segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A RESIDÊNCIA NA TERRA DE MARIA EUGÊNIA MONTENEGRO

Fotografia: Ilustração do blog.

Por Márcio de Lima Dantas, professor de Literatura Portuguesa do Departamento de Letras da UFRN

Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!


Manuel Bandeira


Diante da fachada, de um azul intenso, a memoração com sua vertigem soberana, solenemente aciona aquela sensação de quando nos defrontamos com um objeto estético ou agente impregnado com a pátina da História. A larga calçada clama a deferência, lançando-nos nos recônditos de um imaginário que diz para retirarmos as sandálias. É uma antiga casa. Sua simetria rigorosamente bilateral é composta de três grandes janelas, ladeadas por duas portas, todas rasgadas em arcos abaulados, sendo que um terço do comprimento é ocupado por uma semi-rosácea de vidro transparente, dividida em cinco segmentos. Lembra um pouco, pelos frisos, pelos contornos em alto-relevo, brancos, e pela predominância dos ângulos retos, as construções neoclássicas. Encimando o conjunto descrito, há uma estreita platibanda de despojado lavor, preenchida por azulejos com motivos geométricos. Todas as portas e janelas são divididas em duas abertas partes, denotando uma ausência de temeridade, convidando a brisa tépida, vinda dos carnaubais, a refrescar os dias ensolarados e quentes do Vale do Assu.

Situada entre a praça Getúlio Vargas e o antigo Beco do Padre, a casa fica no rez-de-chaussez., ou seja, existe apenas o pavimento térreo. Voltada para o sol nascente, limita-se a um comprido retângulo um pouco acima do nível da rua. Um batente dá acesso ao assoalho da sala. Não há sótão, tampouco porão, indiciando o pouco caso com o inconsciente ou uma busca de elevação espiritual. Há apenas o plano terrestre, no qual os cômodos representam as partes do corpo com suas demandas simbólicas. Residência ideal para os que se sentem intrinsecamente ligados à vida e ao que ela proporciona de beleza estética e prazer físico.

É aqui onde reside a escritora norte-rio-grandense Maria Eugênia Maceira Montenegro, nascida em 1915, e que no passado e cabalístico sete de outubro, fez oitenta e oito anos de existência. Advinda das Minas Gerais, casada com um Engenheiro Agrônomo que estudou em Lavras, veio morar numa fazenda do antigo arraial de N. Sra. dos Prazeres do Assu. A casa ostenta uma simplicidade que muito se assemelha às antigas residências senhoriais, quedada defronte à Igreja Matriz, um pouco mais à esquerda de quem fica de costas para a casa. Distância suficiente para ouvir o hinário e as rezas da igreja em louvor a São João Batista.

A porta principal não é trancada à chave, como se aguardasse permanentemente uma visita, que trouxesse alvíssaras ou simplesmente o agradável de uma presença, campeando sobre a solidão, espantando-a para as ermas estradas deixadas no passado. Ao ser anunciado por uma moça muito gentil, a velha senhora se faz demorar um pouco, suficiente para o advento no corpo de uma dignidade herdada das antigas famílias mineiras. Adentra na sala, qual rainha destronada e no exílio, derramando sorrisos e palavras de boas vindas. O corpo alquebrado pela velhice torna-se em festa. Parece vir de longe, arrastando consigo, num hieratismo franco e discreto, o cortejo de emblemas da sua estirpe. Os poucos momentos de uma agradável visita alicerçarão um ou dois dias de prazerosa lembrança, esgarçando-se com o passar dos dias. Os idosos, aqueles não amargos, sustentam-se nos exíguos fios das reminiscências geradas por algum fortuito evento sucedido num dia, como se fossem esmolas, - farelos de vida -, doados parcimoniosamente pela Fortuna.

Tudo resguarda uma história. A pátina de Cronos, qual esmalte transparente, recobre todos os pertences da antiga casa. Parece não haver arcanos de espécie alguma. Qualquer presença pode ser dita e explicada de onde veio. A transparência é tamanha que a luz esplende seus reflexos no assoalho recoberto por mosaicos, cuidadosamente limpo, denotando lugar no qual não transita muita gente, onde a solitude repousa, com a mesma paciência da dona.

A casa com seus objetos dispostos nos cômodos, submetida à cal viva do tempo, reveste-se de um caráter antípoda. Ao mesmo tempo que se funda numa necessidade da existência, pois é ela a outorgadora de uma identidade, subjetiva ou social; em contrapartida, está sempre na iminência de se extinguir, de sucumbir quando do desaparecimento do seu proprietário. Os herdeiros, mercenários, deterão apenas o que tiver valor financeiro. Quando do passar de poucos dias, os relógios farão escorrer seus ponteiros em direção às insossas efemérides e novidades da vida ordinária.

O cortejo de signos: telas, bibelôs, panos de renda, alfarrábios, indumentárias, móveis antigos, ensaia as pompas das exéquias, esboçando a dolente canção elegíaca do esquecimento atroz que cobrirá a Velha Dama, - malgrado as horas dedicadas à escritura de livros com forte conteúdo humanista, - sim, só os objetos serão gratos àquela que os animou e imprimiu sua consideração ao seu estado, indiferente, de mineral. Os tempos vindouros não prometem mais transcendência por meio da arte. A terra se encontra em transe. Não temos garantia de nada. Os objetos prantearão a menina feia, vinda de muito longe, de um lugar chamado Minas Gerais, lavrado entre montanhas recobertas de exuberante verde-lodo, chegada esposa e indo viver numa fazenda povoada de plantas e animais, de acidentes geográficos e paisagísticos, dos quais não sabia o nome nem a função, e cujo território passava metade do ano acinzentado. Nessa ambiência, as tramelas da memória foram arrebentadas pelas amoladas foices da solidão. Imagens mentais tiveram que ser confeccionadas em feixes de frases, engendrando livros nos quais os revérberos autobiográficos tonificaram obras que hoje irrigam o sistema literário do Rio Grande do Norte. Tudo me chama: a porta, a escada, os muros,/as lajes sobre mortos ainda vivos...(Cecília Meireles).

Agora a lonjura dos dias é preenchida por lembranças. Uma fadiga crônica se instalou – “estou morta de viver” – nos ossos. Nunca mais a deixará. O dízimo da velhice é alto. Labaredas consomem as derradeiras energias. Apóia-se nas paredes. Desculpa-se. Quedada sobre as cadeiras, agarra-se às autênticas amizades – ao telefone: “diga, meu querido” -. No limiar dos oitenta e nove anos de idade ainda está aberta ao cultivo de uma nova amizade. (Que alma!). Houve quem dissesse que muito ela havia se arrependido de não ter sido mais desprendida, de não ter aberto sua biblioteca a mais pessoas, de não ter amado mais. O balanço de uma vida é sempre um processo solitário e ímpar, pródigo de sentimentos dúbios ou culpas de desbotado matiz.

Da memória desprendem-se nomes, intactos, cada um com sua devida importância, com seu lugar numa história de vida: Nelson, Nieta, João Lins Caldas, Mário, Solon, Rita, Renato Caldas. Lembrar também cansa. Exercício que arrasta o inútil de abstrações que não levam a lugar nenhum. Vive-se de Vida. Nunca ouvi dizer o contrário. Recordações são cinza fria nos lábios, representações de somenos. Nonadas.

Na vasilha de ungüento restou um pouco de sal. Na despensa apenas um tanto de óleo sagrado, suficiente para untar o corpo baço, pleno de ranhuras, pontilhado de sardas e de outras manchas outorgadas pelo caminhar em agrestes rodagens. A sobrevivente antecipou o luto.

Resta o aguardo. Mulheres de pescadores, azuis, como na tela de Picasso, na praia, ansiando o nome dos desaparecidos. Os quadros, desbotados, quietos, na parede.

Alguém sabe de alguma profecia, que falasse, assim, de uma imperatriz exilada, vinda de um país distante onde as montanhas, no raiar do dia, espreguiçam-se entre a névoa e um exuberante verde? Alguém, ao dizê-la, estancaria a nascente viril de um desespero sem lágrimas: o meu. Alguém? Alguém....

Postado por Fernando Caldas

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