Quem seria aquele homem, amigo e contemporâneo de Olavo Bilac, Da Costa e Silva, Alberto de Oliveira, Tasso da Silveira, Mário Pederneiras da Silva, Alberto de Oliveira, Hermes Moreira, Murilo Araújo, Hermes Fontes, Osvaldo Aranha, Lima Campos e José Geraldo Vieira?
Quem seria aquele homem que amava os animais, convivia com eles, conversava com eles, como se fôsse o povorelo de Assis?
Quem seria aquele homem, quase réplica de São João Batista (padroeiro do seu povo) comendo gafanhoto e mel silvestre, também como ele, um caniço agitado ao vento?
Quem seria aquele homem que acreditava na encarnação e dizia e repetia que as palavras não se perderiam nunca, que um dia todas elas voltariam gravadas eletronicamente pelo absoluto?
Quem seria aquele homem, abandonado ao sonho, sonhando frutos e legumes na mesa de todos, sonhando pássaros cantando, calculando produção, vislumbrando exportação, numa terra bíblica para ele, onde o cordeiro e o lobo conviviriam um dia e que ele a chamou de Frutilândia?
Quem seria aquele homem, "ansioso por conhecer o outro lado", mistura de eremita e visionário, um pouco de demônio e muito de Deus, cujos versos já foram declamados na BBC de Londres?
Quem seria aquele homem que foi-se embora pra Frutilândia, mais bela do que Pasárgada, mais distante do que os asteróides de Saint-Exupery?
Quem seria aquele homem, cujos versos as escolas não conhecem e cujo nome não enfeita nem as praças, nem as avenidas, nem as portas dos botequins?
Se eu fosse prefeito do Açu, cada rua teria o nome de um poema de João Lins Caldas. Uma se chamaria Ïsabel"; outra, "Quando Laura Morrer", a praça do cemitério se chamaria "Sinfonia Negra"; o clube se chamaria "Dentro do Sonho"; a praça da matriz, "Deus Tributário"; o quartel, "Litanias de Um Doido"; o acesso à cidade "Chão de Enterro", o hotel se chamaria simplesmente "A Casa".
Se eu fosse prefeito do Açu, colocaria os poemas de João Lins Caldas nas estradas, nas pedras, nas porteiras, nas despedidas, nas saudações, e a quem não se confessasse convencido, eu repeteria o seu diálogo:
"Consola-te. Afinal não há mais nada".
Não há mais nada? E o coração da gente?"
Se eu fosse prefeito do Açu, eu pederia ao DNOCS para que o projeto de Irrigação se chamasse Frutilândia e que os técnicos antes de percorrer o vale, tivessem em suas mãos o sonho de João Lins Caldas:
Como essa manhã me acorda com os passarinhos
Que matinal de árvores e de pássaros
Pinga o orvalho das folhas como pérolas trêmulas, molhadas,
Cardeiros à distância e perto a cerca fulfa dos cercados.
No terreiro da casa, as galinhas ciscandos
Um pio de nambu é remoto à distância...
Ouço e vejo lá fora... há como que em mim um anseio de embriagado.
Vontade de correr, andar, ser como um pequeno cabrito a saltar pelo relvado...
O milho verde a subir, a cana grossa, o espigar das bonecas...
O louro-roxo do cabelo aqui e ali pelos ventos levado...
Parado... o ar aqui, agora, um ar parado...
Nem um grilo a trilar nem um mover de folhas...
Sáio... acendo o cigarro... as mãos trêmulas de gozo...
Isso que aqui plantei, que as minhas mãos cavaram...
cajueiros aos cem, azeitonas, mangueiras...
Ah! Se eu tivesse na vida como aqui sempre plantado.
E vejo, no crescer, pequena, a laranjeira
Tão verde no buraco fundo que lhe foi cavado
A minha laranjeira! A minha laranjeira!
Os frutos que dará encantando o cercado.
Meu rancho, ali, os potes na biqueira...
Pobreza assim riqueza só... um dia
Reposarei em mim essa pobre cabeça de cansado...
Lembrarei meus veros, direi versos para mim e para o céu estrelado...
A noiva que não tive... e recordo sem mágoa
Aquela que passou, culpa de mim que somente
Vão em cortejo ao olhar do meu pensamento, sombras vagas.
Arina! Um filho pela mão... lá atravessa seu filho...
E os filhos que não dei, as almas culpa de mim que não vingaram
Basta... volto-me ao sítio do meu silêncio proclamado
É a música de tudo em tudo que de mim, na sua essência...
O sol... o sol dessa manhã é agora todo o meu cuidado.
Olho o sol... a ânsia de talvez de pelo sol perder-me
E já não ser de tudo aquele mundo todo nas raíses...
As árvores que quero ver... as pequenas plantas que quero ver dos meus pequeninos berços elevadas.
E olho-as... as minhas crianças verdes, as minhas romanzeiras enramadas...
O cigarro se apaga, a fumaça não sobe...
Vamos entrar o rancho, agitar gravetos, fazer o fogo...
E brinquedo, o meu cão, que aqui por esse andar me tem sempre acompanhado...
Olhos aos olhos do cão... não, Brinquedo que nem sempre tem me acompanhado.
Agora eu entendi porque João lins Caldas disse certa vez: "O Açu é meu inferno".
Agora eu entendi porque em Bauru, ao ouvir em 1932, VIVAS a São Paulo, ele cortou a multidão como um relâmpago inesperado: "Alto lá! Viva o Brasil!"
Agora eu entendi os seus telegramas malcriados ao ditador Vargas e o seu voto permanente (mesmo que ele não fosse candidato) a Eduardo Gomes.
Agora eu entendi porque ele admirava tanto Carlos Lacerda e de repente em 1964, eliminou-o de sua convivência mental.
Agora eu entendi. Ele nasceu impregnado climaticamente de liberdade. Não foi por acaso que João Lins Caldas nasceu em 1888".
(José Luiz Silva, Em "Apesar de Tudo", 1986)