domingo, 28 de novembro de 2010

A POESIA OCULTA DE OTHONIEL MENEZES1

Ilustração deste blog. Fotografia: Do blog Glosando o mundo...

Celso da Silveira2

Othoniel Menezes (1895-1969), cognominado “príncipe dos poetas norte-rio-grandenses”, autor de meia dúzia de livros de poemas, a maioria de sonetos, imortalizou-se, entretanto, pela canção que se popularizou com o nome de “Praieira” ou “Serenata do pescador”, musicada por Eduardo Medeiros, um músico autodidata que não ficou esquecido graças a essa “pérola do amor” que é o poema de Othoniel.
Othoniel viveu uma vida nômade a partir de tenra idade, sendo vítima de infortúnios mais de que de aventuras. Menino, teve de se deslocar da terra natal para o sertão seridoense feito carga em lombo de animal, fazendo uma retirada ao inverso, num comboio de burros, quase imitando a fuga de Jesus para o Egito, para salvar-se. Sofrera, ainda no ventre materno, os efeitos da bexiga contraída por sua mãe na gravidez e foi acometido de varíola com menos de dois anos de idade. Foi servidor público mal remunerado, carregou uma velhice de pobreza até o extremo de precisar da ajuda de amigos e do Lions Clube de Natal, quando residia, quase esquecido e doente, à rua Correia Teles, Cidade Alta, em Natal, onde nos idos da década de 1950, como repórter de A República, fui entrevistá-lo por conta da repercussão de suas necessidades para sobreviver, denunciadas na Assembléia Legislativa pelo então deputado Túlio Fernandes.3 Foi a partir desse momento que conheci o Othoniel Menezes amargurado, que fora amigo do meu pai – João Celso Filho4 – em Assu, quando ali esteve à frente da Mesa de Rendas Estaduais. Othoniel contou, na entrevista, que o seu livro Sertão de espinho e de flor, premiado com a publicação por força de uma Lei Estadual5 há cerca de doze anos, só fora editado pelos esforços e boa vontade do diretor da Imprensa Oficial, e também poeta Antônio Pinto de Medeiros, mas censurava muito a qualidade do papel em que foi impresso – papel jornal.
Esse livro não deve passar sem uma reedição, porque constituiu a obra poética mais importante do autor potiguar. É um canto ao “sertão selvagem de Euclides”, como ele preconizou numa sextilha septissilábica no Canto I, um documento testemunhal de uma época no interior do estado nordestino, um trabalho de antropologia cultural, a descrição de costumes, práticas e comportamentos sertanejos, num Rio Grande do Norte primitivo e rude, palmilhado apenas por cascos de animais. Sertão de espinho e de flor, guardadas as devidas proporções e a geografia do espaço onde se desenrolam as cenas e situações enfocadas, eu diria que equivale à Ilíada e mesmo o situaria como nossa divina comédia.
Mas, não é o Othoniel Menezes do Jardim tropical (1923), da Canção de montanha (1955) e do Sertão de espinho e de flor, (1952) que trago para este registro de sua obra. Aqui desejo revelar um Othoniel  ocultado, desconhecido, ignorado, insuspeitado, salvo revelar presença de espírito de João de Oliveira Fonseca (1917- 1989), seu colega, como funcionário da construção da Base Americana de Parnamirim e, como poeta, um assuense que voltou à terra natal para jamais abandoná-la até à morte. Aqui me refiro ao Othoniel Menezes fescenino, pornográfico, proibido, indiscreto, impublicável.
O poeta João Fonseca é autor da trova que anda nas antologias dos trovadores nacionais: “Amor é ver mordidura / de aranha caranguejeira / se não mata a criatura / aleija pra vida inteira”. A esta trova Othoniel respondeu:

Diz Fonseca – A Terra inteira 6
não és Tu, Deus, quem governas!
É a aranha caranguejeira
que a mulher tem entre as pernas.

A verdade que isto encerra
nada tem de ímpia ou estranha
o Sol, que domina a terra
tem a forma de uma aranha!

Othoniel, cujo convívio tive o privilégio de privar, juntamente, ao de Jayme Wanderley (outro grande poeta esquecido, autor de Espinho de jurema, partícipe da turma de Jorge Fernandes e Cascudinho, em 1928), sempre se revelou uma pessoa sofrida, magoada, amargurada e descontente com a sua pobreza.  Orgulhoso
de sua obra poética, como ser humano não se dobrava a ninguém para pedir o que quer que fosse. Em sua passagem pela construção da Base, alguém observou que ele vestia uma camisa com o colarinho puído7 e ele não demorou na condenação ao observador maledicente:

A camisa rota, oh corno
e tal qual só você viu
foi de uma foda no torno
com a puta que lhe pariu...

E segue:

Ninguém deve ser julgado
pela camisa que veste:
mesmo bem encadernado
sacana é coisa que preste?

Melhor é andar maltrapilho
viver-se do que se ganhe
do que, cafetão e não filho,
luxar com o suor da mãe...

Ouve agora a eterna lei:
todo de seda ou no enxurro,
um poeta é sempre um rei
– e um burro é sempre um burro!.

Na Base, em 1943, parece que Othoniel era apenas um burocrata encarregado de preencher as requisições de materiais solicitados pelos engenheiros ou mestres-de-obras. Nessa época era funcionário da Base, o jovem Gumercindo que, segundo informação de João Fonseca, era o próprio Gumercindo Saraiva,8 que se tornou pesquisador, escritor, musicista, folclorista, ensaísta, autodidata que pertenceu à Academia Norte-Rio-Grandense de Letras e faleceu tocando seu instrumento predileto – o violino (1915- 1988), porque Gumercindo, como encarregado do depósito de material, espécie de almoxarife, às vezes fazia restrições aos pedidos preenchidos pelo poeta. Certa vez Othoniel foi cáustico com o outro:

Cagando mais do que come,
só tem um jeito você:
substituir, no seu nome,
a inicial por um “C”!

E esta outra quadrinha:

Se merda entrasse na obra,
Gumercindo, abrindo o tampo,
forneceria, com sobra,
cimento pra todo o Campo.

16.02.43

Dessa mesma fase há algumas quadrinhas em que o poeta fustiga, causticamente, as figuras que não se enquadravam na sua empatia afetiva. Não há história a contar, mas as duas quadras que seguem fazem sentido por si mesmas, mostrando que o poeta não suportava os erros matemáticos do colega:

Beata velha xibiu,
cu velho birrento e arcaico,
em que compêndio é que viu
metro ao cubo de mosaico?

Pomboca não multiplica!
Fruta velha não dá goma!
Diga se foi com tal pica
que andou brochando esta soma!

Mas, a face maldita do poeta de “Praieira” não estancou aí. Parece que ele estava com furor mórbido para condenar Deus e o Diabo na terra do Sol. No rol dos colegas, na Base de Parnamirim, só Fonseca foi poupado. Quem fizesse qualquer restrição, ou tecesse comentário desairoso ao trabalho de Othoniel, sofria as conseqüências do seu tacape arrasador. Por esse mau pedaço passou um certo “censor”, sobre quem ele aconselha a assumir a mesma atitude de Apeles – não passar dos sapatos. Vejam só:

Suas funções não confunda,
dos seus tamancos não desça,
– você só pensa com a bunda,
só caga pela cabeça!

Pobre de quem o poeta não simpatizasse. Contra esses, ele usava sua verruma afiada, sem meias palavras, como um ditador absoluto usa seu poder exterminador:

A ensinar-lhe higiene, eu entro
com um conselho em que insisto:
abra o cu e escarre dentro
que ele só serve pra isto.

Aí está um outro Othoniel Menezes, “príncipe” da pornografia – uma poesia mal compreendida no RN, onde nem sempre a intelectualidade está informada de estudos muito sérios de autores responsáveis que pesquisaram poetas greco-romanos e latinos da antiguidade clássica, sem falar no poeta Manoel Maria Barbosa du Bocage, neles detectando palavrões da fala do povo, como “pica”, “corno”, “greta”, “puta”, “teta”, ou não leu em Eça de Queiroz a descrição de uma cena de minete, ou desconhece um poeta da seriedade de Carlos Drummond de Andrade, algumas vezes indicado para Prêmio Nobel de literatura, que tem um poema intitulado “A língua lambe”9, recentemente publicado no jornal “Folha de São Paulo”, em que faz a apologia da língua como instrumento sexual.
Como nota final, acrescento: Othoniel Menezes, Jayme Wanderley, Meira Pires10 e eu, todas as manhãs, a partir de 9 horas, em 1952, reuníamo-nos em torno de uma mesa do Tabuleiro da Baiana, à Praça Augusto Severo, servidos pelo garçom Fumaça, para cafezinhos e conversas. Eu estava com o livro de estréia no prelo da Tipografia Vilar, na atual rua Câmara Cascudo – 26 Poemas do Menino Grande11 – e ele me estimulou muito a escrever.
Visitou, com Jayme – que a gente chamava “Poetajeime” -, a tipografia para acompanhar a composição, impressão e confecção do livro.
Tanto ele quanto Jayme fumavam um cigarro atrás do outro, às vezes acendendo o novo cigarro com a ponta do que acabavam de fumar. Escondia suas privações, mas não podia esconder a amargura de não ter um lugar ao Sol e não ter sido contemplado com uma situação econômica que o livrasse das dificuldades financeiras porque passava.
Othoniel e Jayme tiveram suas musas inesquecíveis, cuja memória era sempre evocada por eles: Maria, de Othoniel, e Miriam, a primeira esposa de Jayme.

Notas

1 Matéria publicada no jornal O Poti edição do dia 27 de outubro de 1991, um domingo. OM, em casa, nunca proferiu uma palavra chula, obscena, pornofônica. Era exigente com os filhos, nesse aspecto. “Fresco” e/ou “veado”, na sua boca, no lar, não passava de “pederasta” – e olhe lá!
2 Celso Dantas da Silveira (Assu/RN, 25.10.1929/Natal-RN, 02.01.2005). Jornalista, professor, ator teatral, poeta, escritor, editor e boêmio. Escreveu ou organizou dezenas de livros. Seu maior sucesso editorial – considerado até os dias de hoje como o maior best-seller potiguar, com quatro edições (uma delas, a última, não autorizada pelos herdeiros) - foi Glosa glosarum, uma coletânea de glosas fesceninas por ele organizada. Celso, ainda que fosse um ótimo poeta moderno, não escrevia glosas (décimas). Era, sim, um construtor de motes deliciosos, provocando os glosadores. O “gordo Celso” – como lhe chamavam os amigos – era prodigioso causeur. Bebia bem e comia ainda melhor, alegre, amigo, brilhante. Foi casado com a inesquecível poetisa Myriam Coely de Araújo (ver nota 79, em A canção da montanha).
3 Túlio Fernandes de Oliveira. Bacharel em Direito e político, filho do poeta e magistrado Sebastião Fernandes, sobrinho de Jorge Fernandes. Casado com a educadora e jornalista Chicuta Nolasco Fernandes. Foi deputado estadual em vários mandatos.
4 João Celso Filho morreu na Fazenda Limoeiro, de sua propriedade, em 14 de novembro de 1943, no Assu-RN. Advogado, professor, proprietário rural, dramaturgo, contista, orador e poeta. O edifício do Fórum, em Assu, tem o seu nome. Fazia glosas fesceninas.
5 Lei Estadual n. 145, de 1900, já citada.
6 João Fonseca, durante décadas, guardou os fesceninos do amigo, ciosamente. O autor destas notas os leu a primeira vez, em Assu, em 1957.
7 Publicada em vários jornais do Estado (RN), uma crônica do autor destas notas revela detalhes do acontecimento:

A CAMISA DO POETA

No tempo da guerra, muita gente se empregou em “Parnamirim Field”. Dentre esses pioneiros burocratas – recrutados, diziam, sob o olhar atento do pastor batista doutor Mateus, tido como coronel da inteligência da
USAF –, estavam Othoniel Menezes, o poeta da “Praieira”; “seu” Galvão, pai do professor Cláudio Galvão – este, escritor e pesquisador emérito; Deoclécio Sérgio de Bulhões, homeopata, homem boníssimo e caridoso que mais tarde seria vereador em Natal, por muitas legislaturas; Agenor Ribeiro, depois empresário; Rômulo “Minha gata” que, deixando Parnamirim, foi para o Banco do Brasil; Emanuel Rivadávia, também, posteriormente, servidor do BB, no México e nos Estados Unidos. Fluente em inglês, traduziu e leu para o general Eisenhower, em 1945, um discurso escrito por Othoniel, saudando o futuro presidente dos Estados Unidos, em nome do pessoal civil da Base. Misturando-se a essa boa gente, para lá também acorreram alguns “artistas” do Grande Ponto, filhinhos de papai, arranhando inglês, charlando, dançando fox no Aero, bodando na praça Pedro Velho.
Na sopa (ônibus), guiada por “Charuto”, negão forte e valente, embarcava o pessoal na Pracinha (“Pedro Velho”, hoje “Cívica”) e embiocava na “Parnamirim Road”, a “Pista”. Fazia pit stop no portão da Base, ia em frente e deixava os “porcos” no Post of Engineers. “Porco”, era o apelido dado aos funcionários subalternos, operários, que viajavam nas carrocerias dos caminhões – alcunha que depois se generalizou.
De Natal à Base, no ônibus, não viajando criança ou mulher – o que era raro – a esculhambação era grossa. Vida alheia, anedotas cabeludas, acenos para as peniqueiras no trajeto, algazarra, esbórnia total.
Othoniel Menezes, arredio, desconfiado, da raça irritável dos poetas, como afirmava Virgílio, somente com os mais íntimos trocava piadas. Era sofrido, pobre – mas, altivo, culto e probo. Jornalista de renome, secretário do jornal A República, amigo de Café Filho, socialista, admirador de Luiz Carlos Prestes, escrevera em 1935, praticamente sozinho, o jornal A Liberdade. Tachado de “comunista”, passou quase três anos na cadeia. Em Parnamirim, não ligava para o apelido de “Ipecacuanha” (tinha mania por chá caseiro!).
Deu o troco ao autor da proeza, o colega Deoclécio Bulhões, caridoso esoterista e homeopata, que tinha uma imponente trunfa: sapecou-lhe a alcunha de “Professor Bendengó”! Prudente, o vate guardava distância dos “artistas” do Grande Ponto, alguns deles, até, filhos de amigos e parentes.
O diabo, porém, atenta! Quando não dá o ar da graça, de corpo presente, manda um secretário. Um belo dia, na rebarba de uma daquelas algazarras, do fundo do coletivo, ouviu, clara e maliciosa, a acaçapante e maldosa agressão: “Othoniel, poeta da camisa rasgada!”
Vilipendiado, trêmulo, em cima da bucha, levantou-se e partiu pra briga. Era homem de coragem comprovada. Não conseguiu chegar à patota. Os amigos não deixaram. A cotiada camisa que vestia, cerzida e passada, engomada, pelas mãos da sua Maria, era tão-só o espelho da sua pobreza respeitável e resignada. Não lhe pisassem! Não conseguiu identificar o autor da agressão gratuita. Nunca soube quem foi, nunca lhe disseram.
Minutos depois, já no Post of Engineers, ainda pálido, calado, à vista dos companheiros solidários, sentou-se à mesa e, a manuscrito, em letras garrafais, numa folha de cartolina made in USA – depois afixada no Quadro de Avisos – fulminou o gaiato:

A camisa rota, oh corno,
e tal qual só você viu,
foi de uma foda no torno
com a puta que lhe pariu!

“Ipecacuanha”, então, esboçou um acanhado sorriso para o futuro vereador – o “Professor Bendengó” – e encerrou, para sempre, “o assunto”.
8 João Fonseca e Celso da Silveira enganaram-se. O “alvo” de OM não era, à época, o futuro escritor e musicólogo. O Gumercindo era outro, sujeito muito gordo e avermelhado, chefe dos bombeiros encanadores) do Posto de Engenharia da Base Aérea. Sobre Saraiva, ver nota, em Sertão de espinho e de flor.
9 O poema de Drummond: “A língua lambe as pétalas vermelhas/ da rosa pluriaberta; a língua lavra/ certo oculto botão, e vai tecendo/ lépidas variações de leves ritmos./E lambe, lambilonga, lambilenta,/E lambe, lambilonga, lambilenta,/a licorina gruta cabeluda,/ e quando mais lambente, mais ativa,/ atinge o céu do céu, entre gemidos,/ entre gemidos, balidos e rugidos/ de leões na floresta, enfurecidos”.
10 Inácio Meira Pires (Ceará-Mirim/RN, 15.03.1928-Natal/RN, 18.11.1982). Ator e teatrólogo. Diretor, por longos anos, do então Teatro Carlos Gomes, em Natal. Mudou o nome da casa de espetáculos para Teatro Alberto Maranhão. Participou do Conselho de Cultura do Estado e da Academia de Letras. Por breve tempo, chegou a ser diretor do Serviço Nacional de Teatro.
11 Publicado em 1952, com impressão da Tipografia Vilar, Natal.
 
(Nota do blog: Agradecemos ao poeta e cronista Laélio Ferreira (filho do grande bardo Othoniel Menezes), pelo envio do belo texto transcrito acima que, certamente, engrandece a história da literatura potiguar). 
 
Fernando Caldas

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