domingo, 20 de março de 2011

Aventuras num pau de arara

Das ribeiras do Acari, em tempo de chuva, me chega carta do doutor Paulo Bezerra dando ciência de suas pesquisas no mundo vasto, mundo da antropologia e da sociologia sertaneja.  Desta feita se estriba nas histórias contadas  por Raimundo  Nunes, gente boa das Pinturas,  onde se narra  as aventuras de uma viagem de pau de arara do Seridó no rumo de Minas Gerais e de Goiás, altos sertões do Brasil Central.  Do Sítio Saco dos Pereira, o doutor Paulo Balá vai debulhando suas anotações:

- Maria Suzana de Jesus casada com Abdias Joventino de Medeiros desembuchou um menino no dia 24 de julho de 1932 o qual, na água de batismo, tomou o nome de Raimundo e no registro de nascimento lhe puseram Nunes – nome de família na qual seus antepassados viveram longa vida, com gente beirando um século de idade. Todos esguios, negros, secos do corpo e musculosos, desenvolvendo atividades manuais como fazer louça de barro, curtir couro na casca do angico, trançar cerca de varas e de arame farpado, dedicados à agricultura e à criação em minguado pedaço de terra, deitando cedo e levantando de madrugada, comendo nas horas certas, e pouco. Pois foi nesse meio onde o menino aprendeu de um tudo, até de reza e fazer conta, de cozinhar, de gostar da sua gente, de querer bem à terra onde nasceu e  de tudo o mais. Cresceu, e assim se pôs adulto.

- E conta o homem alto, de mãos enormes e pés de mata-babugem, ossudo, desempenado, cabelo ruim, cara raspada e fala manso, rindo a cada manifestação do seu linguajar: “Em 1953 eu trabalhava nas Pinturas quando Dr. Bezerra me mandou passar férias em casa, aqui nesta casa onde minha mãe morava. Vim, mas fui trabalhar no serviço do campo de aviação do Belém e, em seguida, na estrada que estava sendo aberta, passando no oitão do cemitério e saindo no Saco do Juazeiro. Vicente do Rêgo, de Cruzeta, abria inscrições para quem quisesse ir  para o sul e nessa lá fui eu, em julho de 1953, com destino a Uberlândia, mais Pedro de João Garcia, Luís de Miguel Pitomba e Geraldo Agostinho casado com Maria Rosa, minha irmã, travessia de oito dias de viagem, deixando para trás o nosso chão e a nossa gente, depois de triste despedida.

- Fomos montar no caminhão em Acari, e já vinha cheio. Mané Vermelho subiu por derradeiro sem achar lugar folgado, aí era só o povo gritando “senta, senta, senta”, mas ele não achava adonde, daí o motorista gritou de lá “senta de qualquer jeito que quando começar a rodar a carga arruma”. Mané se apoquentou e disse “eu num vô mais não. Compadre Raimundo, quando eu descer você me dê minha mala que tá debaixo do banco”, e desceu. Ao receber a dita, os passageiros que já vinham acunharam no grito: “arara arrependida... arara arrependida... arara arrependida...”

- Cada qual levava a sua boia, a mala, algum dinheiro e a rede. Tinha os pontos de pouso sem jantar e dormir, alguns em redes armadas de pé de pau a pé de pau, acordando cedo para quebrar o jejum e engolir de novo léguas e mais léguas de terra, até chegar a vez do almoço, numa hora também de atender às necessidades conquanto no meio da manhã e no meio da tarde houvesse uma parada obrigatória, a dita hora da mijada, como dizia o motorista, com um aviso: “Atenção: os homens na frente do caminhão e as mulheres atrás”.

- Despejados na rodoviária de Uberlândia fomos tangidos para uma sala onde ficamos sentados a espera de Vicente do Rego que chegou acompanhado de um mineiro chamado Miguel Pereira Cabral o qual, apontando pra pessoa, ia dizendo “escolhi você... você...você..” num tanto de 12, tudo homem sadio e forte – a cabeceira dos araras – e fomos levados para Goiás, fazenda Gameleira, perto de Santa Helena e de Capinópólis, em Minas. Tivemos sorte, pois ficamos juntos. O nosso trabalho era o de brocar o mato, arrancar o toco, plantar e colher o arroz pelo que eram dois ganhos, um pela diária e outro pela produção do arroz. Da diária a maior parte ficava dentro, na mão do homem, pois o abastecimento era feito em caderneta pelo barracão que de tudo tinha, saindo também na nossa conta o custo dos ferros usados no serviço. Do arroz, só quando apurasse a safra. Sabendo que minha mãe passava precisão falei em dinheiro mais avultado para mandar pra ela, mas foi negado pelo patrão sob o pretexto de ser preciso vender uma carrada de arroz, estopim que tocou fogo na minha vontade de voltar.

- No primeiro acerto, o da produção, quando me foi entregue uma prata como saldo eu agradeci, mas ouvi dele indignado: “Uai, qué qué isso, sô, leve o dinheiro Reimundo, compre uns ovos, deite uma galinha e vá multiplicando”, mas o certo foi que saí com uma moeda na mão. Da outra conta, descontadas as despesas da viagem – alimentação e passagem  - pois eu fui vendido por aquelas coisas, e descontados o preço dos ferros de trabalho e o fornecimento do barracão, me sobrou dinheiro para vir embora. Um genro de seu Miguel me deixou em Uberlândia numa pensão onde passei três dias esperando carro quando, só por economia, almoçava e não jantava. Voltei. Já em Cruzeta, depois de seis dias de viagem, projetei descer nas Imburanas e chegar em casa a pé, mas quando dei cuido da viagem estava em Acari. Era o dia 2 de agosto de 1954.

- Entreguei nas mãos do Dr. Bezerra as cartas trazidas para João Garcia e Miguel Pitomba quando escutei dele: “Raimundo, a sua vaga está aberta”. Outra vez nas Pinturas, fiquei por quase vinte anos. Hoje vivo aqui no Saco, sozinho, na casa do meu nascimento, cuidando de mim mesmo, em paz com o mundo e com Deus, devendo a alma a Ele e ao chão esse corpo de negro. Sadio por dentro, mas puxando por uma perna pois o joelho, da mesma idade do outro, num me ajuda, se eu pudesse me enterrava aqui no Saco mesmo onde passei até por instrutor do finado MOBRAL, na falta, ta bem visto, de gente mais letrada”.

- Saiba, Woden, que pegando uma garupa na conversa do meu amigo Raimundo Nunes me lembrei do meu irmão Zezé (1925-2000), - formado em dentista e dos bons, saído do forno de Alfenas -, comprando um gabinete a Chico Feio em Natal e com  ele viajando para Capinópolis no caminhão de arara de Zé Braz, mas pouco durou, voltando logo ao Acari. Apois bem: por conta disso ganhou o apelido de Arara – o Dr. Arara, também um grande orador, fluente, emotivo...

- No Acari também Antônio Preto, com um olho furado por bala, vaquejava quem levar para o Sul, interessando até Luís Coelho – a mulher com um bucho no pé da goela – e mais uma escadinha de gente miúda. Insatisfeita, correr a ser valer do compadre Silvino, nas Pinturas, vendo naquilo um passo errado. Este chamou o compadre aos carretéis: “Se quer ir vá, junte seus cafiotes e vá, mas a família fica”. Foi como o sonho do amigo, morto outro dia aos 90 anos, foi de água abaixo.

Sem mais assunto para o momento me assino

Paulo Bezerra

(por Wodem Madruga, da sua Coluna WM, Tribuna do Norte, 20.2.11)

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