Henrique Castriciano de Souza é considerado uma das maiores inteligências que o Rio Grande do Norte já teve. Nascido em 15 de março de 1874, na cidade de Macaíba, exerceu durante sua vida uma enorme gama de atividades; diplomado pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro em 1904, foi jornalista, poeta, ensaísta, critico literário, secretário de governo, vice-governador, presidente da Assembléia Legislativa, deputado estadual e outras atuações que mostram um espírito que impressionam os que se debruçam sobre sua vida e sua obra.
Foi um incentivador cultural, criando a primeira lei de incentivo cultural no Rio Grande do Norte. Criou escolas, adorava a pesquisa, tendo viajado a Europa buscando os caminhos por onde andou Nísia Floresta, escritora nascida em 1810 em Papary (atual município de Nísia Floresta) e falecida na França em 1885. Nísia, como Castriciano, foi uma autora de vasta obra.
Em 1908, Castriciano frequentava quase diariamente as páginas do periódico “A Republica”, produzindo suas crônicas, com comentários sobre os mais diversos assuntos. No dia 25 de abril daquele ano publicou uma crônica dedicada exclusivamente ao cangaço.
Provavelmente este trabalho foi realizado diante da repercussão negativa do ataque promovido pelo bando de Antônio Silvino ao povoado Machados, localizado a 18 quilômetros do município de Bom Jardim, Pernambuco.
Neste ataque, ocorrido no dia 15 de fevereiro, à uma hora da tarde, em pleno dia de feira, Silvino e seus cangaceiros entraram sem alteração no lugar. O chefe quadrilheiro vinha na intenção de ir a um comércio do lugar e acertar certas contas com o proprietário.
Silvino estava resolvendo esta situação, quando recebeu voz de prisão do Inspetor policial do lugar. Este chegou à mercearia acompanhado com um grupo de quatro paisanos, que voluntariamente se colocaram prontos a auxiliar o Inspetor para prender o bando.
Os jornais da época e os autores que trataram da vida de crimes do cangaceiro Antônio Silvino, não detalham com clareza o que ocorreu, mas o resultado foi o extermínio da tropa voluntária e do Inspetor. Após o tiroteio, Silvino e seu bando saquearam o comércio de Machados em 400$000 réis e fugiram em direção aos Lugares Pedra Fria e Palma (O ataque a Machados foi reproduzido na primeira página do jornal “A Republica”, em 21 de fevereiro de 1908).
Diante deste fato de forte repercussão, principalmente em Pernambuco, na Paraíba e no Rio grande do Norte, Estados frequentados por Antônio Silvino, Castriciano busca mostrar aos leitores do litoral potiguar, as diferenças entre as populações do sertão e do litoral, a dureza das regiões quentes e as origens e peculiaridades do banditismo “boêmio”.
Comenta de forma clara a figura de Jesuíno Brilhante, que a época cada vez mais se mitificava, assumindo a figura de um “Dom Quixote vermelho”, que “andava por toda a região sertaneja, distribuindo justiça a seu modo”. Observava como o tempo fazia o povo esquecer suas atitudes de um bandoleiro não tão romântico assim e apontava como “as gentes do centro”, como Castriciano designava o sertanejo e o sertão, via esta singular figura de bandido. Interessante é o comentário que Castriciano faz, quando narra sua experiência ao segurar o crânio de Jesuíno Brilhante.
Já sua visão de Silvino é de um sanguinário, um terror dos sertões, tacha-o de “moralmente muitíssimo inferior”, de gostar da atenção da platéia popular e comenta a sua brutalidade.
Em uma época em que Virgulino Ferreira da Silva, o futuro “Lampião”, ainda brincava de baladeira na região da Serra Vermelha, Castriciano já apontava as diferenças e as sutilezas entre os cangaços de Brilhante e Silvino. Da mesma forma que, anos depois, muitos apontariam as diferenças entre Silvino e Lampião, apresentando “O rifle de ouro” quase como um “gentleman” e o “cego de Vila bela”, como a encarnação do “cão do quinto livro”.
O mais interessante da crônica de Henrique Castriciano é a sua analise sobre a popularidade do Antônio Silvino, através do livreto de cordel do cantor popular Francisco das Chagas.
Denominando esta obra apenas de “folheto”, Castriciano aponta este material como o “melhor espelho do estado mental e moral das nossas populações”. Mostra (às vezes de forma preconceituosa) a visão dos sertanejos ante o fracasso das perseguições do aparato governamental a Silvino, destacando a “ironia, a gargalhada do povo rude em face da impotência dos governos”.
Entre irônicas tiradas contra a justiça oficial de então, existe espaço neste cordel para “planos de governo” de Antônio Silvino, com apontamentos socialistas, divisão da terra e até criticas a atuação de estrangeiros pelo sertão afora, no caso os ingleses e suas estradas de ferro.
Neste maravilhoso trabalho, Henrique Castriciano utilizou como era normal no período, o pseudônimo de “Mario Valle”. Segundo Manoel Rodrigues de Melo, no livro “Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte 1909 – 1987”, página 259, Castriciano era pródigo em criar pseudônimos. Este autor narra nove deles, desde um simples “H.C.” ao interessante “Erasmo van der Does”.
Henrique Castriciano faleceu em 26 de julho de 1947.
CRÔNICAS – Jornal “A Republica”, sábado, 25 de abril de 1908.
O Nosso clima, as brutas arestas do sertão, o solo escalvado que constituem grande parte da zona do Norte, todo este conjunto de fatores ásperos, gera, de quando em quando, tipos totalmente sintéticos, recapitulações da psicologia por vezes mórbida da sub-raça que se agita nessa parte do território brasileiro.
São interessantíssimos os representantes máximos e diretos da plebe entre nós: os cantadores ambulantes, o vaqueiro heróico, e, mais do que todos, devido à agilidade perversa e a concepção anarquista que forma do mundo, os criminosos boêmios que, às vezes durante anos, percorrem léguas matando e destruindo a vontade.
Há uma grande diferença física entre a gente do agreste e do sertão; diferença que se afirma na singular energia da população da última destas zonas, em contraste com a meiguice humilde dos habitantes da primeira.
Todos os criminosos notáveis aparecidos nos Estados setentrionais do Brasil são gerados nas plagas sertanejas, produto agressivo de gerações e gerações em eterno combate com a natureza, casos teratológicos de uma gente até no crime forte e excepcional.
Eles são bons filhos das terras em que nasceram. Assim como nestas, ao lado das várzeas e dos rios pródigos, existem a montanha pedregosa e a campina estéril, assim também, na sociedade que lá vive, surge de quando em quando, dentre centenas de seres educados na bondade enérgica e sofredora, as almas tingidas de vermelho, os corações golpeados de ódio que se chamam Jesuíno Brilhante e Antônio Silvino, símbolos da anarquia física desse meio hostil, cardos humanos nascidos entre aquela branca seara de almas, como os espinhos do mandacaru entre os imbuzeiros carregados de frutos e ninhos.
E, fato singular; quaisquer dos bandidos acima citados são, como o solo sertanejo, uma perene contradição, uma extraordinária messe de coisas que se repelem.
A vida do primeiro surpreende pelo contraste, pela diversidade dos meios postos em prática, pela serie infinita de atos profundamente maus e de ações reveladoras de profundo desprendimento.
Jesuíno brilhante é uma figura típica do herói popular, de Dom Quixote vermelho. A existência desta singularíssima figura representa o que a de mais doce na alma humana e o que a de mais feroz.
Alguém poderoso ou não, tentara contra a honra da desvalida moça?
Ei-lo em campo, armado até os dentes.
O sedutor reparava a falta ou morria. E andava por toda a região sertaneja, distribuindo justiça a seu modo, justiça absolvente de animal primitivo, girando entre o roubo e a morte.
Para ele, como para todos que cumprem igual destino, a propriedade era da comunhão. Daí o grande ódio que votava as autoridades constituídas, especialmente aos soldados, como representantes da lei.
Um médico do centro, o meu distinto amigo Dr. Almeida Castro, guarda o crânio deste desgraçado. Vi-o a cerca de doze anos, estive com ele entre as mãos, como Hamlet sustentando nos dedos a caveira de Iorick e, como o desditoso príncipe, filosofei acerca do miserando ser, sentindo no intimo um frêmito de compaixão.
Quem sabe até onde iria a coragem deste rebelado se outros fossem o meio e o tempo em que viveu?
Os heróis não são feitos de temperamento diverso; creio que foi Victor Hugo que os chamou de uma variedade de assassino….
O tempo tornou a sua figura legendária; das depredações que fez já ninguém se recorda; e as gentes do centro falam dele como de um justo que, nos dias de fome, assaltava as tropas guardadoras dos comboios que conduziam a farinha destinada pelo rei ao seu povo, mas que os magnatas das aldeias queriam transformar em fortuna própria.
Com Antonio Silvino, moralmente muitíssimo inferior, está se dando o mesmo. O celerado anda por aí quase à vontade, sentido em torno de si o respeito e a estima da plebe, com quem reparte cavalheirescamente o que recolhe dos inimigos.
Este é brutal, sem um raio de estrela na sua alma tenebrosa, sem as crises de bondade do outro, sem penas de garça nas asas de corvo.
Mas as multidões o acarinham, porque vem nele um forte. E sem perceber que a sua generosidade é apenas um gesto hábil, já o está glorificando pela boca dos poetas campônios. Tenho sob a vista um folheto do cantor popular Francisco das Chagas. Há muito não vejo melhor espelho do estado mental e moral das nossas populações; as 16 páginas a que me refiro, valem um compendio de psicologia.
Quem, de futuro, quiser saber o pensamento da gente analfabeta, que povoa o nosso solo não tem mais do que abrir este livrinho; aí encontrará a ironia, a gargalhada do povo rude em face da impotência dos governos que ele vaia gostosamente, na sua qualidade de mosquito zumbidor.
Encontrará o ódio que vota ao empregado público, aos partidos, as autoridades, colocando-se, já se vê, ao lado de Antonio Silvino, em quem contempla a síntese da anarquia que lavra no seio das sociedades incultas do centro.
Não sei se os senhores sabem que o bandido teve por companheiro uma fera de nome Cocada. Teve.
E um dia, desconfiado dele, expulso-o do rebanho maldito.
A fera, perseguida pela polícia, não pode ser alcançada, vindo a morrer as mãos de um senhor Pica-pau, sequioso de vingança, e de sangue.
O poeta Chagas narra o fato com a sua meia língua de trovador rural e, legitimo interprete do zé-povo, termina com esta gargalhada cuspida a face da justiça;
Na povoação da Serrinha,
Aonde a morte se deu,
A polícia, por milagre,
Ao tal Pica-pau prendeu,
E encontrou as orelhas
De Cocada em poder seu,
Não conseguindo a polícia
Prender o ex-valentão,
Ao pegar suas orelhas
Meteu-as numa prisão:
Encarceradas num frasco
Ficaram elas então….
Dizem os filhos da Candinha
Que já estão processadas
As orelhas do bandido,
Que em breve serão julgadas
E que as galés perpétuas
Elas serão condenadas.
Dificilmente um poeta culto encontraria sarcasmo tão pungente para caracterizar o seu desprezo em face de uma justiça que o não garante bem.
O livrinho termina com a exposição da Política de Antonio Silvino:
Há doze anos que vivo
Com o governo em questão
Sem que ele conseguisse
Vencer minha oposição:
Vou agora experimentar
Se ganho-lhe uma questão.
Ao meu lado tenho todos
Os chefes oposicionistas:
Já pleiteei mais vinte
Candidatos governistas,
E antes das eleições
Farei inda outras conquistas.
O programa seria o tentado por qualquer pessoa do povo se viesse a governar;
Mesa de rendas uma só
Não deixarei, isso eu juro!
Livros de arrecadação
Mando deitar no monturo.
Intendência em município
Acabarei com as que houverem:
Empregado pede esmolas!
Os que assim não fizerem
Vão trabalhar alugados
Para bacalhau comerem!
Promotores, delegados,
Inspetor de quarteirão,
Todos eu demitirei
Com uma surra de facão….
Inglês onde eu dominar
Não contará pabulagem;
Para o trem poder correr
Há de pedir-me homenagem,
Consentirei que o trem corra
Mas ninguém paga passagem.
É a tendência igualitária dos vencidos, o socialismo inconsciente das classes pobres.
A terra será comum
Todos se apossarão
Ninguém pagará mais foro
Para fazer plantação;
Não haverá nesse tempo
Nem criado, nem patrão.
Será geral a igualdade
Todos hão de ter direitos
O que foi rico terá
Ao que foi pobre respeito
O grande senhor de engenho
Irá trabalhar no eito.
A nota característica da poesia popular no Brasil é o sarcasmo; porém á neste livrinho alguma coisa que não é somente isto.
E não entristece ver, em mais de um Estado e na hora presente, o povo do centro encarnando os seus ideais na pessoa de Antônio Silvino?
Mario do Valle
Fonte: http://tokdehistoria.com.br/ ´Rostand Medeiros
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