sábado, 23 de novembro de 2013



O MUEZIM DE CAPIM MACIO


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O poeta Walflan de Queiroz pintado por Newton Navarro

No final dos anos oitenta, a pedido de amigos, organizei numa clínica de saúde mental, em Natal, uma pequena biblioteca. Sugeri aos diretores um nome, imediatamente aprovado: “WALFLAN DE QUEIROZ” (*). Era, o próprio, um dos pacientes mais antigos do lugar, parente dos donos da instituição. A um dos irmãos, pedi a doação dos livros do poeta e nas estantes os arrumei com carinho. Do homenageado, com muito jeito e agrado, auxiliado por um fotógrafo sorrateiro e camarada, descolei razoável fotografia colorida e ampliada, para a indispensável entronização na sala acanhada. Finalmente, na data aprazada, foi uma festa e tanto.

Conhecia Walflan há mais de quarenta anos – tinha eu uns seis ou sete - desde a casa do meu Pai, na Avenida Rio Branco, cercanias do velho Mercado. Sempre de terno de linho branco impecável, na gravata encarnada um alfinete de pérola, sapato “Fox”, brilhantina nos cabelos, com fala grave e sonora, ao cair da noite, papeava com meu Pai, velho amigo do seu. Uma algaravia, um charabiá repleto de erres que eu e meu irmão, um pouco mais velho, curiosos, não entendíamos. Era, descobrimos perguntando, tão somente dois poetas falando francês, o belo idioma de Hugo, Verlaine e Rimbaud! Bom mesmo, para nós, meninos, era a moeda de mil réis que o rapaz risonho nos dava “para comprar confeito”, terminada a conversa.

Anos depois, a luta pela vida me afastou de Natal e de Walflan por muitos lustros. Por onde andei, poucas notícias tinha do moço culto de terno branco que me dava moedas, do filho do Doutor Letício, bacharel no Recife, promotor público, monge trapista, sábio, embarcadiço, aventureiro, diretor de museu – que confessava em versos ser “poeta maldito” e ter “pedido esmola na porta de Notre Dame”.

Nos ocasos de alguns dias, quando o reencontrei na clínica de Capim Macio – abatido, o rosto cavado pela magreza, os dedos finos manchados pela nicotina -, nas raras ocasiões para o diálogo, instado, provocado, reconhecia-me, pedindo cigarros ao “filho de Othoniel”!  Recitava salmos e suratas, indagava pelo “Grande Ponto”…

No pico das doses mais fortes de aldol, no prelúdio do sossego, ainda agitado, subia a um dos bancos do jardim e, numa mescla de cantochão gregoriano e pregão de muezim, desandava o querido vate a declamar, com sofrível dicção, palavras e nomes do seu gigantesco vocabulário, algumas e alguns por mim gravados, à época: “Alá, Adonai, arrabil, Aluízio Alves, Apolinaire, Aramis, acadiano, Baudelaire, Gotardo, apocalipse, Miriam Coeli, Baal, Bel, Li Po, Vale de Josafá, Iavé, Jeová, Eloím, Trapa, Othoniel, Rancé, Cister, cisterciense, Dalton Melo, humanista, Djalma, Soligny, Islã, trapista, eloísta, mulçumana, Roldão, Brama, Parnaso, geena, faiança, Giralda, runa, Excalibur, Saladino, durindana, Natan, Betsabé, deambulatório, Leviatã, consitório, Patmos, Jó, Rimbaud, Patagônia, João Café, Moisés, Tânia, Genilda, paladino, Walt Whitman, Dom Quixote, Irene, França, Ulisses Cavalcanti, mamãe, Sheaskspeare, amidalite,  Sanderson Negreiros…"

Este é o registro e dou fé.

Laélio Ferreira

(*) “Walflan de Queiroz (1930-1995) era natural de São Miguel, região do alto oeste do Rio Grande do Norte. Eram seus pais Letício Fernandes de Queiroz e Raimunda Furtado de Queiroz . Ele formou-se pela famosa Faculdade de Direito do Recife, mas nunca exerceu a profissão. Certamente teria advogado com brilhantismo. Tipo baixo, fumante inveterado, teve uma juventude boêmia, intelectual, poeta dos melhores. Conheci aquela figura (que engrandece as letras potiguares), nos idos de setenta, na calçada do Café São Luiz, em Natal, declamando exaltado um poema de Rimbaud. Apresentei-me a ele, que me tratou com distância. Logo entendi. A última vez que estive com Walflan foi na clínica Santa Maria (quando ele estava em tratamento psiquiátrico). Vejamos o poeta visto por ele próprio, no poema sob o título “Autobiografia”, que diz assim: Nasci sob o signo de São Bento José de Labre. / Pedi esmola na porta de Notre Dame./ E fui encontrado morto numa rua de Madrid./ O primeiro hino foi meu, o primeiro canto/ Que comoveu a alma de Francesca de Rimini./ Fui monge, amei a virgem./ Fui marinheiro, estive no oriente./ Mais tarde, pertenci ao grupo dos poetas malditos/ E escrevi o meu último poema para uma menina espanhola.
Walflan publicou oito livros intitulados O Tempo da Salvação, 1960, O Livro de Tânia, 1963, O Testamento de Jó, 1967, A Colina de Deus, 1968, Nas Fontes da Salvação, 1970, Aos Pés do Senhor, 1972 e A Porta de Zeus, 1974. O solitário Walflan teve amores apaixonados. Vejamos o poema adiante: Três amores / E uma solidão. / Irene, Tânia / E Herna / Vi Abraão / No monte moriá / Três amores / E uma solidão,/ Irene Azul / Tânia amarga / E Herna triste.
Walflan “conhecia vários idiomas. Lia, escrevia e falava em latim. Era fluente em Francês e inglês”. Ele era da Marinha Mercante e percorreu o mundo. O produtor cultural Eduardo Gosson, depõe que Walflan nas suas andanças “apaixonou-se por uma bailarina cubana, gostou das noites da Martinica e quase casou-se com uma colegial de Buenos Aires”. É lindo o seu poema “Auto Retrato”, que vejamos adiante: Não tenho a beleza de Rimbaud,/ nem o rosto torturado de Baudelaire./ Tenho sim, olhos negros,/ Como os olhos de Poe. Meus cabelos são soltos, em desalinho como os de algum Anjo ou demônio./ Minha pele, queimada eternamente pelo sol, tem sal do mar e a cor morena dos que são náufragos./ Minhas mãos são pequenas, tristes embora como mãos de alguém que só as estendeu para o Adeus!

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