FAMÍLIA
LINS CALDAS- ORIGENS
O “começo” está próximo, em torno, faz parte das escolhas, da consciência, dos
desejos, das possibilidades e visibilidades: é uma armadilha conhecida. A
“origem” não nos cabe, nos antecede, nos determina, nos condiciona, nos embala,
justifica e engana: a nós somente sofrê-la ou combatê-la quando e onde seja
possível. Aparece com nosso nome, nosso rosto, nossos gestos, nossa palavra,
nossas ações e desejos, mas são vestígios, fantasmas, sobrevivências,
propagações, intumescências, tumores, fósseis. Torna consciência o que é
esquecimento, corpo o que é repetição, gramática o que é genético.
Minha família se divide em cinco segmentos. A primeira, os Lins; a segunda os
Caldas, a terceira os Lins Caldas, a quarta os Guimarães Peixoto e a quinta os
Gonçalves. Os Lins da Alemanha, os Caldas e os Guimarães Peixoto de Portugal,
os Lins Caldas de Pernambuco e os Gonçalves do grande sertão.
Os Lins, família que desce até 1300 com o primeiro que deixou rastro, Heins
Lins, passando por Albercht Lins, Johann Lins, Conrad Lins von Dorndorf,
Zimprecht Lins e Sebald Lins/1508-1597, que foi pai de Cristóvão Lins
(1529-1602), o que chegou a Pernambuco na década de setenta do século XVI para
ganhar a vida no Novo Mundo. Era uma família de comerciantes, aventureiros e
pequeno-burgueses. No Brasil conquistaram terras, roubaram terras, pilharam
terras, mataram homens, moldaram homens, humilharam famílias, torceram
heranças: e se tornaram senhores de muitos engenhos a partir da segunda metade
do século XVI. Sempre foram terra a terra, metidos a aristocratas, finos e
ricos. Nulidades que se articularam com todas as grandes famílias pernambucanas
e ainda hoje são bem postos, arrotando descendências e poderes perdidos. Jamais
os considerei como família, tendo de suas existências somente uma fria
indiferença.
Os Caldas eram comerciantes e funcionários, chegaram no século XVIII por razões
que somente eles sabem, mas nada grandioso ou aventuresco. No fim deste século
houve uma união destas famílias, nascendo o Lins Caldas como sobrenome
conjunto, deixando de ser tanto Lins quanto Caldas, que seguiram seus caminhos
independentes. O que me interessa é que logo depois dessa união nasceram dois
senhores de engenho (os “Dois Irmãos”, das terras onde hoje fica o zoológico do
Recife: muito bem localizado: lugar de bicho): Thomas e António Lins Caldas,
filhos do primeiro Lins Caldas: Luiz José Lins de Caldas, senhor de terras,
títulos e escravos. Esta família continuou com suas terras e escravos, enquanto
Thomas Lins Caldas engravidou uma escrava chamada Balbina, conhecida
familiarmente por Babá, seguindo seu obscuro caminho familiar com a esposa
real. Dessa união gilbertofreyriana nasceu Francisco Lins Caldas (1825-1907),
criando um ramo dos Lins Caldas que não teve direito as terras, aos escravos
nem tampouco a paz de espírito de quem nasce bem. Foi advogado, estudou na
Faculdade de Direito, e iniciou a família que reconheço como minha: ele é o
fundador, inclusive do orgulho e da prepotência que nos acompanha e arruína,
mas ao mesmo tempo da inteligência e da sensibilidade que justifica esses
pecados até mesmo na primeira cornija do baixo purgatório.
Este Francisco é meu trisavô. Ele não nos transmitiu tão somente a vida e os
humores dos Lins Caldas, mas da escrava Balbina e da sua própria posição e
sentimentos de quem vive “fora da sociedade” mesmo dentro, mesmo enganando,
mentindo e se escondendo: era “acinzentado”, quase branco, um metro e noventa;
cachaceiro, atrabiliário, desbocado e que negava a mãe; tinha um cartório em
Olinda; mas no fundo considerava-se um nada e nunca aceitou isso. Tornou-se o
máximo que sua condição permitia: advogado. Um paria integrado. Um bastardo que
recebeu um nome, uma profissão, mas não recebeu um passado e teve que trabalhar
pelo que teve. Pelo que desejou. Ele criou, querendo ou não, o passado familiar
que se cola à minha carne, sonhos e desejos: ele é a origem. Quando muito
velho, já dentro do século XX, matou-se por não suportar mais um soluço
renitente: matamos e morremos por soluços ou suspiros: somente ninharias nos
fazem perder a cabeça. Seu desdém ao povo, aos outros que não os familiares
muito próximos, o horror ao mundo possuía fundamento na fuga, no não
enfrentamento, na não consciência ou até mesmo na consciência aguda demais de
sua posição social, financeira, racial. O que nele foi verdadeiro em nós é
somente um espectro sem suporte.
Meu bisavô foi um dentre seus muitos filhos com Rosa: Herculano Lins Caldas
(1871-1940), advogado e promotor, que se casou com Elisa dos Guimarães Peixoto
(1869-1909), onde se articula o antiderradeiro segmento familiar. Esses
Guimarães Peixoto eram metidos a bestalhões, aristocratas branquinhos e bem
postos (a presença de Francisco no desejo de reverter de Herculano), vindos de
um Portugal caduco e de um Império colonial ridículo. Elisa, que fugiu com meu
bisavô pelas ladeiras de Olinda, era filha de Pedro D'Alcântara dos Guimarães
Peixoto (1829-1883) e de Ninpha de Morais dos Guimarães Peixoto (1836-1907).
Pedro era filho de Vicente Ferreira dos Guimarães Peixoto (1781-1840), que
deixara para a família a honra de haver sido o médico da Imperatriz e um brasão
(Quascumque Findit, sob quatro leões patéticos segurando espada e maça,
cheio de borlas, coroas e gestos) dado pelo Imperador Pedro I. Esse vazio
orgulho familiar deixaria marcas profundas de horror em meu avô Osíris dos
Guimarães Peixoto Lins Caldas (1898-1978), filho de Herculano e Elisa, que
riscou os Guimarães Peixoto do nome e da vida, jamais os aceitando, sendo
somente Osíris Caldas a vida inteira.
Desses Guimarães Peixoto inúteis brotou, pelo menos, dois momentos estranhos e
antagônicos. Um deles, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (o insuportável
Olavo Bilac, o “Olívio Biloca” das portas de banheiro) e Ana Lins dos Guimarães
Peixoto Bretas (a Cora Coralina), prima do meu avô. O primeiro um aleijão
poético, uma vaca de presépio, e a segunda uma impossibilidade velha, familiar
e rural: um milagre além do inexistente marido: um caso provinciano de
literatice.
O último segmento familiar é o da minha mãe: os Gonçalves. Eram comerciantes e
fazendeiros, se perdendo dentro do processo de colonização indo e vindo do
sertão. Meu avô, João Batista Gonçalves (1907-1945), era farmacêutico e minha
avó Severina Cadete (1909-1962), com sua morte, continuou com a farmácia para
tentar sustentar a imensa ninhada. Ele era senhor de muitas terras e casas
antes de ser assassinado pelas ninharias que perturbam os Lins Caldas vindos de
Francisco, mas que não eram importantes aos Gonçalves: morreu inocente (se
tenho alguma bondade e inocência devo a este avô a este ramo familiar), o que
não acontece com os desequilibrados descendentes do filho da escrava: não
aceitamos a ingenuidade, a inocência, o trabalho honrado, as horas perdidas com
ninharias, as festas, as conversas vazias, a inutilidade, a burrice gratuita:
podemos morrer por qualquer razão, menos por inocência e bondade.
Tudo isso (achaques, raivas, depressões, sentimentos, iluminações) chegou até a
mim vindo diretamente dos meus avós, dos meus pais, tios e tias. Faz parte do
que não me pertence, do que não domino, do que não vejo razão mas sigo pensando
que sou eu. E não deixa de ser. Somos uma soma de fantasmas, de corpos que não
vemos, de programas escritos por outras mãos, outras vidas, escrituras que nos
compõem como uma grande partitura viva e muito mais complexa que a nossa vã
Ciência.
COMEÇO
Nasci numa casa recheada de livros: esse é o meu universo desde o começo. E uma
casa onde se reuniam os amigos do meu pai para conversarem sobre o mundo, a
cultura, a política, o teatro, as religiões, as crenças, a musica, a poesia, a
Geografia, a História (cada uma destas palavras conduz a várias histórias), em
grandes batalhas, às vezes pública, onde se reuniam interessados de todas as
áreas, cada um armado com imensos livros, infindáveis bibliotecas e razões.
Dali pelo menos um nome se estabeleceu na literatura: Ângelo Monteiro, um dos
melhores poetas da sua geração. Foi professor do Departamento de Filosofia
(UFPE) e fez a articulação entre o Movimento Armorial e alguns de nós.
Meu avô (Osíris Caldas) recitava de cor, caminhando no colorido de muitas
tardes, seu querido Molière, ou poemas em espanhol. Era Coletor Público mas
tinha um teatro onde reunia um grupo criativo e conversador. Havia começado a escrever
nos jornais do Recife em 1914, finalizando em 1970, quando a impressa deixou de
ser familiar ao seu mundo (compôs, numa imensa e negra máquina de escrever,
dois artigos por dia durante cinqüenta anos para o “Jornal do Comércio” e para
o “Diário de Pernambuco”); publicou livros, escreveu e representou muitas peças
de teatro, mas gostava mesmo era de dirigir Shakespeare, e se deleitava
recitando para mim passagens inteiras de uma peça da sua paixão (Otelo e, às
vezes, Romeu e Julieta), trechos de Sófocles quando estava triste ou, para
rirmos, histórias fantásticas. Mas seus livros, artigos, peças, ensaios, sua
visão de mundo não eram, e talvez não devessem ser, cosmopolitas. Estava preso
a um universo nordestino, década de vinte e trinta, provinciano, mesmo tendo me
aberto os olhos para uma sensibilidade que somente ele foi capaz de me
transmitir, uma poeticidade que só muitos anos depois pude reerguer do seu solo
de esquecimento. A ele devo a paixão pelo teatro, por certas músicas e poemas,
por uma inflexão schopenhaueriana, por uma vida dedicada somente ao que nos
arrebate, e ao nosso Shakespeare.
Meu tio paterno (Carlos Alberto Bruno Lins Caldas) era pintor e desenhista. Foi
através dele que conheci as artes plásticas, e fui seduzido pelas cores, pelas
transparências falsas, pelo movimento imóvel, pelo cheiro das tintas, da
terebintina, a moleza ou dureza dos incontáveis pinceis, a paixão pelos murais,
pelo cubismo, por Picasso e Dali, e por uma atuação incisiva na política num
tempo muito perigoso. Junto com meu pai formaram a idéia que carrego ainda
sobre o que é e como deve agir um intelectual, como deve ser um intelectual.
Meu pai (Alberto Frederico Lins) foi professor do Departamento de História da
Universidade Federal de Pernambuco (lugar que me estaria reservado se não fosse
pela dura luta contra todos, esta doce maldição). Minha vida foi acompanhar
suas amizades, leituras, pesquisas, escritas, publicações e polêmicas (foram
muitas, mas as principais com Osman Lins, Agnaldo Silva, Mário Melo e Aglae
Lima foram memoráveis). Ele escrevia no Diário de Pernambuco, ganhava prêmios,
vivia no Arquivo Público passando horas em intermináveis pesquisas, ensinava e
isso definiu meu horizonte futuro: mas numa reflexão “depois da festa”. Passei
muitos anos fugindo dessa direção. Até que, em 1983, comecei a estudar mais
seriamente História. Mas antes alguém me foi de fundamental importância
intelectual.
Enquanto meu pai me apresentava a muitos dos seus amigos (Gilberto Freyre,
Ariano Suassuna, Flávio Guerra, Nilo Pereira, Pinto Ferreira, Mauro Mota,
Marcus Prado), entregando-me certa literatura brasileira (José de Alencar,
Machado, Lima Barreto, Humberto de Campos) e portuguesa (Camilo [sua absoluta
paixão], Herculano, Eça, Júlio Dinis, Guerra Junqueiro), a História (Gilberto
Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Braudel, José António Gonçalves de Melo), a
Geografia dos mapas, as “geomorfologias” euclidianas n'Os Sertões (paixão
paterna que somente nos últimos anos tenho reconquistado), a História Regional
e o Romance Histórico (Walter Scott, Victor Hugo, Alexandre Dumas, Michel
Zevaco), - Gláucio Veiga, catedrático da Faculdade de Direito do Recife, amigo
do meu pai, marxista e escrevendo sua monumental “História das Idéias da
Faculdade de Direito do Recife” (13 volumes), me apresentou, em muitas
conversas, leituras e anos, Hegel, Marx, Weber, Heidegger, Ortega y Gasset,
Braudel, Balzac e Proust.
O contato entre essas visões de mundo díspares (Camilo/Proust – Marx/Freyre,
Braudel/Melo), em plena ditadura, possibilitou uma visão de mundo polifônica,
aberta, móvel, contraditória e sem exigir conciliação: todas as visões cabiam
no mundo e seu rotacionar, no mundo e suas ficções, no mundo e suas escrituras.
Nas bifurcações proustianas mundos inteiros apareciam e desapareciam, feitos de
tempo e memória, de palimpsesto e desejo. A História, o pensamento, a
literatura, não poderiam fundar seu reino numa única perspectiva, numa única
verdade. História, Antropologia, Arqueologia, Sociologia, Filosofia e
literatura se entrelaçavam num único processo vivencial, visceral. A separação
seria uma violência. Na “minha” Dialética não cabiam mediações, o que causou
sempre combates infindáveis entre amigos e companheiros. Dos dois (Gláucio e
meu pai) fiquei com o que havia de melhor. A crítica marxista de um e do outro
o gosto pelo estilo, pela abrangência dos interesses, tornando “o social” e “o
histórico” algo mais rico que o tradicional; e a tara pelos livros, a sedução
pela escrita.
Enquanto minhas leituras infantis (década de sessenta) eram essencialmente
aventurescas, pura imaginação (os volumes de Tarzan, de Edgard Rice Burroughs,
o Sherlock Holmes de Conan Doyle, as delícias de Júlio Verne, as destrezas de
Maurice Leblanc com seu Arséne Lupin, o universo insuperável de Michel Zevaco
com seus Pardaillans, os “contos maravilhosos” de muitas literaturas) - uma
experiência arriscada a travessia de cada livro, as do começo da adolescência
(1969/1970/71/72) eram essencialmente literárias, formativas e inescapáveis
(Sófocles, Dante, Boccaccio, Montaigne, Shakespeare, Cervantes, Goethe,
Melville, Dickens, Stevenson, Wilde, Poe, Graciliano, Drummond); na
adolescência (o resto da década de setenta) as leituras (sempre obsessivas na
quantidade, na qualidade e no labirinto de gostos, coisa que marca
profundamente a cartografia intelectual da minha biblioteca) começaram a se
dividir entre a História, que meu pai me apresentava (uma História sempre
“acontecida de verdade”, jamais teórica, como “O Domínio Holandês em
Pernambuco” de Watjens e “Memória de um Senhor de Engenho” de Julio Bello, ou
temas obsessores como as Famílias, os Engenhos de Açúcar, a Segunda Guerra
Mundial, Hitler, o Vietnam, a Coluna Prestes), e novos mundos que foram
surgindo muito fortes como a Antropologia, a Arqueologia, a Psicanálise, Marx e
os marxismos, Darwin e a Biologia Evolutiva, Hegel e a Filosofia, a História e
a Filosofia Marxista, Sartre e todos os existencialismos, tudo dentro de uma
clivagem inesperada (Sade, Dostoievski, Nietzsche, Rilke, Joyce, Svevo, Camus,
Pirandello, Genet, Ionesco, Beckett, Arrabal) que foi me afastando, no fim da
adolescência (1977), daquela formação literária inicial, descomprometida a não
ser com o prazer e a descoberta de mais prazer, como se não fizessem parte de
um mesmo movimento, exigindo de mim, muitos anos depois, um esforço de síntese
que ainda não concluí completamente.
Sobre essa “cultura em formação” pairava um “grande espírito”: Gilberto Freyre.
Gláucio Veiga o odiava com amor, havendo polemizado com ele algumas vezes,
terminando por se reconciliar muitos anos depois; meu pai o amava e admirava,
tendo me levado para conhecê-lo em Apipulcos, onde conversamos, ele velho e com
aquela perna sobre o braço da cadeira, sobre muita coisa enquanto meu pai
recordava momentos comuns. Gilberto não somente foi um dos primeiros a discutir
assuntos como a história da comida, do corpo, da infância, da sexualidade, das
habitações, mas isso com dignidade de “grande tema”, sempre numa articulação
viva, vibrante, convincente, profundamente literária e complexa com uma força
de quem queria criar um povo. Ele fazia parte daquela mono-cultura recifense,
feita com o isolado das ilhas mas convivendo com o link das pontes e do
porto, o aberto e o fechado, o mar, o mangue, a terra. Mas essa simbiose, essa
rede viva de caranguejos, navios e histórias, era aristocrática - mesmo quando
falava do povo, com o povo (Tobias, Freyre, Ariano, Cabral, Brennand). Essa
aristocracia é o que expulsa e maltrata (“Recife, cidade cruel”) todos aqueles
que diferem, todos aqueles que abolem a terra em nome do mar, ou aceitam o
mangue contra a terra e o mar.
Alberto Lins Caldas
Professor de Teoria da História - UFRO
caldas@unir.br