Tinha um nome longo: José Geraldo Manuel Germano Correia Vieira Drummond Machado da Costa Fortuna. Mas o chamemos José Geraldo ou José Germano.
Nascido em uma família de açorianos que fizeram a vida no Brasil, José foi um órfão criado com seus tios afluentes. Durante os estudos em um colégio de padres foi marcante a visita de índios bororos trazido por missionários para a Exposição Universal da Praia Vermelha. Cresceu familiarizado com o Rio e sua educação cosmopolita se completou em Paris. Tornou-se médico e escritor. Travou uma amizade com um poeta pobre, excêntrico e marginal.
Os apontamentos biográficos acima retratam a vida de José, tanto o autor José Geraldo Vieira quanto o personagem José Germano do romance Território Humano. Em um romance autobiográfico como esse é comum incorrer o risco de superinterpretação atribuindo coisas do personagem ao autor e vice-versa. E José Geraldo Vieira provocava com essa ficcionalização da realidade. Até Álvaro Lins, Gilberto Freyre, Octávio Tarquínio e José Lins do Rêgo fazem um cameo no livro.
A Primeira Parte é esse Bildungsroman acerca de José Germano. Na Segunda Parte, a relação com o poeta marginal domina a narrativa. Esse poeta, Cássio Murtinho, incrementalmente mais paranoico temendo que o amigo o plagie, também foi inspirado em uma pessoa: o poeta potiguar João Lins Caldas (1888 — 1967).
Em Território humano o conceito de Bildungsroman — romance de formação desdobrando o aprendizado, a construção da personalidade e da moral do personagem — confunde com Bildungsbürgertum — a valorização pelas classes médias altas da erudição, gosto e valores do cânone ocidental.
Como a Noite de Santa Valburga Clássica de Fausto e o Círculo 1 do Canto 4 do Inferno, o grand tour de José Germano pela Europa no final da Primeira Parte é um catálogo de cultura geral. Alude a Rilke, Hesse, Peer Gynt, os retábulos da Scuola di San Rocco, a Assunção de Ticiano, o mausoléu do doge Vendramini, o Canon de Avicena, o Colliget de Averróis, o Breviário de Alarico, De Universitati Mundi de Silvestre, o Institutio Oratoria de Quintiliano, Decameron, Savonarola, Miguel Angelo, Cimabue, Brunellesco, o Capitólio e a Ara Coeli, o Coliseu e a Basílica de São Pedro, Piazza di Spagna, o Caffè Grecco, Goethe, Gogol, Stendhal, Byron, Shelley, Goldoni, Chateaubriand, Taine, Leopardi, Thackeray, Schopenhauer, Henry James, Baudelaire, Gounod, Liszt, Wagner, Toscanini, Dante, Boccacio, Doctrinale de Villedieu, Institutio Gramatica de Prisciano, Megalogicon de Salisbury, Tratado de Ortografia de Cassiodoro, a Consolação pela filosofia de Boécio, Virgílio, Petrarca. Sem contar referências de leitura de Flaubert, Anatole, Tolstoi, Dostoiévski, a Bíblia, a Antologia de Fausto Barreto e Carlos de Laet usada durante a preparação aos exames de admissão à Faculdade de Medicina. Aqui e acolá menciona música e cinema; bem como visitas a cafés, livrarias e butiques. Fazendo jus ao termo “encyclopedic novel” do crítico Edward Mendelson, as referências à cultura erudita são copiosas através do livro. Mas nada que intimide ou que obscureça o texto: são reminiscências de quando a familiaridade com esses gênios dava o status de letrado.
Na Segunda Parte o protagonista José Germano volta ao Brasil, casa com a prima Norma, reata com os amigos. Em uma viagem encontra uma jovem senhora leitora de Rimbaud. Uma profecia irônica: como o poeta decadente Verlaine disparou contra o amante Rimbaud, o livro também termina em uma tragédia similar (bem, chega de spoilers). Conhece por meio de amigos comuns a tal jovem senhora, Maria Adriana, e começam uma relação platônica.
O Bildungsroman tipicamente seria uma abordagem histórica, ou seja, diacrônica; mas José Geraldo inova em fazê-lo também geográfico, ou seja, sincrônico. A humanidade é mapeada em Território humano: os vários personagens cuidadosamente trabalhados retratam as facetas possíveis das pessoas. Sendo sincrônico, o romance é tramado essencialmente a partir da alteridade. A relação com o Outro — parentes, colegas de classe ou de viagem, amigos e amores — definem José.
A alternância entre descrição, diálogos e ações faz do texto uma leitura fluida. Os diferentes cenários e registros de linguagem extirpam qualquer possibilidade de narrativa entediante em um enredo até singelo.
A geografia é importante na narrativa. O autor tem a mesma tranquilidade de citar as ruas do Rio como lugares de Paris ou cidades do interior paulista. Às vezes, a alusão é condescendente e pernóstica, como quando explica a toponímia da Villa Halifax:
— Bem, primeiro que tudo não é bangalô nem vilino. É um solar de estilo medieval. E o nome Villa Halifax decorre do fato do proprietário ser canadense.
— Que tem uma coisa com outra?
—Ora, ora! Halifax é a capital da Nova Escócia. (p.408)
José Geraldo Vieira (1897 — 1977), médico tornado escritor e tradutor, publicaria ainda mais romances, contos, poemas e ensaios. Seu aclamado livro Território Humano foi impresso somente duas vezes, uma em 1936 e outra em 1972. Talvez seu cosmopolitismo estivera em contramão aos temas regionais e nacionais dos modernistas, consequentemente sendo com o tempo esquecido. Desde os anos 2000 renasceu o interesse acadêmico pelo autor. Há de se esperar um merecido retorno da leitura da obra. A Editora Descaminhos publicou em 2014 uma versão digital do Território humano e outros livros do autor.
OUTRAS OBRAS DE JOSÉ GERALDO VIEIRA
- O Triste Epigrama. Poema em prosa. 1920.
- A Ronda do Deslumbramento. Contos. 1922.
- A Mulher que Fugiu de Sodoma. Romance.1931. (Edição espanhola: 1947)
- Território Humano. Romance. 1936. 2ª edição 1972.
- A Quadragésima Porta. Romance. 1943.
- Carta a Minha Filha em Prantos. “Romance verdade”. 1946.
- A Túnica e os Dados. Romance. 1947.
- A Ladeira da Memória. Romance. 1950.
- O Albatroz. Romance. 1952.
- Terreno Baldio. Romance. 1961.
- Djanira. Ensaio crítico. 1961.
- A Pintura de Sopp Baendereck. Ensaio crítico. 1965.
- Paralelo 16: Brasília. Romance. 1966.
- Minha Mãe Morrendo. Poema para a Série Trágica, de Flávio de Carvalho. 1967.
- Mansarda Acesa. Poemas. 1974.
- A Mais que Branca. Romance. 1974