sábado, 5 de maio de 2012

PAUL NO ARRUDA




Por Gustavo Krause

A realeza inglesa (é rima e solução) chegou à Rua das Moças e ao
coração das moças, dos moços e idosos com direito a pagar meia entrada
para assistir a um espetáculo inesquecível.

Ele, Paul, integralmente aristocrático: branco, “sir”, cidadão-súdito
da mais tradicional monarquia do mundo e membro da dinastia
músico/cultural Beatles.

A Rua das Moças, endereço da República Independente do Arruda e com
bandeira tricolor que nem a França (só para contrariar), bairro que os
ingleses do século XIX chamariam de “burgos podres”, recebia o nobre
visitante, tropicalmente, mestiçamente, afetuosamente e cheia de amor
para dar.

E mais, com um toque de desordem sem maiores consequências, senão
apenas para reconhecer a firma de um país, complexo, contraditório que
mistura a chatice linear da régua e do compasso com a descontração do
compasso do samba e o descompasso acrobático do frevo. A feijoada deu
um sabor especial ao rosbife. Paul e a Rua das Moças se fundiram na
comunhão da cultura universal.

Do espetáculo, já se disse tudo, até o inverso do que aconteceu. Coisa
de gente entediada e mal-humorada. De verdade, tudo aconteceu na
medida certa.

Profissionalismo. Um Paul sem a frescura de certas estrelas (?) e um
artista incansável que não interrompe três horas de show para beber
água, segundo ele, em respeito ao público que paga caro para vê-lo.

Emoção e participação. Atenção: Paul McCartney integrou o santíssimo
quarteto, óbvio? Não. Como os grandes sucessos dos jovens de Liverpool
traspassaram gerações, havia a expectativa de um repertório mais
conhecido e que pudesse ser cantado pelo público. E houve. Pouco mais
de uma dezena de canções. Paul tem o seu próprio e renovado
repertório. Com o público, se comunicou com a música que mexe com o
feixe de nervos e músculos cardíacos e, de modo simples, por meio de
mensagens devidamente escolhidas e usando o mais representativo
símbolo da nossa terra que toca na alma nativista: a bandeira de
Pernambuco. Ao meu lado, um cara enorme, sarado, acompanhado de uma
mulher escultural, repetia aos berros “Eu já posso morrer!”. Resta
saber se de “susto, de bala ou vício, num precipício de luzes”, ou,
gloriosamente, nos braços da companheira.

O que aconteceu no Recife nos marcantes dias 21 e 22 de abril
[Tiradentes e a descoberta do Brasil (?)] não foi um espetáculo
musical, interpretado por um artista genial. Foi muito mais, pois, ali
estava o personagem e o intérprete de uma era.

De fato, Paul é um filho do século XX que representa os milhões de
órfãos, vítimas emocionais de guerras mundiais, de guerras regionais
transformadas em espetáculos cinematográficos e televisivos ou da
louca ameaça dos chefes de Estados em promover guerras quentes ou
frias.

Ali estava um baby boomer, nascido na década de quarenta sob o peso
das tragédias passadas, carregando o fardo de heranças tirânicas e, o
que é mais grave, a angústia existencial de uma vida sem sentido. Mas
com ele, nascia a luz que afrontava cartilhas políticas, mandava às
favas verdades estabelecidas, pregava um individualismo libertário e
assumia um paradigma desafiador cujos sinais estão descritos, em
admirável síntese, no romance da Vargas Llosa, “As travessuras da
menina má”: “Em Londres nasceram a minissaia, os cabelos compridos e
as roupas extravagantes que consagraram os musicais Hair e Jesus
Christ Superstar, a popularização das drogas, a começar pela maconha
indo até o ácido lisérgico, a fascinação pelo espiritualismo hindu, o
budismo, a prática do amor livre, a saída do armário dos homossexuais
e as campanhas de orgulho gay, assim como uma rejeição em bloco do
stablishment burguês não em nome da revolução socialista, à qual os
hippies eram indiferentes, mas sim de um pacifismo hedonista e
anárquico, matizado pelo amor à natureza e aos animais e por uma
renegação da moral tradicional”.

Na Rua das Moças, vi, vivi, revivi retalhos de lembranças,
entrecortado pela nostalgia e pela esperança que outros “arretados”,
como Paul e os personagens do tempo fértil da década de sessenta
ressurjam, protestando em favor de “paz e amor”.

Nenhum comentário:

MANOEL CALIXTO CHEIO DE GRAÇA E quem não se lembra de Manoel Calixto Dantas também chamado de "Manoel do Lanche?" Era um dos nosso...