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Luciano Capistrano
luciano.capistrano@natal.rn.gov.br
Fonte – http://jornalzonasulnatal.blogspot.com.br/2016/06/vozes-do-passado-construcao-historica.html?spref=fb
O historiador Câmara Cascudo em sua História da cidade do Natal, relata a saga de um alvissareiro, que do alto da torre da matriz, era testemunha ocular das transformações ocorridas na cidade. Nesta pesquisa apresentamos o “alvissareiro” da história, materializado em Manoel Dantas, Luís da Câmara Cascudo, Eloy de Souza, Jorge Wilheim, Henrique Castriciano, Alberto Maranhão, Januário Cicco (memorialistas, poestas, romancistas, entre outros artesãos da palavra) e Bruno Bougard, João Galvão, Manoel Dantas (fotógrafos). A imagem e a literatura, como fonte de pesquisa da história. A imagem sempre esteve presente como fonte importante para entender o passado. Ao longo dos séculos XIX e XX, a fotografia se consolidou como invento, essencial no registro de paisagens naturais e culturais. O documento histórico, não é mais restrito a documentos escritos, cada vez mais, a imagem ganha campo entre historiadores. A utilização desta nova fonte histórica faz parte da nova historiografia.
A literatura em todas as suas vertentes, compõem hoje, com a fotografia uma fonte repleta de possibilidades para a pesquisa histórica. O historiador, por seu oficio, dialoga permanentemente com o passado. Este fazer histórico o leva a andar entre arquivos públicos e privados, buscar construir os caminhos e descaminhos das gerações passadas é a tarefa primeira. Um labutar, por entre, poeiras, revirando velhos manuscritos, documentos, hoje, fontes que dizem mais do que uma carta de amor ou um balancete comercial. O objeto pesquisado não exerce a mesma função de outrora.
No tempo presente o olhar do historiador, dá “voz” ao passado através de sua interpretação do documento selecionado. Construir os caminhos do passado, através da palavra e da imagem, este é o desafio da historiografia atual. Esta pesquisa histórica objetiva a construção da história da cidade de Natal através da utilização do acervo fotográfico do IHGRN (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte) e do jornal A República, e da produção literária do Rio Grande do Norte, tendo como recorte temporal 1901 e 1920. Neste sentido, selecionamos algumas “vozes do passado”, poetas, ficcionistas, memorialistas, enfim narradores de uma época passada, o que possibilita conhecer a transformação do espaço urbano a partir do “olhar” do cronista, materializado no fotografo, muitas vezes não identificado, e dos escritores que testemunharam a ocupação da capital Potiguar.
O educador Henrique Castriciano, Potiguar de Macaíba, amante dos velhos e empoeirados papéis, em uma de suas crônicas publicadas em A República, de 18 de março de 1908, afirmou: sinto um intenso prazer quando me cahe sob a vista, bordado pelos arabescos que as traças costumam por nas laudas antigas, um documento qualquer, onde ventou algum traço de vida dos nossos antepassados (CASTRICIANO in ALBUQUERQUE, 1994, p. 129). É muito prazeroso encontrar testemunhos de nossos antepassados, entre os caminhos das traças.
Os historiadores, até por força do seu oficio, em muitos momentos, já vivenciaram a mesma sensação relatada pelo idealizador da Escola Doméstica. Sobre o trabalho em arquivos, recorremos ao historiador Bacellar(2006,p24):
O trabalho com fontes manuscritas é, de fato, interessante, e todo historiador que entra por essa seara não se cansa de repetir como os momentos passados em arquivos são agradáveis. Grandes obras historiográficas tiveram sua origem nas salas de arquivo, onde muito suor e trabalho foram gastos, após semanas ou meses de paciente e dedicada fase de pesquisa.
Revisando baús antigos, encontramos os testemunhos das gerações de outrora, fontes materializadas em correspondências, relatórios de governos, inventários, testamentos, periódicos, enfim, em uma profusão de fontes impressas das mais variadas matrizes. Em visitas a arquivos públicos ou particulares, também encontramos fotografias, outra fonte importante na compreensão da sociedade do passado, seus costumes, seus dilemas.
Esta construção histórica, caminha de mãos dadas com a memória. A memória constitui-se no elemento essencial na construção da identidade. Deste modo, pode-se apreender que as identidades, coletiva ou individual, formam-se a partir dos elementos da memória. Vejamos o que diz a professora Ferreira(2004, p.98):
A iniciativa de diferentes setores da sociedade para recuperar e divulgar suas memórias, através de livros, exposições, inauguração de monumentos e criação de centros de memória, tem como objetivo reelaborar identidades, difundir uma determinada visão sobre o passado (é bom lembrar que a memória, como a história, é sempre produto de seleção feita no vasto campo do passado), e reforçar a imagem pública de grupos ou personagens. São projetos em geral concebidos para valorizar o registro de trajetórias institucionais ou pessoais, para confirmar, a importância de eventos considerados fundadores, bem como para instituir ou atualizar determinadas celebrações.
A memória é, então, resultado dos vestígios das gerações passadas, ainda preservados, sejam eles na forma material ou imaterial. Reveste-se no elo atemporal, fator de pertença das gerações. A memória social, é assim, o reconhecimento do cidadão do hoje, enquanto construção dos seus antecessores. Como afirmou o professor Mesentier(2005, p.168):
Diferente da memória individual, a memória social se constrói ao longo de muitas gerações de indivíduos mergulhados em relações determinadas por estruturas sociais. A construção da memória social implica na referência ao que não foi presenciado. Trata-se de uma memória que representa processos e estruturas sociais que já se transformam. A memória social é transgeracional e os suportes da memória contribuem para o transporte da memória social de uma geração a outra.
Construir uma “cidade memória” é fazer uma viagem no tempo através de livros, fotografias e periódicos. Fontes encontradas em arquivos particulares e públicos. E como Henrique Castriciano, poder sentir imensa alegria ao encontrar, por exemplo, em um número de “A República”, notícia referente aos espetáculos ocorridos no saudoso Polytheama, brindar nossos olhos com as imagens de Natal, captadas pelo fotografo suíço Bruno Bougard e nos deliciarmos com prazerosas leituras de poetas, ficcionistas, memorialistas e pesquisadores da história urbana de Natal.
Ao olhar o passado através do cronista da palavra ou da imagem, o historiador esta utilizando uma fonte documental importante na construção de um tempo determinado, é o caso de Natal dos primeiros anos de 1910. Exemplo são as crônicas de Henrique Castriciano, publicadas na A República, e as fotos de Bougard, tiradas no alto da torre da igreja matriz de Nossa Senhora da Apresentação. Vejamos:
“Sempre surgem idéias neste sentido apparecem os inveterados pessimistas: ‘Natal não é terra para isto’; cream-se dentes quando tal reconhecer; ora carrapato com tosse; taes são as phrases que somos obrigados a escutar, não raro com impectos de concentrada revolta.
No entanto vamos caminhando, vagarosamente embora, porque os nossos recursos são insufficientes.
De alguns annos a esta parte, construímos o theatro, o jardim, nivelamos e calçamos diversas ruas, entre as quaes a Avenida Rio Branco, cujo aformoseamento era um dos impossíveis desta terra, concertamos o Baldo e o Mercado, a cidade substituiu os seus velhos lampeões de gaz commum pelos de acetyleno”. (CASTRICIANO, 1994, p.15-17).
Este fragmento do texto de Castriciano é bem ilustrativo quando nos referimos a construção histórica, tendo como fonte crônicas, pois, demonstra a utilização de pressupostos históricos na pesquisa do passado urbano. Um viés presente nas abordagens da história das cidades, espaço privilegiado quando se pensa na produção de periódicos locais.
A imagem também tem na construção histórica do espaço da urbe uma importância fundamental, ver a evolução através de fotos captadas no inicio do século XX, é um instrumento metodológico de grande valia para o historiador da cidade. Neste sentido as fotos de Bruno Bougard, fotógrafo suíço que visitou Natal na primeira década do século passado, tem uma relevância muito grande para o oficio do historiador.
A Natal de 1908, encontrada pelo fotografo suíço, tinha pouco mais de 20.000 habitantes, era uma cidade ainda com características coloniais, com ruas estreitas, casas conjugadas e erguidas em um enorme areal. Sua situação geográfica dificultava a locomoção de pessoas, o “caminho” do rio e do mar, eram talvez as melhores opções para os viajantes que aqui aportavam.
Do alto, então, nasceu a cidade sob a vigilância do “alvissareiro”, testemunha ocular da abertura de ruas, do nascimento de bairros e da construção de pontes, Natal de mar, rios e dunas, esta era a cidade vista do alto da torre da matriz, local onde o observador do tempo, pode presenciar as intervenções urbanas ocorridas na urbe. Como fez Bougard em 1908.
Uma cidade em transformação, que conhece o Bond, a energia elétrica, as ruas planejadas de Cidade Nova, bairro criado pela elite republicana, havida em fazer esquecer o passado monárquico, com as vielas do período colonial, com suas habitações insalubres. Essa cidade, então, caminhando para a modernidade tem na escrita poética de Jorge Fernandes o registro do novo tempo construído no período, aqui um pouco tardio, da Belle Époque.
O BONDE NOVO
O bonde que inauguraram
É amarelo e muito claro…
Sua campa bate alegre e diferente das outras…
E seus olhos vermelhos indicam Petrópolis…
Anda sempre cheio por que é novo…
Chega na balaustrada espia o mar…
E os passageiros todos nem olham pro mar…
Só vêem o bonde novo…
Aquele bonde só devia sair aos domingos
Pois ele é a roupa domingueira
Da Repartição dos Serviços Urbanos…
(FERNANDES, 1970, p. 83).
A poesia de Jorge Fernandes, apresenta a cidade moderna, com seus novos meios de transporte, sua nova forma de sentir e ver a paisagem. Uma cidade se modernizando e deixando no baú da memória relatos como o de Eloy de Souza, sobre a dificuldade dos antigos moradores da urbe em acompanhar os cortejos fúnebres. Como sair da Ribeira, bairro baixo da cidade, ir segui até o alto, do hoje Alecrim, onde se encontra o primeiro cemitério da cidade.
“Já perdemos o hábito de fazer quarto aos moribundos e breve chegaremos à perfeição de deixar os defuntos entre a Bica e o Alecrim, por falta de convidados que cheguem ao cemitério.
Pobres mortos! Também é tão difícil ir à vossa morada! O caminho é tão áspero e a areia tão mortificante! […]
Natal, minhas senhoras e meus senhores, se transforma e sente-se que aos poucos irá deixando essa amarga tristeza que ainda lhe dá um aspecto soturno e mau.
Há jardins desgradados e felizmente livres da retouça dos herbívoros e da maldade destruidora de que nos vamos libertando. As árvores já podem crescer na santa paz do Senhor, e a Natureza completará certamente o esforço do homem.
A cidade desperta de seu sonho três vezes secular e eu sinto bem a alegria de ver que a estão vestindo de novo, para alegria de uma vida nova. […]
O mesmo esforço que tem rasgado avenidas empedra o areal, ameniza as ladeiras, saneia as terras alagadas. Começou a viação urbana e o bonde cimentará de vez a obra de pacificação entre os dois bairros”. (SOUZA, 1999, P.44-45)
Na história da cidade encontramos nos cronistas fonte ricas em informações referentes ao processo de urbanização, como essa supracitada de Eloy de Souza, em Costumes Locais. A cidade de Natal em seu processo de urbanização avança em direção as dunas, vencendo as diversidades de sua geografia, chega ao alto, desce o canal do Baldo e aporta no hoje Alecrim. Parte distante da urbe, constrói dois equipamentos urbanos, que os cidadãos de outrora queriam longe do perímetro urbano: O Cemitério e o Lazareto da Piedade, símbolos da intervenção do poder público na zona até então tida como rural. O medico Januário Cicco, descreve o Alecrim dos primeiros anos da década de 1920:
O bairro do Alecrim se desdobra em Bôa Vista, Baixa da Belleza e Refoles. Em plenas ruas do Alecrim, cercado pelas habitações, está o Cemitério de Natal, de edade secular e impróprio, pela saturação, de exercer a sua funcção bíblica de reverter em pó o envolucro da alma do peccador. A uns 200 metros da Cidade dos Mortos ficam fontes de abastecimento d’agua á população de toda a Natal. (CICCO, 1920, p.7-8)
Enfim, como propomos neste artigo, a construção histórica da cidade de Natal através de seus fotógrafos e cronistas, busca encontrar novos caminhos metodológicos da pesquisa histórica, tendo como referencial a produção de imagens e de escritos produzidos entre 1901 e 1920, na cidade de Natal. Ao concluir, lembro Câmara Cascudo e seu Alvissareiro, personagem que nesta pesquisa não encontra-se no alto da torre e sim na produção literária e fotográfica da capital Potiguar.
REFERÊNCIAS
CASTRICIANO, Henrique. A esmo. In: ALBUQUERQUE, José Geraldo de (Org.). Seleta: textos e poesias. Natal: RN Econômico, 1994, p. 15-17.
FERNANDES, Jorge. Livro de poemas. Natal: Fundação José Augusto, 1970.
FERREIRA, Marieta de Morais. Nossa história. Rio de Janeiro, v. I, n. 8, p. 98, jun. 2004.
MESENTIER, Leonardo Marques de. Patrimônio urbano, construção da memória social e da cidadania. Vivência. Natal, n. 8, p. 167-177, 2005.
SOUZA, Eloy Castriciano de. Costumes locais. Natal: Sebo Vermelho; Verbo, 1999.
Do blog: Tok de História
Postado por Fernando Caldas
luciano.capistrano@natal.rn.gov.br
Fonte – http://jornalzonasulnatal.blogspot.com.br/2016/06/vozes-do-passado-construcao-historica.html?spref=fb
O historiador Câmara Cascudo em sua História da cidade do Natal, relata a saga de um alvissareiro, que do alto da torre da matriz, era testemunha ocular das transformações ocorridas na cidade. Nesta pesquisa apresentamos o “alvissareiro” da história, materializado em Manoel Dantas, Luís da Câmara Cascudo, Eloy de Souza, Jorge Wilheim, Henrique Castriciano, Alberto Maranhão, Januário Cicco (memorialistas, poestas, romancistas, entre outros artesãos da palavra) e Bruno Bougard, João Galvão, Manoel Dantas (fotógrafos). A imagem e a literatura, como fonte de pesquisa da história. A imagem sempre esteve presente como fonte importante para entender o passado. Ao longo dos séculos XIX e XX, a fotografia se consolidou como invento, essencial no registro de paisagens naturais e culturais. O documento histórico, não é mais restrito a documentos escritos, cada vez mais, a imagem ganha campo entre historiadores. A utilização desta nova fonte histórica faz parte da nova historiografia.
A literatura em todas as suas vertentes, compõem hoje, com a fotografia uma fonte repleta de possibilidades para a pesquisa histórica. O historiador, por seu oficio, dialoga permanentemente com o passado. Este fazer histórico o leva a andar entre arquivos públicos e privados, buscar construir os caminhos e descaminhos das gerações passadas é a tarefa primeira. Um labutar, por entre, poeiras, revirando velhos manuscritos, documentos, hoje, fontes que dizem mais do que uma carta de amor ou um balancete comercial. O objeto pesquisado não exerce a mesma função de outrora.
No tempo presente o olhar do historiador, dá “voz” ao passado através de sua interpretação do documento selecionado. Construir os caminhos do passado, através da palavra e da imagem, este é o desafio da historiografia atual. Esta pesquisa histórica objetiva a construção da história da cidade de Natal através da utilização do acervo fotográfico do IHGRN (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte) e do jornal A República, e da produção literária do Rio Grande do Norte, tendo como recorte temporal 1901 e 1920. Neste sentido, selecionamos algumas “vozes do passado”, poetas, ficcionistas, memorialistas, enfim narradores de uma época passada, o que possibilita conhecer a transformação do espaço urbano a partir do “olhar” do cronista, materializado no fotografo, muitas vezes não identificado, e dos escritores que testemunharam a ocupação da capital Potiguar.
O educador Henrique Castriciano, Potiguar de Macaíba, amante dos velhos e empoeirados papéis, em uma de suas crônicas publicadas em A República, de 18 de março de 1908, afirmou: sinto um intenso prazer quando me cahe sob a vista, bordado pelos arabescos que as traças costumam por nas laudas antigas, um documento qualquer, onde ventou algum traço de vida dos nossos antepassados (CASTRICIANO in ALBUQUERQUE, 1994, p. 129). É muito prazeroso encontrar testemunhos de nossos antepassados, entre os caminhos das traças.
Os historiadores, até por força do seu oficio, em muitos momentos, já vivenciaram a mesma sensação relatada pelo idealizador da Escola Doméstica. Sobre o trabalho em arquivos, recorremos ao historiador Bacellar(2006,p24):
O trabalho com fontes manuscritas é, de fato, interessante, e todo historiador que entra por essa seara não se cansa de repetir como os momentos passados em arquivos são agradáveis. Grandes obras historiográficas tiveram sua origem nas salas de arquivo, onde muito suor e trabalho foram gastos, após semanas ou meses de paciente e dedicada fase de pesquisa.
Revisando baús antigos, encontramos os testemunhos das gerações de outrora, fontes materializadas em correspondências, relatórios de governos, inventários, testamentos, periódicos, enfim, em uma profusão de fontes impressas das mais variadas matrizes. Em visitas a arquivos públicos ou particulares, também encontramos fotografias, outra fonte importante na compreensão da sociedade do passado, seus costumes, seus dilemas.
Esta construção histórica, caminha de mãos dadas com a memória. A memória constitui-se no elemento essencial na construção da identidade. Deste modo, pode-se apreender que as identidades, coletiva ou individual, formam-se a partir dos elementos da memória. Vejamos o que diz a professora Ferreira(2004, p.98):
A iniciativa de diferentes setores da sociedade para recuperar e divulgar suas memórias, através de livros, exposições, inauguração de monumentos e criação de centros de memória, tem como objetivo reelaborar identidades, difundir uma determinada visão sobre o passado (é bom lembrar que a memória, como a história, é sempre produto de seleção feita no vasto campo do passado), e reforçar a imagem pública de grupos ou personagens. São projetos em geral concebidos para valorizar o registro de trajetórias institucionais ou pessoais, para confirmar, a importância de eventos considerados fundadores, bem como para instituir ou atualizar determinadas celebrações.
A memória é, então, resultado dos vestígios das gerações passadas, ainda preservados, sejam eles na forma material ou imaterial. Reveste-se no elo atemporal, fator de pertença das gerações. A memória social, é assim, o reconhecimento do cidadão do hoje, enquanto construção dos seus antecessores. Como afirmou o professor Mesentier(2005, p.168):
Diferente da memória individual, a memória social se constrói ao longo de muitas gerações de indivíduos mergulhados em relações determinadas por estruturas sociais. A construção da memória social implica na referência ao que não foi presenciado. Trata-se de uma memória que representa processos e estruturas sociais que já se transformam. A memória social é transgeracional e os suportes da memória contribuem para o transporte da memória social de uma geração a outra.
Construir uma “cidade memória” é fazer uma viagem no tempo através de livros, fotografias e periódicos. Fontes encontradas em arquivos particulares e públicos. E como Henrique Castriciano, poder sentir imensa alegria ao encontrar, por exemplo, em um número de “A República”, notícia referente aos espetáculos ocorridos no saudoso Polytheama, brindar nossos olhos com as imagens de Natal, captadas pelo fotografo suíço Bruno Bougard e nos deliciarmos com prazerosas leituras de poetas, ficcionistas, memorialistas e pesquisadores da história urbana de Natal.
Ao olhar o passado através do cronista da palavra ou da imagem, o historiador esta utilizando uma fonte documental importante na construção de um tempo determinado, é o caso de Natal dos primeiros anos de 1910. Exemplo são as crônicas de Henrique Castriciano, publicadas na A República, e as fotos de Bougard, tiradas no alto da torre da igreja matriz de Nossa Senhora da Apresentação. Vejamos:
“Sempre surgem idéias neste sentido apparecem os inveterados pessimistas: ‘Natal não é terra para isto’; cream-se dentes quando tal reconhecer; ora carrapato com tosse; taes são as phrases que somos obrigados a escutar, não raro com impectos de concentrada revolta.
No entanto vamos caminhando, vagarosamente embora, porque os nossos recursos são insufficientes.
De alguns annos a esta parte, construímos o theatro, o jardim, nivelamos e calçamos diversas ruas, entre as quaes a Avenida Rio Branco, cujo aformoseamento era um dos impossíveis desta terra, concertamos o Baldo e o Mercado, a cidade substituiu os seus velhos lampeões de gaz commum pelos de acetyleno”. (CASTRICIANO, 1994, p.15-17).
Este fragmento do texto de Castriciano é bem ilustrativo quando nos referimos a construção histórica, tendo como fonte crônicas, pois, demonstra a utilização de pressupostos históricos na pesquisa do passado urbano. Um viés presente nas abordagens da história das cidades, espaço privilegiado quando se pensa na produção de periódicos locais.
A imagem também tem na construção histórica do espaço da urbe uma importância fundamental, ver a evolução através de fotos captadas no inicio do século XX, é um instrumento metodológico de grande valia para o historiador da cidade. Neste sentido as fotos de Bruno Bougard, fotógrafo suíço que visitou Natal na primeira década do século passado, tem uma relevância muito grande para o oficio do historiador.
A Natal de 1908, encontrada pelo fotografo suíço, tinha pouco mais de 20.000 habitantes, era uma cidade ainda com características coloniais, com ruas estreitas, casas conjugadas e erguidas em um enorme areal. Sua situação geográfica dificultava a locomoção de pessoas, o “caminho” do rio e do mar, eram talvez as melhores opções para os viajantes que aqui aportavam.
Do alto, então, nasceu a cidade sob a vigilância do “alvissareiro”, testemunha ocular da abertura de ruas, do nascimento de bairros e da construção de pontes, Natal de mar, rios e dunas, esta era a cidade vista do alto da torre da matriz, local onde o observador do tempo, pode presenciar as intervenções urbanas ocorridas na urbe. Como fez Bougard em 1908.
Uma cidade em transformação, que conhece o Bond, a energia elétrica, as ruas planejadas de Cidade Nova, bairro criado pela elite republicana, havida em fazer esquecer o passado monárquico, com as vielas do período colonial, com suas habitações insalubres. Essa cidade, então, caminhando para a modernidade tem na escrita poética de Jorge Fernandes o registro do novo tempo construído no período, aqui um pouco tardio, da Belle Époque.
O BONDE NOVO
O bonde que inauguraram
É amarelo e muito claro…
Sua campa bate alegre e diferente das outras…
E seus olhos vermelhos indicam Petrópolis…
Anda sempre cheio por que é novo…
Chega na balaustrada espia o mar…
E os passageiros todos nem olham pro mar…
Só vêem o bonde novo…
Aquele bonde só devia sair aos domingos
Pois ele é a roupa domingueira
Da Repartição dos Serviços Urbanos…
(FERNANDES, 1970, p. 83).
A poesia de Jorge Fernandes, apresenta a cidade moderna, com seus novos meios de transporte, sua nova forma de sentir e ver a paisagem. Uma cidade se modernizando e deixando no baú da memória relatos como o de Eloy de Souza, sobre a dificuldade dos antigos moradores da urbe em acompanhar os cortejos fúnebres. Como sair da Ribeira, bairro baixo da cidade, ir segui até o alto, do hoje Alecrim, onde se encontra o primeiro cemitério da cidade.
“Já perdemos o hábito de fazer quarto aos moribundos e breve chegaremos à perfeição de deixar os defuntos entre a Bica e o Alecrim, por falta de convidados que cheguem ao cemitério.
Pobres mortos! Também é tão difícil ir à vossa morada! O caminho é tão áspero e a areia tão mortificante! […]
Natal, minhas senhoras e meus senhores, se transforma e sente-se que aos poucos irá deixando essa amarga tristeza que ainda lhe dá um aspecto soturno e mau.
Há jardins desgradados e felizmente livres da retouça dos herbívoros e da maldade destruidora de que nos vamos libertando. As árvores já podem crescer na santa paz do Senhor, e a Natureza completará certamente o esforço do homem.
A cidade desperta de seu sonho três vezes secular e eu sinto bem a alegria de ver que a estão vestindo de novo, para alegria de uma vida nova. […]
O mesmo esforço que tem rasgado avenidas empedra o areal, ameniza as ladeiras, saneia as terras alagadas. Começou a viação urbana e o bonde cimentará de vez a obra de pacificação entre os dois bairros”. (SOUZA, 1999, P.44-45)
Na história da cidade encontramos nos cronistas fonte ricas em informações referentes ao processo de urbanização, como essa supracitada de Eloy de Souza, em Costumes Locais. A cidade de Natal em seu processo de urbanização avança em direção as dunas, vencendo as diversidades de sua geografia, chega ao alto, desce o canal do Baldo e aporta no hoje Alecrim. Parte distante da urbe, constrói dois equipamentos urbanos, que os cidadãos de outrora queriam longe do perímetro urbano: O Cemitério e o Lazareto da Piedade, símbolos da intervenção do poder público na zona até então tida como rural. O medico Januário Cicco, descreve o Alecrim dos primeiros anos da década de 1920:
O bairro do Alecrim se desdobra em Bôa Vista, Baixa da Belleza e Refoles. Em plenas ruas do Alecrim, cercado pelas habitações, está o Cemitério de Natal, de edade secular e impróprio, pela saturação, de exercer a sua funcção bíblica de reverter em pó o envolucro da alma do peccador. A uns 200 metros da Cidade dos Mortos ficam fontes de abastecimento d’agua á população de toda a Natal. (CICCO, 1920, p.7-8)
Enfim, como propomos neste artigo, a construção histórica da cidade de Natal através de seus fotógrafos e cronistas, busca encontrar novos caminhos metodológicos da pesquisa histórica, tendo como referencial a produção de imagens e de escritos produzidos entre 1901 e 1920, na cidade de Natal. Ao concluir, lembro Câmara Cascudo e seu Alvissareiro, personagem que nesta pesquisa não encontra-se no alto da torre e sim na produção literária e fotográfica da capital Potiguar.
REFERÊNCIAS
CASTRICIANO, Henrique. A esmo. In: ALBUQUERQUE, José Geraldo de (Org.). Seleta: textos e poesias. Natal: RN Econômico, 1994, p. 15-17.
FERNANDES, Jorge. Livro de poemas. Natal: Fundação José Augusto, 1970.
FERREIRA, Marieta de Morais. Nossa história. Rio de Janeiro, v. I, n. 8, p. 98, jun. 2004.
MESENTIER, Leonardo Marques de. Patrimônio urbano, construção da memória social e da cidadania. Vivência. Natal, n. 8, p. 167-177, 2005.
SOUZA, Eloy Castriciano de. Costumes locais. Natal: Sebo Vermelho; Verbo, 1999.
Do blog: Tok de História
Postado por Fernando Caldas