Escola de Sagres
Vicente Serejo
Vicente Serejo
O Grande Ponto do meu tempo era para nós, os mais jovens, uma espécie de Escola de Sagres. Dali, ouvindo lições de marear, partíamos para o mar-oceano, e uns chegavam a dobrar o Borjador. Assim foi comigo e com toda minha geração. Uma escola de paixões. Uns eram apaixonados por cinema; outros, por artes plásticas, e outros mais por literatura. Além dos mais lidos e bem informados que entendiam de tudo, pois naquela pequena praça cabia o mundo que a nossa imaginação construía. Sem soberba e sem ambição.
De uma feita fizeram uma reforma na Praça Kennedy. O busto, sobre uma pequena parede, ficou mais para os lados do Nordeste, com aquela frase em letras de bronze, e nos canteiros que eram rentes ao chão ergueram umas jardineiras. Espécie de jardins suspensos do Potengi. Daí o apelido de Cocadas que nasceu para identificar aqueles volumes sobre os quais nós nos sentávamos. Do nosso Promontório olhávamos o oceano e sonhávamos com atlânticas viagens que só muitos anos depois conseguimos realizar.
Aliás, ali também tínhamos aquilo que nem mesmo nós sabíamos, porque o modismo da expressão só viria muito tempo depois: o pluralismo democrático. A liberdade de pensamento e de expressão das nossas opiniões, com alguns pontos de convergência centrados nos mais experientes nas leituras e descobertas do mundo. Como Inácio Magalhães de Sena e Manoel Onofre Jr., que um dia se fez juiz, chegou a desembargador anos depois, mas sempre fiel aos velhos amigos do Grande Ponto, como até hoje.
Eram estudantes de medicina, direito, engenharia, profissionais disso ou daquilo, quase todos de famílias simples e a espera de um bom destino. Naqueles anos sessenta, a vanguarda natalense esperneava em festivais e happenings – isso que hoje chamam de performances – sonhando mudar o mundo. Marcos Silva espantava a cidade cantando no Palácio dos Esportes com um despertador no pescoço; Mirabeau com o carrocel de cavalinhos; Dailor fazendo poema-processo, e Falves, o maldito, expondo no Francesinha.
Duas mulheres abalavam nossas fantasias eróticas: Gisele, a espiã nua que abalou Paris, em historias de livros de bolso; e Justine, do Marquês de Sade, que circulava numa misteriosa edição portuguesa, de capas vermelhas, que um dia caiu na nossa curiosidade pelas mãos de Neguinho. Um tipo magro, cobrador de uma famosa clínica de odontologia, sempre numa bicicleta preta, de farol e buzina, pregando a revolução socialista sussurrada com certo charme, até que um dia desapareceu envolvido numa nuvem suspeitíssima.
O Grande Ponto do meu tempo tinha Manida, o louco genial que pregava a força acima de todas as coisas. Nestor, do Magazin Jóia, uma pequena perfumaria ali na esquina da Rio Branco com a João Pessoa, a descrever ao vivo as maiores e mais apaixonantes conquistas amorosas. Medeiros, um sertanejo do Seridó com alma de vaqueiro que falava com um ritmo como se aboiasse. Os irmãos Diógenes e Demócrito, o galego Zelande, e Hélio Brucutu, baixo e forte, contando histórias nas quais era sempre o grande vencedor.
O Bar Cisne resistia, pagando o silêncio da decadência com garrafas de uísque na pequena vitrine. E onde hoje não é mais nem o luxuoso Hotel Ducal, com seu mural feito das areias coloridas de Tibau, havia uma sorveteria que fazia cartolas. De longe, da João Pessoa, vinham os gritos de Arthuzinho conversando no Dia-e-Noite sobre os gols do América. Gasolina era garçom, o Oásis ainda respirava e na Rádio Nordeste entravam e saíam figuras importantes da política, além da valentia de Eugênio Neto contra Erivan França.
O Grande Ponto do meu tempo fugia, certas noites, para as margens escuras do Potengi. Lá estava, meio ancorado como um barco velho, o tombadilho do Brisa Del Mare. Cerveja, rum com coca-cola e caranguejos flamejantes que nós batíamos até altas horas e onde uma vez quebrei um dente e fiquei com vergonha de encontrar com Rejane. A cidade era calma. Voltávamos caminhando e cantando, como naquela canção. De vez em quando, passava um caminhante noturno enchendo as ruas, assobiando mágoas de amor.
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