quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

COISAS DA VIDA



O suave açoite desse vento frio no rosto me mantém desperto e estimulado. Venci a noite algumas vezes quando sonhei. Mas o sono foi entrecortado por dores que me chegavam como longas agulhas perfurando o tendão e o calcanhar do pé esquerdo. Salvo um milagre, e eu tenho fé, devo-me submeter a uma microcirurgia que irá revestir a aorta abdominal, onde se suspeita que tenha origem a migração do trombo que "embolizou" a perna. Tenho um bom médico especialista e o apoio do Dr. Bezerra de Menezes, meu amigo das horas difíceis.


Agora mesmo, por trás da fímbria das dunas, um alaranjado ainda ralo, começa a invadir o espaço das nuvens. As luzes da rua ainda estão acesas e os primeiros veículos denunciam a atividade matinal. A minha rua é estritamente residencial. Raros veículos transitam por aqui. A tranquilidade do dia inteiro, sobretudo à noite, lembra-me uma fazenda, sem o mugir dos animais, mas animado pelos pássaros que volteiam o jardim e o meu "aquário", o mirante envidraçado que me expõe para a rua, e me traz a vida lá fora.


Abri o livro de Valério Mesquita, "A paisagem e o tempo", lançado ontem, e faço as primeiras abordagens, uma espécie de leitura dinâmica de alguns trechos. Sei que se trata de material de primeira qualidade do cronista de Macaíba, que restaura e retorna sempre à sua "Província submersa", como a chamou Otacílio Alecrim. Temos em comum o amor pelas letras e a devoção às nossas cidades de origem. Permanecemos antigos alunos Maristas e incuráveis provincianos, por mais que sejamos cosmopolitas. Como disse o meu amigo Manoel 


Onofre Jr., onde estivermos, é Macaíba e Ceará-Mirim que de fato nós vemos. Não pude ir ao lançamento pela limitação da saúde, mas me fiz representar pelo meu melhor - Jailza, minha companheira e Maria a minha filha mais nova, amante das letras e do ambiente artístico-literário.


Vou começar a organizar, com carinho especial, os originais de "Armadilhas para pássaros e caçadores", o meu livro de crônicas, onde pus a minha alma lírica e saudosista, a minha essência humanista. Tão logo me seja entregue "A Quinta dos Pirilampos", o meu romance articulado sobre as coisas simples e o meio ambiente, com pano de fundo ficcionista, devo editar esse segundo filho.


A menção às coisas simples, lembrou-me de um livro - "As coisas da Vida", de Paul Guimard - depois convertido em filme com Michel Piccolli no papel principal. Trata-se da memória de alguém vitimado num acidente de carro, em estado de coma. Nessa situação, sem poder se comunicar,mas em pleno nível de consciência interna, só consegue se lembrar das coisas simples, das cenas cotidianas que banalizava. 


Muitas vezes atinjo esse nível de consciência, diria até que frequentemente. Sobretudo quando me sinto pênsil, entre a vida e a morte, quando adquiro a clarividência de que estou mais próximo do momento da lógica fria do desencarne, segundo os cânones cientificistas, já que sou idoso e doente, não exatamente por fatalidade. Amo a vida e desde que adquiri essa percepção, sorvo todos os dias o agridoce licor existencial.


Ontem mesmo, aqui no FB, transcrevi uma reflexão de Montaigne, ("toda sabedoria e raciocínio do mundo se concentram num ponto: o de nos ensinar a não termos medo de morrer") e me dei conta dessa verdade. 


Mas o ser humano é uma criatura admirável. É o único animal que sabe, tem certeza, de que vai morrer e comporta-se como se fosse imortal.


Passou-me pela cabeça uma dúvida ainda não esclarecida: quando vou pode degustar o velho Parr, que potencializa a minha alegria e a minha ousadia?


Um bonissimo dia.


(Mirante das Dunas, madrugadinha do primeiro dia de dezembro de 2011)


(Transcrito do Facebook do autor)

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