da OAB.
Cássio Drumond Magalhães
Membro Consultor da Comissão Especial de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da OAB.
Leandro Carvalho
Membro Consultor da Comissão Especial de Defesa do Consumidor do Conselho Federal da OAB.
Colaborador Convidado: (convidada pela presidente CEDC)
Andréia Regina Pereira Nogueira
Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/AC.
Fonte OAB