[Do
site Substantivo Plural, 23.11.2010]
Por Rudson Pinheiro Soares
O Cine Teatro Pedro Amorim, de Açu, compõe o imaginário de muitas das pessoas que viveram na terra de João Lins Caldas, nos anos 80. Digo isso, para ficar só na minha geração, já que o velho cine teatro teve meu pai, de calças curtas, como freqüentador, nos tempos da energia a motor.
Eu morava na rua de trás, a Aureliano Lopo, também conhecida como a Rua do Córrego. Nas enchentes, era a primeira que alagava, como os aguaceiros de 1967 e de 1974, que vi somente através de fotografias. Depois a de 1985 e, mais recentemente, na invernada de 2008, o Vale coberto d’água, como todos viram. Mas isso é outra história…
Voltemos ao velho cinema. Em minha época, as apresentações teatrais já eram raras. O cinema era o forte. Sessões sempre de noite. Um bom filme passava três dias “encarreados”. Eu era freqüentador assíduo, amigo dos filhos de Josué, o gerente, pessoa boa e digna. Às vezes, eu nem pagava. Outras, entrava apenas para ver o Canal 100. Josué, flamenguista, adorava passar jogos do rubro-negro. Zico na tela grande era emoção obrigatória toda semana. O cinema ficava em um velho prédio, hoje, infelizmente, em ruínas. Além de histórico, era belo. Ali, vi todos os filmes dos Trapalhões. Vi Django, com Franco Nero; Vi os Trinitys Terence Hill e Bud Spencer, além de vários outros. O Desafio do Dragão, filme de Bruce Lee, devo ter visto umas duzentas vezes, já que se repetia muito os filmes e a gente gostava. O duelo final de Lee com Chuck Norris mexia com a meninada. Montávamos uma equipe de forma a contar as porradas que cada um acertava, para chegarmos a um placar. Antes de entrar nas sessões, uma passadinha nos carrinhos de confeitos, no saguão. Eu comprava sempre no de Dona Luzia.
Havia também as sessões de sábado, pela manhã, em geral com filmes de Bruce Lee. Era o dia da feira livre, que funcionava em frente, embaixo dos centenários pés de figo, até hoje de pé. Pegava a moçada que vinha da zona rural. Para os que eram analfabetos, as legendas só atrapalhavam. Mas nada que fizesse eles não entenderem a trama, pelo menos, ao jeito deles. Ao final, saíam narrando para os que não entraram, sempre com demonstrações de golpes, gritos e saltos, aproveitando a escadaria lateral do velho prédio, que, naqueles tempos, já dava sinais de fraqueza. Lembro, eu devia ter uns oito anos, assistindo a Os Três Mosqueteiros Trapalhões, na companhia do meu irmão mais velho, já adolescente. Começou um “toró” e, aos muitos, as goteiras foram deixando de ser o único incômodo. A água, em alguns cantos da sala escura, já dava na canela. Eu e meu mano, de mãos dadas, sem tirar os olhos da tela, corríamos, no escuro, procurando, digamos assim, lugares mais seguros. Vimos o filme até o fim. Nós dois e todos os que lá estavam.
Filmes nacionais era problema, em função do péssimo áudio da sala. Entendíamos pouco. Mesmo assim, ao final, saíamos contando as emoções das tramas. Os filmes passavam em Açu sempre muito depois de terem sido lançados. Para nós, era novidade. O diabo do vídeo-cassete era artigo de luxo. As projeções, que tinham Genilson no comando, na maioria das vezes, muito velhas, eram sujeitas aos cortes e remendos, sempre acompanhados de uma reação uníssona da platéia: “ladrão, fela da puta…” O anonimato da escuridão encorajava a todos. Queria ver alguém gritar na frente de Josué. O homem era bruto, apesar de ser igualmente gente boa. Quando tava com raiva, chamava os seus interlocutores de “seu casseta”. Lembro uma vez, numa exposição de quadros no saguão do cinema, havia placas que pediam para os quadros não serem tocados. Conta-se que, de repente, dois garotos com idades na faixa de nove a dez anos, passeavam as mãos nas telas, identificando casarões do Açu, já que a exposição era de quadros com vistas da cidade. “Ô seus cassetas! Fosse o pau de um burro vocês estariam passando as mãos?”
O cinema do Açu tinha algo que nenhum destes de shoppings têm. Banheiro na própria sala, de forma que dava para tirar a água do joelho sem perder muito do filme. Era a céu aberto, mas com paredes e com chão de areia, de forma a absolver o liquido que lá deixávamos. Cagar era sacanagem, das grandes. Ainda tinha a trilha sonora do Bar dos Motoqueiros, do outro lado da parede, pertencente a Tiquinho, falecido recentemente. As mulheres, quando tinham coragem, iam de duas. Uma ficava na porta, que se mantinha fechada, sob pena, caso aberta, de protestos por razões olfáticas. Os cartazes dos filmes vinham acompanhados das idades recomendadas, naqueles tempos de ditadura, chamadas de censura. Dedé, na portaria, conferia a idade da garotada. Era pela cara mesmo. Era sonho de todos nós completar 18 anos. Só assim poderíamos ver o que os cartazes chamavam de Sexo Explícito. Até lá, faltava ainda quase uma década, muitos se contentavam, inclusive adultos sem dinheiro para o ingresso, com as portas laterais que ficavam abertas, mas tinham tela de arame. Não dava para ver nada, mas, em compensação, o áudio ruim e/ou as legendas não atrapalhavam. A chegada de locadoras em Açu e os vesperais na casa de amigos para ver filmes de sacanagem acabaram tirando muitos das portas laterais do cinema e antecipando, ou melhor, fazendo com que nunca fossem a tais projeções, ao completarem a maioridade. Comigo foi assim. Uma das locadoras da cidade pertencia a familiares meus, de forma que eu tinha acesso facilitado.
Aos poucos, o velho cinema foi entrando em decadência. Em 1987, um dos últimos grandes públicos. Foram necessárias várias sessões, para dar conta de todas as pessoas que queriam ver Jesuíno Brilhante. A saga do cangaceiro fora filmada em Açu, no começo dos anos 70. O cast principal era composto de atores conhecidos nacionalmente. Mas a grande maioria era de pessoas dali mesmo, do Vale. A possibilidade de se ver e/ou de identificar os atores levou a cidade inteira ao cinema. Por essa época, o teatro voltou ao palco do velho prédio. Uma companhia de fora que apresentava sexo ao vivo. Uma novidade no Açu. Sob os protestos das freiras do colégio, a peça foi apresentada várias vezes. Teve ainda, já nos anos 90, a Espertinha, produção açuense assinada por Bago, cineasta da cidade, em razão de sempre filmar eventos, festas, competições. Ter uma câmera era uma novidade. O filme foi casa cheia durante várias noites. Eu tinha 17 anos, mas o critério era a cara, e eu entrei. A Espertinha – creio, devidamente recrutada em uma casa de recursos da cidade – roubava o comércio inteiro do Açu. Acho que foi a forma que Bago encontrou de mostrar todos os patrocinadores, dentro do roteiro. E cada loja que ela entrava, aparecia o letreiro. Ao final, a cena esperada, com um comparsa.
O velho cinema não pôde suportar as transformações produtivas pelas quais passaram o capitalismo naquele fim de século. Lembro que, por uma época, deixou de haver meia-entrada, pelo menos, só para os estudantes. “Meia para todos”, dizia o aviso na bilheteria, numa estratégia que não enganava ninguém. O preço, agora único, disfarçado de meia. Os públicos eram cada vez menores. Além de locadoras, a cidade já tinha lugares mais atrativos para se levar a namorada ou sair com os amigos. Ainda assim, cheguei a ver lá, por essa época, Ghost, com Patrick Swayze e Demi Moore, e Robin Wood, com Kevin Costner.
Em 1992, vim pra Natal, para a ETFRN. Nunca mais entrei no velho prédio. Um dia, tive a notícia, ali já não mais se projetava filmes. Na hora, não tive noção de que se tratasse, talvez, do encerramento de um ciclo. Lá, hoje, não funciona igreja, ao contrário da maioria das antigas salas de cinema, em função das migrações destes para shoppings. Tá abandonado. O teto caiu. Pelo que soube, a prefeitura o adquiriu para transformá-lo em museu. Vendo a quebradeira das locadoras, em função da pirataria, sinto-me vingado. Afinal, elas foram decisivas no processo de derrocada daquela sala mágica. Tenho certeza de que se alguém que viveu aquele período no Açu estiver lendo estas linhas, está derramando algumas lágrimas. Eu já estou enxugando as minhas.
Postado por Fernando Caldas